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Por Paulo Furquim de Azevedo
Análises com o rigor e o método acadêmicos, mas com uma linguagem acessível para todos, sem os jargões e as firulas do texto acadêmico. Com a co-autoria de Luciana Yeung
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Ainda sobre ‘Uberização’: o que ganhamos com uma lei

O PL gerou muito barulho pelas coisas menos relevantes, mas negociação coletiva, que gerou pouco ou nenhum barulho, mas pode resultar em seu maior benefício

Por Paulo Furquim de Azevedo
Atualizado em 25 abr 2024, 10h37 - Publicado em 25 abr 2024, 10h37

Certa vez, voltando para São Paulo pelo aeroporto de Guarulhos, peguei um carro por aplicativo. Durante o longo e congestionado trajeto para o centro da capital, o motorista e eu fomos conversando sobre a vida. Ele morava em Guarulhos e trabalhava em Interlagos. Todas as manhãs fazia uma corrida do aeroporto para São Paulo, que o deixava perto de seu trabalho, e procurava, no final do dia, uma corrida que o trouxesse de volta para Guarulhos. Era um modo de fazer de um limão (o longo trajeto até o emprego) uma limonada (renda extra ao levar um carona como eu). 

Sempre que não soa invasivo, gosto de conversar com motoristas de aplicativo. São muitas histórias. Alguns vivem exclusivamente disso e não pensam em mudar de vida. Outros combinam a atividade de motorista com outras que, ainda que preferidas, não os absorvem (e não os remuneram) por completo. É o caso de um músico que tocava em casamentos e festas nos fins de semana, e que, durante a semana, dividia seu tempo com algumas aulas, estudos e corridas por aplicativos. Outro era um técnico em controle de pragas domésticas, altamente qualificado, cuja empresa havia sido fechada durante a pandemia. Conciliava a atividade de motorista com a procura por trabalho. Estava ali temporariamente, enquanto não conseguia se recolocar em um emprego formal e que o remunerasse pelas suas qualificações. 

Essas impressões nada sistemáticas são consistentes com a análise de um milhão de motoristas da Uber, feita em artigo de Cook e outros, publicado no prestigioso periódico The Review of Economic Studies. Há uma grande variedade de tipos de motoristas, vários dos quais buscam na plataforma justamente a flexibilidade. Nos Estados Unidos, muitas das motoristas mulheres estão nesse grupo, pois precisam da flexibilidade para acomodar a absurda desproporção na distribuição das tarefas de cuidar de filhos, pais e avós.

Assim é a vida dos motoristas da Uber e da 99. Cabe perguntar de que modo o PLP 12/2024 afeta essas pessoas. O assunto já foi objeto de um artigo anterior nesta coluna, que abordou o fenômeno da “Uberização”. Neste vamos avaliar os principais pontos do projeto, tentando entender por que essa iniciativa, que supostamente protege os motoristas de aplicativos, desagradou alguns deles e por que tantos outros aplicativos, como iFood e Rappi, não foram contemplados na mesma lei. 

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São quatro os pontos principais do projeto de lei, tendo por propósito explícito a “inclusão previdenciária e outros direitos para melhoria das condições de trabalho”. O primeiro é o estabelecimento de uma remuneração mínima para os motoristas, correspondente ao salário-mínimo nacional, líquido de custos médios da prestação dos serviços. Além disso, a lei impede que as plataformas tenham uma relação de exclusividade com motoristas e que estes sejam obrigados a um tempo mínimo de prestação do serviço. Em outras palavras, mantém-se a flexibilidade tão característica da atividade de motorista de aplicativo, o que é bom, embora sem efeito, visto que já é assim que operam as plataformas na ausência da lei. Também a remuneração mínima, exceto por eventos raros como a pandemia, tende a ser inócua, dado que a remuneração dos motoristas que trabalham em jornada integral tende a ser superior ao piso estabelecido. Não é por aqui que o projeto de lei fará alguma diferença.

O segundo ponto é de especial interesse das empresas de aplicativos de transporte, ao reduzir a insegurança jurídica a que estão sujeitas. Após diversas ações judiciais no Brasil que buscavam o reconhecimento de vínculo trabalhista entre os motoristas e os aplicativos de transporte, a questão chegou ao Supremo, que ainda deve decidir sobre o tema. Por ora, há decisões conflitantes e algumas em absoluto conflito com o modelo de negócio de flexibilidade e ausência de exclusividade e subordinação nas relações entre motoristas e plataformas. O projeto de lei explicita que motoristas são trabalhadores autônomos, afastando as ações que buscam enquadrá-los à CLT. Seja por essa via, seja por eventual decisão do Supremo, tudo indica que a insegurança jurídica deve diminuir e, ao mesmo tempo, o modelo de negócio deve ser preservado.

O terceiro ponto, o mais vocalizado pelos idealizadores do projeto, trata da inclusão previdenciária dos motoristas por aplicativo. Para tanto, aproveita-se da estrutura centralizada de pagamento e registro das plataformas para a inclusão dos motoristas no Regime Geral de Previdência Social, o que os torna elegíveis à aposentadoria pelo INSS. A contrapartida é a contribuição compartilhada entre empresas e motoristas, que pesa no bolso, mas gera os recursos para a previdência social de motoristas. Se, de um lado, há um benefício inconteste de incluir trabalhadores que estavam à margem do sistema de seguridade social, de outro, o modelo afasta aqueles que buscavam na plataforma justamente a flexibilidade do mercado informal.

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Não são poucos os motoristas que já contam com alguma espécie de benefício previdenciário ou assistencial. São aqueles que perderam o emprego e que trabalham temporariamente como motorista enquanto procuram um novo emprego. São também aqueles que, por sua renda, poderão contar com o Benefício de Prestação Continuada, ou mesmo aqueles que já estão aposentados. Para essas pessoas, o projeto de lei impõe um custo que não reverterá em benefício, pois já contam com alguma espécie de seguro social. Não é de espantar que esses se oponham ao projeto de lei.

Finalmente, a proposta traz um quarto ponto muito pouco discutido e que é potencialmente transformador. Trata-se da organização dos trabalhadores por aplicativo como uma categoria sindical, estabelecendo parâmetros para a negociação coletiva entre eles e as empresas de aplicativos. Pelas características do negócio dessas empresas, há uma tendência a elevadíssima concentração de mercado, não sendo raro o uso por analistas de mercado da expressão the winner takes it all (ou almost all) para descrever o processo que leva ao domínio por uma única grande empresa. Em algumas cidades, a Uber é a única empresa operante e, em outras, possui mais de 70% do mercado. Seu poder de mercado é inegável, podendo utilizá-lo para aumentar o valor que desconta dos motoristas em cada viagem. Hoje, essa é uma decisão unilateral e pouco transparente, restando aos motoristas a opção de aceitar a prática da empresa ou desistir da atividade.  

A negociação coletiva pode criar um poder compensatório que permita aos motoristas a apropriação, ainda que pequena, dos vários ganhos gerados pelo modelo de negócio de aplicativos de transporte. A ideia de poder compensatório é, aliás, o que propõem Acemoglu e Johnson, em seu recente livro, Power and Progress, para que a inovação tecnológica trazida pelas big techs e pela inteligência artificial se converta em benefícios para a sociedade. 

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O PLP 12/2024 gerou muito barulho pelas coisas menos relevantes, como a remuneração mínima e a inclusão previdenciária, que, como visto, modificam pouco a vida dos trabalhadores de aplicativos. Mas tem algo, a negociação coletiva, que gerou pouco ou nenhum barulho, mas pode resultar em seu maior benefício.

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