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Envelhecer no século XXI

O Brasil será, em poucas décadas, um dos países com maior número de idosos do mundo, e precisa correr para poder atendê-los no que eles têm de melhor e mais saudável: o desejo de viver com independência e autonomia

Por Da Redação
18 mar 2016, 22h44

Ninguém é tão velho para não acreditar que poderá viver por mais um ano.” A máxima, apresentada pelo político, jurista e pensador romano Marco Túlio Cícero (106-43 a.C.) em Saber Envelhecer, tem, ela mesma, se mostrado imune ao tempo. Pudera: homens e mulheres estão vivendo cada vez mais. Em 2050, nada menos que 64 milhões de brasileiros – o equivalente a 30% da população – estarão com 60 anos ou mais. Hoje, são 25 milhões, pouco mais de 12%. A expectativa de vida saltará de 75 para 81 anos, acima da média mundial, que, estima-se, estará em 76. Só no Estado de São Paulo, o número de centenários será dez vezes maior. O país ocupará, então, no ranking internacional, o nono lugar na proporção de idosos na população, à frente, por exemplo, de Estados Unidos, México e Rússia. Com famílias menores, casais optando por não ter filhos e o chamariz da emigração, muitos dos jovens adultos de agora terão de encarar a longevidade sozinhos. Diante desse cenário, e da vida “por mais um ano” celebrizada pelo velho Cícero, o desafio que se apresenta a todos – médicos, governantes e cidadãos comuns – é atender à principal e mais saudável ambição dos idosos de hoje e de amanhã: manter uma vida autônoma e independente.

O mantra da velhice no século XXI é “envelhecer no lugar”, o que os americanos chamam de aging in place. O conceito que guia novas políticas e negócios voltados para os longevos tem como principal objetivo fazer com que as pessoas consigam permanecer em casa o maior tempo possível, sem que, para isso, precisem de um familiar por perto. Não se trata de apologia da solidão, mas de encarar um dado da realidade contemporânea: as residências não abrigam mais três gerações sob o mesmo teto e boa parte dos idosos de hoje prefere, de fato, morar sozinha, mantendo-se dona do próprio nariz. Atul Gawande, professor de medicina e saúde pública da Universidade Harvard, enfatiza em seu livro Mortais (editora Objetiva): “A modernização não rebaixou a posição dos mais velhos. Rebaixou a posição da família. A veneração aos idosos desapareceu, mas não foi substituída pela veneração aos jovens. Foi substituída pela veneração à independência”.

Perfeita tradução desses novos tempos, e já bastante difundidos em países desenvolvidos, são os condomínios residenciais pensados exclusivamente para a terceira idade. Embora existam por aqui muitos residenciais que buscam atender às necessidades dos idosos, nenhum condomínio brasileiro se encontra completamente adaptado a eles, nos moldes vistos no exterior. O primeiro chegará ao país em 2018. Nele, o morador terá à disposição serviços que o ajudam a manter sua autonomia ao mesmo tempo que reduzem o risco de acidentes, especialmente as quedas, que são uma das principais causas de morte nas faixas etárias acima de 60 anos. No projeto da construtora Tecnisa, que será erguido na Zona Oeste da capital paulista, todos os 384 apartamentos terão portas mais largas que as usuais, botões de emergência e banheiros planejados para oferecer maior conforto aos usuários. Haverá uma equipe de profissionais residentes, serviço de limpeza, restaurante, lavanderia e uma série de atividades para incentivar a socialização, como cinema, terapia ocupacional e oficina de culinária. O aluguel mensal é muito elevado: girará em torno de 15 000 reais.

Em todo o mundo, os maiores temores das pessoas diante do envelhecimento têm relação direta com a perda de autonomia. Foi o que revelou um recente levantamento da consultoria Nielsen realizado com 30 000 indivíduos em sessenta países, incluindo o Brasil. Não conseguir cuidar das necessidades básicas, perder a agilidade física e mental, ser um fardo para a família e não ter condições de viver com conforto foram os medos mais citados pelos entrevistados. Se pensarmos que mais da metade dos idosos vive sem um cônjuge e que os casais estão tendo menos filhos, parece um contrassenso que os adultos de hoje poupem menos para a aposentadoria do que no período da Grande Depressão. “Isso acontece porque, em geral, ninguém quer imaginar como passará os últimos anos; porém essa é, claro, uma reflexão fundamental”, pondera o médico carioca Alexandre Kalache. Ele é o maior pesquisador do país na área do envelhecimento. Presidiu o Programa Global para o Envelhecimento da Organização Mundial da Saúde (OMS) e lecionou nas universidades de Oxford e Londres por duas décadas.

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Com o avanço da ciência e a familiarização cada vez maior da sociedade com o envelhecimento, a tendência é que essa fase da vida seja encarada com mais naturalidade. Como é improvável que um dia a maioria dos cidadãos possa arcar com os custos de uma residência de alto padrão, a alternativa, insistem os especialistas, é oferecer treinamento a trabalhadores comuns para que possam desempenhar, com propriedade, o papel de cuidadores. A profissão de cuidador, aliás, ainda nem foi regulamentada. Desde 2012, arrasta-se na Câmara um projeto de lei para regular a atividade. Com o vácuo da normatização, é comum que empregados domésticos acabem exercendo essa função, uma irregularidade que, muitas vezes, vai parar na Justiça. “Por outro lado, proliferam cursos, em todas as áreas, com a finalidade de transmitir a trabalhadores de diferentes setores a consciência gerontológica, ou seja, uma melhor compreensão do envelhecimento humano. Isso certamente nos ajudará lá na frente”, acredita o médico João Toniolo Neto, um dos fundadores do curso de geriatria da Escola Paulista de Medicina da Universidade Federal de São Paulo, em 1985. O especialista administra, junto com a irmã, o local que os pais criaram em 1974 para receber idosos de maneira digna e atraente, longe dos antigos e depressivos asilos e casas de repouso. Hoje, Dirceu, o pai, é um dos moradores do Residencial Toniolo.

“O idoso que preserva sua independência, vivendo na sua comunidade e perto da família, se mantém mais saudável”, sublinha a jornalista Marleth Silva em seu livro Quem Vai Cuidar dos Nossos Pais? (Viva Livros, um selo da editora Record). Criado em 2010, o programa Porteiro Amigo do Idoso já capacitou mais de 1 700 porteiros no Rio de Janeiro, São Paulo, Minas Gerais e Espírito Santo. A ideia partiu de Alexandre Kalache. Quando voltou a sua cidade natal depois de uma temporada no exterior, Kalache decidiu investigar em quem os idosos que moravam sozinhos em Copacabana – o bairro brasileiro com o maior número de pessoas nessa faixa etária – mais confiavam. Resultado: os porteiros. Diz Kalache: “Enquanto a França levou mais de um século para ver sua população acima dos 60 dobrar de 7% para 14%, o Brasil levará dezenove anos. Os programas de treinamento serão importantíssimos porque não teremos tempo hábil para formar profissionais exclusivamente voltados para as questões senis”.

A OMS estabelece como ideal a proporção de um geriatra para cada 1 000 idosos. Aqui, a Sociedade Brasileira de Geriatria e Gerontologia estima que haja um para cada 24 000. O número de médicos dessa especialidade aumenta discretamente no país, mas em descompasso com o crescimento da população idosa. A geriatria não é uma especialidade qualquer. As consultas são longas, o que diminui a possibilidade de fazer muitas delas por dia. Mais: é preciso ir devagar com o paciente, que, por seu turno, raramente tem uma queixa principal. Tem várias. Diz o médico Toniolo Neto: “Muitas vezes, o geriatra se sente sobrecarregado e frustrado com a impossibilidade de remediar problemas que apareceram anos atrás e dificilmente desaparecerão agora, sob seus cuidados”.

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A despeito de todo o progresso, os médicos se veem às voltas com um efeito colateral do desenvolvimento de sua área de atuação. É a hipercompartimentação, por assim dizer, do indivíduo. “O geriatra acabou ocupando o lugar do clínico geral, que praticamente desapareceu”, atesta Wilson Jacob Filho, professor titular de geriatria da Universidade de São Paulo (USP) e diretor de geriatria do Hospital das Clínicas. Para tentar atenuar esse problema, desde o ano passado a Faculdade de Medicina da USP inseriu em seu currículo a disciplina ciclo de vida, que abrange desde a concepção até a morte, reunindo preceitos que vão da pediatria à geriatria. Essa abordagem holística será cada vez mais importante porque, daqui em diante, os indivíduos envelhecerão acumulando doenças. “Mas isso não deve ser uma angústia”, acredita Jacob Filho. “Ninguém precisa ficar chateado quando descobre que está com osteoporose, e sim se descobrir a osteoporose só no dia em que um osso se quebrar.”

O envelhecimento em grande escala é uma preocupação recente da humanidade. No fim do século XVI, quando boa parte da população não chegava a completar quatro décadas de vida, o filósofo francês Michel de Montaigne (1533-1592) observou: “Morrer de velhice é uma morte rara, singular e extraordinária. Muito menos natural do que outras mortes: é o último e mais extremo dos tipos de morte”. A longevidade era tão inusitada que as pessoas queriam parecer mais velhas e mentiam a idade – isso as fazia parecer extraordinárias. Os demógrafos inventaram, então, complexos sistemas para corrigir esses desvios nos censos, e foram eles que, no século XVIII, perceberam que a direção das mentiras estava começando a se inverter: as pessoas queriam, agora, parecer mais jovens. O espetacular avanço no tempo de vida dos cidadãos se deu principalmente nos últimos 100 anos, com a evolução da medicina, a urbanização, a melhor nutrição. De modo que envelhecer não é doença. É a bênção dos que têm a sorte de viver uma vida longa. E, embora as adaptações, no Brasil e no exterior, requeiram criatividade e rapidez, trata-se de um bom problema. Talvez o melhor deles.

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