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Por Coluna
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Valentina de Botas: Palavras quebradiças

Há uma maneira quase infalível de diminuir a população carcerária: os cidadãos se inspirarem no cumprimento da lei, não cometendo crimes

Por Augusto Nunes 8 fev 2017, 13h37

O que nos resta depois da constatação desoladora de impotência, se as palavras se quebram no tempo ou contra o muro onde se plasmou num grafite a “realidade”? Talvez fazer uma escolha. Apesar e porque desolada, eu escolho emendar, pedaço por pedaço, cada palavra, como quem restaura a força estranha que nos faz cantar, e vou sobrepondo a necessária esperança cotidiana àquele grafite, cicatrizada na potência possível do meu zelo.

Foi dentro desse zelo que se quebraram as palavras da minha filha me dizendo que lhe ofereceram maconha e crack na escola e no condomínio onde moramos. Me falou desassombrada e generosamente preocupada com o mesmo jovem de 15 anos, um ano mais velho do que ela, já manjado nas paradas. Claro, falamos com os pais dele que desabafaram conosco desesperançados: não sabiam mais o que fazer com o rapaz que levava “aquela vida há 2 anos”, que todo dia perdiam um pouco, até que, temiam, perdessem de uma vez pelas mãos da polícia ou dos traficantes. Pude ajudá-los e a família acabou se mudando para o interior de S.Paulo. Essa desgraça tocaia as famílias brasileiras e não apenas por ser crime, portanto a descriminalização não diminui a ameaça à integridade física e mental do jovem, mas também por deteriorar suas relações e seu desenvolvimento.

De dentro das minhas esperanças remendadas, não receei que minha filha se tornasse traficante e/ou usuária de drogas, mas também não tenho a ilusão de que só o meu zelo e a formação que ela teve até aqui bastam para protegê-la, pois, ainda que ela siga fazendo as escolhas corretas, pode, como qualquer cidadão brasileiro, estar no caminho de quem fez as piores. Há algum tempo, todos os pais somos como a mãe da música “Trem das 11”, que não dorme enquanto o filho não chegar, único ou não, pois, na nossa alma, cada um dos nossos filhos é único, sejam quantos forem, nesse amor que se multiplica quanto mais o dividimos, multiplicando a angústia inerente. Sei que minha experiência não esgota a realidade, mas ela é mostra real das realidades do ponto de vista da sociedade.

Como ele parece irrelevante e as angústias dos brasileiros que estão do lado da lei não são notícia, o debate que nos exclui da realidade se aperfeiçoa com a sugestão de Roberto Barroso, ministro do STF, para quem a descriminalização da maconha ajudaria a aliviar a superpopulação carcerária, contribuindo para a melhora do inferno. Barroso parece se esquecer de que há uma maneira quase infalível de diminuir a população carcerária: os cidadãos se inspirarem no cumprimento da lei, não cometendo crimes e, assim, evitar ir para a cadeia. Outra coisa de que se esquece é que há uma forma de melhorar as masmorras brasileiras: a sociedade, ele incluso, exigir do Estado que retome o controle dos presídios, que os reforme e tudo o mais que se tem discutido há semanas.

A decência e o interesse da própria sociedade brasileira nos obrigam à reforma do nosso sistema penitenciário. Mas se eu sei, e eu sei, Barroso também sabe que ninguém mais é preso por porte de maconha até o limite que a lei estabelece como consumo pessoal. Portanto, ele advoga a liberação da produção, da distribuição e do consumo da maconha.

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Barroso e os demais adeptos desse desatino apostam que eliminar o tráfico elimina traficantes, talvez; mas não elimina criminosos: trocaremos a superlotação penitenciária decorrente da prisão de traficantes de maconha pela superlotação penitenciária decorrente da prisão de ex-traficantes de maconha que passarão à prática de outros crimes ou ao tráfico de outra coisa ainda não descriminalizada. Ele diz que, “se der certo”, podemos fazer o mesmo com a cocaína. Desculpe, mas a ideia é de uma estupidez esplendorosa.

Sonhemos: e se os juízes, especialistas, jornalistas, legisladores, padres, artistas, intelectuais olhassem para os brasileiros oprimidos pela criminalidade como se fôssemos reais, como se fôssemos o muro real contra o qual essas palavras se quebram? Não há povo de manual fora dos manuais, não há criminosos de manual fora dos manuais e o Brasil é grande, complicado e diversificado demais para ser tratado como um parque temático de fetiches ditos progressistas, sobretudo daqueles cuja perspectiva é a da criminalidade que, no limite, estabeleceriam a sociedade perfeita mediante a descriminalização de todos os crimes. Se a perspectiva fosse a da sociedade, as propostas reforçariam o combate ao crime, e não sua apócope penal.

Por favor, a comparação com as experiências de resultados discutíveis em Portugal e Uruguai é risível, não somente porque as populações somadas empatam com a da Grande São Paulo, mas porque nossas realidades são dramaticamente específicas, além de sermos um país com 17.000 km de fronteiras terrestres, dos quais apenas 4% são monitorados por radares, satélites ou outros dispositivos.

Os defensores da liberação do consumo costumam dizer que o álcool faz mais mal do que a maconha, sugerindo, então, que os malefícios do álcool melhoram a maconha. Quanto ao impacto na saúde da população, o consumo de maconha pode potencializar doenças ou distúrbios mentais eventualmente não diagnosticados, sobrecarregando o serviço de saúde pública, e há sempre o risco da dependência química. No Annual Revew of Medicine, de 2016, os especialistas S.T. Wilkinson, S. Yarnell e R. Radhakrishan reforçam, num artigo científico disponível na internet, os alertas para o impacto na saúde pública da legalização da maconha, equivocada e espertamente apelidada de “droga leve” pelos fetichistas da liberação.

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O uso medicinal, que o Ministério liberou para algumas doenças no ano passado (mas não do cigarro da maconha, é claro, e sim do respectivo princípio ativo canabidiol ou do tetra-hidrocanabidiol, o THC), tem evidências de sucesso ainda limitadas a um pequeno número de doenças como caquexia causada pelo vírus HIV/Aids, as náuseas e vômitos relacionados à quimioterapia, a dor neuropática e a espasticidade na esclerose múltipla.

Ah, mas o FHC é a favor, Valentina, e você gosta dele. De fato, tenho admiração, respeito e gratidão por FHC, e muitas críticas, porque essas coisas não se excluem. Ou, por outra, não consigo gostar de ninguém que não tenha defeitos – os perfeitos me humilham e os santos me aborrecem. Reafirmo que o que impediu a devastação lulopetista ser mais extensa, duradoura e profunda foi a gestão anterior que promoveu a institucionalização do país e nos mostrou o século 21 logo ali, agora recuado.

O legado de FHC ultrapassa a esfera econômica do Plano Real e só foi borrado na narrativa recente porque o PSDB, com seus nojinhos e medinhos de fazer oposição ao PT, não quis, sei lá, transpirar no suéter. Entre os equívocos do nosso único estadista vivo está a defesa da descriminalização da maconha.

Ele, Barroso, e demais adeptos da descriminalização (liberação, descriminação, legalização ou como queiram chamar) conhecem as realidades de que falo aqui. Mas, com esse discurso, parecem conhecê-las como quem, acordado por uma sede súbita no meio da noite, esbarra nos móveis, no escuro, dentro de casa, entre o quarto e a cozinha.

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Tropeçam, não reconhecem o que conhecem porque pregam na escuridão ao excluir o cidadão de bem dessas soluções cheias de palavras quebradiças no impacto com as realidades que ele habita.

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