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ESTUDO #35

Caminhos para 2024 – Perspectivas e desafios da economia brasileira

por Da Redação Atualizado em 20 dez 2023, 17h49 - Publicado em
21 dez 2023
11h00

Apresentação

Dizia o economista canadense John Kenneth Galbraith, professor de Harvard e conselheiro dos presidentes americanos Franklin D. Roosevelt, John Kennedy e Lyndon Johnson, que a única função das previsões econômicas é fazer a astrologia parecer respeitável. A máxima é lembrada sempre que os prognósticos de bancos, consultorias e governos erram o alvo, o que não acontece pouco. Nos últimos três anos, por exemplo, a economia brasileira surpreendeu positivamente até os mais otimistas dos analistas. O primeiro Boletim Focus de 2023, que faz uma média das estimativas de mais de 100 instituições financeiras no país semanalmente, apontava um crescimento de 0,78% para o PIB brasileiro no ano corrente. Quase doze meses depois, tudo indica que a taxa será de mais de 3%.

Verdade que os últimos anos foram particularmente imprevisíveis. A eclosão de uma crise sanitária global como foi a pandemia de Covid-19 em 2020 não tinha precedentes na história recente, e trouxe mudanças profundas para as relações entre os agentes econômicos que ainda estão sendo entendidas. Some-se a isso a invasão da Rússia ao território ucraniano sem aviso prévio e o El Niño mais intenso dos últimos 25 anos. É compreensível que os analistas tenham sido cautelosos em suas estimativas. Mas mais importante é a noção de que é justamente a existência das análises de conjuntura e estimativas que permitem que cidadãos, investidores, empresas e governos tomem decisões para mudar a realidade – idealmente para melhor.

Foram as insistentes previsões de que os Estados Unidos entrariam em recessão a qualquer momento em 2023 que levaram o governo a abrir os cofres para estimular o investimento e o consumo. Problemas como a alta inflação na Saúde e na energia realmente existiam, e medidas para atacá-los foram fundamentais para o país entregar um crescimento sólido de 2,5% neste ano – mesmo que uma seca inesperada tenha prejudicado sua agricultura.

As projeções para 2024, no Brasil e no mundo, apontam para uma desaceleração geral da economia. Seja por questões mais amplas, como os desdobramentos da pandemia e da guerra da Rússia, ou seja por situações específicas de cada país. O Brasil tem um déficit fiscal relevante, a China lida com uma crise no setor imobiliário sem igual, e a Europa já vem de uma estagnação desde 2022. E como todas as nações são interligadas por relações comerciais, o pé no freio de uma acaba diminuindo o ritmo das outras.

Nas páginas a seguir, VEJA Insights traz um panorama das expectativas para a economia do Brasil e do mundo de acordo com analistas que garimpam os dados de preços, emprego, atividade industrial, dívidas, etc., para eliminar o ruído e mostrar o que deve acontecer em 2024. E de onde podem surgir as surpresas, que como Galbraith já avisava décadas atrás, sempre aparecem para zombar dos economistas. Boa leitura!

Entrevista: Maílson da Nóbrega

CAUTELA – “A economia está desacelerando, e isso vai continuar” (./Divulgação)

Maílson da Nóbrega, 82 anos, está pessimista em relação à economia brasileira nos próximos anos. Conhecedor como poucos das mazelas e virtudes do país, tendo começado a trabalhar aos 10 anos de idade como descastanhador de caju e vendedor ambulante em sua Paraíba natal nos anos 1950, e chegado a ministro da Fazenda quarenta anos depois, ele vê falta de compromisso do governo com a meta fiscal e com a melhora da produtividade no Brasil, problemas de fundo que impediriam uma expansão consistente do PIB. A falta de enfrentamento a essa situação, ele alerta, pode desembocar em uma crise de dívida devastadora. Nóbrega atua como um dos mais argutos analistas econômicos do país desde que deixou o governo, em 1990, tanto na imprensa quanto no mundo corporativo, em conselhos de administração de companhias nos mais variados setores. Da sede de sua empresa de consultoria, ele falou a VEJA Insights por videoconferência sobre o cenário desafiador que o Brasil vai encarar na seara internacional e os problemas que devem atrapalhar o mercado interno em 2024.

A economia brasileira tem crescido mais que as apostas dos mercados há 4 anos. A perspectiva para 2024 entre analistas é pessimista de novo. Não vai haver surpresa no ano que vem? O número é o menos importante, o que vale é a análise do contexto. E eu acho que há mesmo uma desaceleração da atividade econômica. Se você olhar para o que se pensava no início do ano, a Tendências (empresa de consultoria da qual Nóbrega é sócio) acreditava que o PIB expandiria 1,4%, e agora achamos que vai crescer 2,6%. O governo fala em 3,1%. Tem três formas de ver esse resultado, todas as três verdadeiras. A primeira é comemorar que ela foi a melhor que se previa. A segunda é comparar com a expansão da economia global, e o Brasil cresce mais. E o terceiro ângulo é dizer que a economia está desacelerando, e isso vai continuar nos próximos trimestres.

Por quê? São vários fatores. Ainda temos o efeito contracionista da política monetária. Temos uma taxa de juros elevada para um país que não tem inflação descontrolada. Os serviços, que vinham puxando a atividade econômica, começam a esgotar esse processo de retomada pós-pandemia. No mais, a agropecuária teve um crescimento extraordinário no primeiro semestre de 2023 graças a uma safra de grãos espetacular, a maior da história, ao mesmo tempo em que houve seca na Argentina e nos Estados Unidos. Essa conjunção não deve se repetir, e todas as projeções são de que não vamos ter uma super-safra no próximo ano. Minha projeção é um crescimento de 1,5% em 2024.

Não há nada que possa ser feito para mudar esse cenário? Existem duas questões mais profundas que vão, de certa forma, influenciar a economia brasileira nos próximos anos. A primeira, mais imediata, é a pericletante situação fiscal do Brasil. É insustentável. E é fruto da segunda questão, que é uma rigidez do orçamento sem paralelo no planeta. O orçamento de 2024 só tem 2% disponíveis para que o governo faça políticas públicas pró crescimento e pró redução da desigualdade. São 2% de orçamento para financiar pesquisa científica e tecnológica, cultura, certos programas sociais, atividade das Forças Armadas, comprar mais navios e aviões, etc. E sem resolver esse problema, o país não tem futuro.

Essa situação não é nova. Por quê essa preocupação em relação a 2024? É um cenário que pode resultar numa crise de dívida. Na percepção pelos mercados de que o governo não vai ter condições de pagar seus credores internos. Não acho que vai ser dado um calote, mas vai o governo vai precisar se financiar com inflação. Em algum momento vai ter que ter mesmo. E inflação é péssimo para o crescimento.

Isso já acontece agora em 2024? Ninguém sabe quando vai acontecer. Porque existe um conceito que surgiu em 2008 chamado “O Momento Minsky”. É como a crise de 2008, quando o Lehman Brothers quebrou nos Estados Unidos e o mundo inteiro entrou em uma crise. De uma hora para a outra, os investidores em bloco entenderam que o mercado de hipoteca estava podre e desmoronou tudo de uma vez. Pode acontecer o mesmo em relação à dívida brasileira. De o mercado entender, todo de uma vez, que o governo não vai conseguir pagar o que deve.

O arcabouço fiscal, aprovado agora em 2023, não resolve o problema ou o senhor não acredita que ele vá ser respeitado? Não resolve. Foi uma surpresa positiva, porque os discursos do presidente Lula eram fiscalmente irresponsáveis. E muitos achavam que o Haddad não estaria a altura do cargo de ministro da Fazenda, que ele iria se curvar às visões petistas de que gasto é vida. Houve um ataque absolutamente sem sentido ao presidente do Banco Central. Falou-se em elevar a meta de inflação de 3% para 4,5%, acabar com a independência do Banco Central. Esse é o sinal que o Lula transmitia. O Haddad teve a habilidade de desmontar tudo isso e ainda acenou com um certo pragmatismo que o presidente Lula ainda tem. Mas não é suficiente, porque o arcabouço fiscal não vai deter o crescimento da relação entre a dívida e o PIB.

O Brasil não tem saída? A produtividade da indústria estagnou. No serviço é muito baixa. Só o agronegócio ganha produtividade no Brasil. O agro costuma bater 25%, 30% do PIB a depender do ano. Sozinho, já é maior do que o PIB da Argentina. Mas o dinamismo da agricultura não é suficiente para superar a queda de produtividade dos demais setores. Então o Brasil tem um potencial de crescimento de 1,5% a 2%. Se crescer mais de 2%, é porque aconteceu algo extraordinário, que não vai se repetir nos anos seguintes. Como, por exemplo, um boom no preço de commodities associado a uma super-safra. Mas quando esse efeito desaparece, voltamos a um teto de 2%. É o que está acontecendo: vamos crescer de 2,5% a 3% agora em 2023, mas em 2024 isso volta para cerca de 1,5%.

A reforma tributária, se for confirmada a tendência de ser aprovada no Congresso, pode aumentar esse PIB potencial? A reforma tributária é um passo gigantesco na direção correta. Nós temos o pior sistema de tributação do mundo, e finalmente vamos acabar com o caos. É lamentável o número de exceções que beneficiam os segmentos mais favorecidos. Por outro lado, a melhora na produtividade ficou praticamente intacta. É quase um milagre. Tudo que é de bom dessa reforma foi preservado: a tributação no destino, regras uniformes em todo o território nacional, desoneração das exportações e dos investimentos, a devolução de créditos acumulados em até 20 dias. O nosso potencial de crescimento vai aumentar. Difícil calcular quanto, mas há estudos falando em 12% no incremento do PIB potencial, outros chegam a 20%.

Mas os efeitos vão ser sentidos já em 2024 ou isso só vai vir ao final do período de transição? Alguns pontos da reforma começam a funcionar em 2026, e a transição se completa em 2033. É uma transição de 10 anos para o contribuinte, e não tinha como fazer mais rápido. Para a divisão das receitas entre os municípios, estados e União, o prazo é de 50 anos. Mas antes disso, quando as empresas perceberem que daqui a 10 anos o Brasil terá um sistema entre os melhores do mundo, o ímpeto para se investir vai aumentar. Haverá impacto já em 2024, e vai crescer ano a ano. Só não adianta ter um excelente sistema tributário se a situação macroeconômica for desastrosa.

Os programas de perdão e renegociação de dívidas do governo, como o Desenrola, terão efeito no consumo para 2024? É positivo, embora tenha sido menos efetivo que se imaginava. Eles restabelecem a capacidade do consumidor de tomar crédito. Mas isso não tem força suficiente para ser determinante para um aumento vigoroso do consumo. A melhor notícia nessa seara é o mercado de trabalho aquecido, o que é ótimo. Mas a economia está desacelerando, então a tendência é que o desemprego tenha um leve aumento em 2024.

A necessidade de recursos por parte do governo e a necessidade de investimentos pode incentivar privatizações? Privatizações de estatais eu acho difícil, porque o PT é abertamente contrário a qualquer venda. O que deve acontecer são concessões públicas, especialmente na área de transportes, que tanto o Lula quanto a Dilma fizeram muito em seus governos anteriores. É uma possibilidade interessante, porque de uma maneira geral essas concessões melhoram a qualidade das estradas, portos e aeroportos, o que tem um efeito positivo na produtividade.

O mercado financeiro tem motivos para ficar animado? Começou a se criar um ambiente para a tomada da abertura de capitais de empresas. Porque o mercado financeiro não precificou o risco de uma crise de dívida pública, então está muito tranquilo. E isso cria o ambiente para a formação de expectativas favoráveis para a economia. Nós estamos numa trajetória de queda da Selic, que deve continuar, acredito eu, até chegar a 9,5%. São mais de 4 pontos de queda. Isso favorece a expansão do mercado de capitais e a entrada de empresas na bolsa de valores, isso vai ficar aquecido.

Os analistas apontam um cenário internacional também de desaceleração. É essa mesmo a tendência? Tem um pessoal mais pessimista que diz que a era da China puxando a economia global acabou. Que todo o arsenal que o país utilizou para conseguir esse desenvolvimento espetacular das últimas décadas está esgotado. A construção civil é aproximadamente um quarto da economia chinesa, e está em crise. Muita gente comprou imóvel e não sabe se vai receber. Se a crise contaminar outros setores, a demanda cai fortemente para as commodities brasileiras. É um momento muito delicado. Eu não sou dos mais pessimistas, mas a China dificilmente vai voltar a crescer 6% ou 7% consistentemente. As projeções mais otimistas hoje falam em 4% ou 4,5%.

Essa desaceleração da China é o suficiente para frear o mundo inteiro? Você tem duas coisas que vão impactar o crescimento econômico nos próximos anos. A primeira é reconfiguração das cadeias mundiais de suprimento, que está em curso desde a pandemia. O iPhone custa hoje metade do que custaria se fosse produzido nos Estados Unidos. Mas todo mundo está repensando essa dependência da China. Os americanos e os europeus estão assustados com a política do presidente Xi Jinping, as guerras na Rússia e no Oriente Médio. Acreditou-se durante os últimos 50 anos que o comércio global e a complexidade das redes de suprimento acabariam com os riscos de guerra. Que a interdependência era boa. Hoje estão falando em derisking, em diminuir a exposição a outros países, porque a interdependência virou vulnerabilidade. O resultado é um mundo menos eficiente, e portanto com crescimento menor.

A Argentina está aprontando uma guinada na política econômica com o presidente Milei. Qual vai ser o efeito no Brasil? Olha, os Estados Unidos, por uma série de motivos, ficou sem Banco Central entre 1836 e 1913. O Banco Central não serve só para financiar o Tesouro. Ele regula o mercado financeiro, estabelece regras de capital mínimo para o sistema bancário, garante liquidez para a economia em tempos de crise. Os Estados Unidos teve crises muito fortes nesse período justamente porque não tinha ferramentas para amenizá-las. Eu espero que o Milei abandone essa ideia porque ela é muito estúpida. A dolarização também não deve funcionar. Ela pode resolver o problema da inflação, porque estabiliza os preços. Mas há dois problemas com esse plano. Primeiro, que tudo indica que não há dólares o suficiente na Argentina. O segundo problema é que a Argentina estaria abrindo mão de fazer uma política monetária. Eles terão, necessariamente, que seguir a política dos EUA, que tem características muito diferentes. A dolarização pode resolver a inflação, mas atrapalha o crescimento.

Depois de eleito ele amenizou propostas mais radicais, mas segue comprometido em melhorar as contas públicas. O Milei prometeu fazer um corte de 15% do PIB em gastos. Suponha que a Argentina gaste 40% do PIB. Se você cortar 15% disso, é o equivalente a cortar cerca de 40% do orçamento. Ele nem tem esse poder. Ele está com conceitos econômicos de mesa de bar. Fala sem compromisso nenhum, sem pensar nas consequências. Precisa mesmo resolver o problema fiscal da Argentina, mas com um plano factível. Se não resolver, isso atrapalha a economia do Brasil. Não interessa a nós vermos um dos nossos maiores parceiros comerciais afundando.

Sem margem para erro

NO LIMITE - Colheita de soja: projeção de agro forte, mas sem crescimento
NO LIMITE – Colheita de soja: projeção de agro forte, mas sem crescimento (Ministério da Agricultura/Divulgação)

O Boletim Focus reúne informações de mais de 100 pesquisas macroeconômicas realizadas por diversas instituições entre bancos, consultorias, corretoras e universidades, e publica semanalmente as medianas das estimativas para os principais indicadores da economia brasileira para o ano corrente e os três seguintes. Desde 2020, o primeiro boletim de cada ano errou, por muito, todas as projeções de crescimento do PIB nacional. Em 2020, a pandemia de Covid-19 frustrou a expectativa de um avanço de 2,2%, e o ano terminou com uma contração de 3,3%. De 2021 para cá, os analistas foram mais pessimistas e apostaram em taxas significativamente menores de expansão do que de fato acabaram ocorrendo (veja quadro abaixo). Há um consenso, hoje, de que 2024 verá um crescimento menor do que nos anos anteriores, ficando por volta de 1,5%. O histórico recente dá margem para desconfiança, mas as bases para o prognóstico são sólidos. “É claro que há sempre chance de erro, mas dessa vez os três pólos de crescimento global, Estados Unidos, China e Europa, estão em trajetória de desaceleração”, pondera Carlos Braga, professor da Fundação Dom Cabral e ex-diretor de Política Econômica e Dívida do Banco Mundial. “Some-se a isso o cenário interno do Brasil, com produtividade estagnada e dívida crescente, e fica difícil crescer mais que o previsto”.

arte Longe do alvo

O primeiro passo para tentar entender o que vai acontecer no ano que está por vir é analisar o que aconteceu no que está terminando. O grande inesperado a puxar o crescimento da economia nacional foi uma safra de cereais, leguminosas e oleaginosas 20% maior do que a de 2022. O mal desempenho das plantações argentinas e americanas, que sofreram com a falta de chuvas devido ao El Niño mais intenso dos últimos 25 anos – também responsável pela onda de calor que todo o brasileiro sentiu na pele – abriu os mercados para os brasileiros, e o PIB da agropecuária sozinho cresceu 15,5%. Trata-se de um evento extraordinário, que muito dificilmente vai se repetir. Com a desaceleração geral mundo afora, notadamente da China, ninguém espera um boom nos preços dos commodities, e a previsão para 2024 é de um crescimento modesto de 0,4% no setor.

Quem também surpreendeu em 2023 foi o mercado de trabalho, que até outubro já tinha gerado um saldo de 1,8 milhões de novos empregos formais. Mais gente com carteira assinada significa redução de dívidas e um aumento no orçamento familiar, o que leva a um maior gasto em Serviços, como Saúde, Educação, Comércio, Finanças e Turismo. Como o setor representa cerca de 60% do PIB brasieiro, seu crescimento de 2,5% teve um impacto desproporcional na expansão da economia. O problema é que, sem investimento, o consumo não se sustenta. E a aplicação de capital no Brasil está hoje na casa dos 16% do PIB. Países emergentes com crescimento robusto têm essa taxa na casa dos 25% – na China é mais de 40%. O esperado, portanto, é que os Serviços tenham um avanço mais modesto, de 2,1%.

O que é possível fazer para melhorar esse cenário? Está nas mãos do governo federal melhorar o cenário para destravar o “espírito animal” dos empreendedores e investidores. O país vai encerrar o ano com um déficit projetado de 177 bilhões de reais, o equivalente a 1,7% do PIB. O ministro da Fazenda, Fernando Haddad, tem feito esforços para atingir a meta de déficit zero no ano que vem. No lado da arrecadação, já conseguiu aprovar as taxações de investimentos financeiros no exterior, nos fundos exclusivos dos ricos, e nas compras online no exterior, de empresas como Shein e AliExpress. Os sites de apostas são as próximas da lista. Mas isso não basta quando membros do próprio governo – a começar pelo presidente Lula – vão a público defender gastos fora do arcabouço fiscal para impulsionar o crescimento econômico. São receitas que já foram usadas em governos anteriores, no Brasil e no exterior, sempre com resultado de inflação e desarranjo da economia. “O mercado está aplaudindo o esforço do Haddad com o arcabouço fiscal e o déficit zero no orçamento, mas há pouca confiança que os políticos vão respeitar a meta em ano eleitoral”, diz Carlos Considera, coordenador do Núcleo de Contas Nacionais da FGV-Ibre. De fato, déficit zero e promessas de lançamento de um novo PAC, o pacote de aceleração do crescimento com obras de infraestrutura que é marca dos últimos governos do PT, não combinam.

O problema do déficit fiscal é que se o mercado começa a perder a confiança na capacidade de o governo pagar a dívida, ele passa a cobrar um prêmio pelo risco de emprestar o dinheiro. Ora, se o setor público paga um juro alto, não há razão para que os bancos deem crédito para o setor privado, a não ser que cobrem a mesma taxa. Para conseguir pagar um juro alto, o governo imprime dinheiro, e as empresas cobram mais por seus produtos e serviços. De uma maneira ou de outra, o resultado é inflação. (leia mais em Cuidado com o Dragão). Seria uma pena. Depois de décadas de tentativas frustradas, o Congresso finalmente aprovou uma reforma tributária em dezembro que tem potencial de gerar uma economia de 28 bilhões de reais por ano só com a redução de horas gastas para o cálculo e o pagamento de tributos sobre o consumo, além de isentar exportações e acabar com as taxas redundantes. Um ganho de produtividade fabuloso, que deve dobrar o PIP potencial brasileiro ao fim do período de 10 anos de transição. E que pode render frutos já em 2024, dado o aumento de confiança que isso gera nos investidores de longo prazo. Mas para isso, o restante da economia precisa ajudar. As previsões são de crescimento baixo, mesmo se tudo caminhar nos trilhos. Não há margem para errar na condução da economia, ou a recessão vem.

Cuidado com o Dragão

RISCO - Fila da carne: carestia na alimentação pode vir já em janeiro
RISCO – Fila da carne: carestia na alimentação pode vir já em janeiro (Sebastião Moreira/EFE)

O Natal chegou cedo para a equipe do Banco Central, liderada por seu presidente, Roberto Campos Neto. A duas semanas do dia 25, saiu a notícia de que nos doze meses encerrados em novembro, o IPCA, o índice que representa a inflação do país, foi de 4,68%, já dentro dos limites estabelecidos para 2023. As projeções do mercado financeiro apontam um índice oficial de preços de 4,51% ao fim do ano, ultrapassando a meta de 3,25%, mas ainda abaixo do teto de 4,75% (a flexibilidade é de 1,5 ponto para cima ou para baixo do alvo). Não foi fácil. Houve uma pressão política intensa para que o banco abaixasse a taxa básica de juros, a Selic, a fim de destravar o crescimento com uma tolerância maior para o aumento de preços. O câmbio seguiu em um patamar alto de quase 5 reais para 1 dólar, e mesmo os países desenvolvidos gramaram para segurar sua própria inflação, o que contamina os preços daqui. Mas e agora? Passado o período de festas de fim de ano, 2024 já chega com os mesmos problemas do ciclo anterior. Mas com um fôlego renovado de políticos que querem juros baixos para turbinar a economia às vésperas das eleições, mesmo que o custo para a sociedade no longo prazo seja a volta do temido dragão da inflação. “Apesar de todas as conquistas, estamos cientes de que temos muito trabalho pela frente”, disse Campos Neto, em recente discurso a empresários.

A seriedade com que o presidente do bacen encara a sua missão constitucional de assegurar a estabilidade dos preços e preservar o poder de compra da moeda​ inspira a confiança do mercado. As projeções dos analistas para IPCA acumulado em dezembro de 2024 estão em uma média de 3,93%. As apostas na continuidade da desinflação acontecem mesmo depois que o Comitê de Política Monetária do Banco Central (Copom) realizou o quarto corte consecutivo na Selic, baixando a taxa para 11,75%, o menor número em quase dois anos. O Fed (equivalente ao banco central dos Estados Unidos) não chegou a cortar os seus juros, na faixa de 5,25% a 5,50%, mas indicou que vai recuar de seu maior nível desde 2001 nos próximos meses. Também coincide nos dois países um mercado de trabalho aquecido, o que costuma pressionar os preços para cima. Ainda assim, a inflação segue caindo. “Há uma expectativa de desaceleração da economia global, o que tende a segurar os preços de alimentos e energia, que têm um peso relevante nos índices”, explica André Braz, analista de inflação do FGV-Ibre. “Mas a inflação é traiçoeira, e há vários riscos à espreita”.

AQUECIDO - Centro de distribuição de sites de compra: emprego e consumo em alta
AQUECIDO – Centro de distribuição de sites de compra: emprego e consumo em alta (Bloomberg/Getty Images)

O primeiro risco logo nos próximos meses. A maior safra de grãos do ano acontece no primeiro trimestre, e seu tamanho vai definir se os alimentos vão ficar mais caros ou não. A alimentação representa cerca de 16% do orçamento das famílias, e aumentos em alimentos e seus insumos têm um impacto enorme. Tudo vai depender da data e intensidade das chuvas nas regiões Sul e Centro-Oeste. A cotação do barril de petróleo, que depende de uma infinidade de variáveis, entre elas o desenrolar das guerras na Rússia, Israel e potencialmente na Venezuela (leia mais em Cada Vez Mais Forte), também pode elevar o custo de diversos setores da economia, já que pressiona preço de combustíveis, plásticos e fertilizantes, entre muitos outros. Janeiro também traz reajustes que são carregados para o ano todo com pouca ou nenhuma chance de arrefecimento, como mensalidades escolares, aluguéis, e impostos. Os três exemplos, aliás, estão subindo acima da inflação oficial. Para se ter uma ideia do tamanho disso, um aumento na alíquota básica do ICMS (discutida em seis estados do Sul e do Sudeste), tem o potencial de causar, sozinho, um acréscimo de 0,4% no IPCA.

Para o resto do ano, a grande preocupação está na trajetória da dívida brasileira. O governo vai encerrar 2023 com um déficit projetado de 177 bilhões de reais, equivalentes a 1,7% do PIB. Apesar de todas as loas ouvidas no mercado aos esforços do ministro Haddad para manter acesa a proposta de déficit zero já em 2024 – que se refletem nas projeções otimistas – ninguém acredita que ele vá mesmo conseguir manter a promessa. Além da dificuldade intrínseca de se pagar uma dívida com o engessado orçamento brasileiro e o apetite dos políticos por verbas para seus redutos eleitorais e subsídios para seus financiadores de campanha, o próprio PT tem sido implacável nas críticas ao colega de partido. A presidente do partido, Gleisi Hoffmann, defendeu um déficit de 1% a 2% do PIB para impulsionar o crescimento econômico. Pior, o presidente Lula bradou que o setor público deve ampliar sua dívida. “Por que este país não pode se endividar para crescer?”, disse. São receitas que já foram usadas no Brasil e no exterior dezenas de vezes, sempre com resultados funestos e, claro, inflacionários.

Os desafios são enormes, e é fundamental que o governo trabalhe agora para garantir um Natal feliz para a equipe do Banco Central – e para todos os brasileiros traumatizados com a inflação – também em 2024.

Cada vez mais forte

A TODO VAPOR – Refinaria em Pernambuco: produção de petróleo vai aumentar (Agência Petrobras/Divulgação)

A piada é antiga entre os corretores de petróleo, mas nem sempre bem compreendida por quem não é do meio: o único presidente de petroleira do mundo que teme alta no preço do barril é o da Petrobras, porque o aumento dos lucros acaba custando seu emprego. O gracejo ilustra uma mudança profunda no cenário econômico brasileiro nas últimas décadas. Até o início dos anos 2000, o Brasil importava mais de 80% do óleo que consumia, mas hoje o país está entre os 10 maiores produtores do planeta. Só em 2022, foram exportados quase 43 bilhões de dólares de óleo bruto, cerca de 13% das vendas totais para o exterior.

Então se o lado ruim do aumento na cotação do commodity continua incomodando a população e, por consequência, o presidente em exercício (de qualquer partido ou orientação política), dado o aumento da gasolina e diesel na bomba e a pressão inflacionária, a verdade é que o cenário enche os cofres do governo de dólares dos royalties, traz superávit para a balança comercial e ajuda a diminuir o déficit fiscal. “O Brasil está aumentando a produção, o preço vai se manter em um patamar alto e o restante da economia não promete grande crescimento, então o petróleo vai ganhar muita importância no PIB em 2024”, analisa Adriano Pires, diretor do Centro Brasileiro de Infraestrutura (CBIE).

É agridoce, portanto, a expectativa dos analistas de que o preço do petróleo tende a se manter em um patamar alto entre 70 e 80 dólares em 2024. A se julgar com base na cotação de mais de 100 dólares que o barril de Brent (principal referência do setor) atingiu no primeiro trimestre de 2022 – e custou em um ano o emprego de 3 presidentes da Petrobras que se recusaram a baixar o preço do diesel com uma canetada – o patamar previsto é baixo. Mas o cenário para o próximo ano sugere, na verdade, que o preço deveria cair mais. É aí que entra a Organização dos Países Exportadores de Petróleo (Opep), que anunciou três cortes de produção em 2023 para manter o equilíbrio entre oferta e demanda em um patamar artificial.

Afora as decisões artificiais do cartel, há importantes fatores pressionando a cotação do barril de petróleo.

GUERRAS

O que levou o preço do barril a 120 dólares em março de 2022 foi o estouro da invasão da Rússia à Ucrânia. As sanções impostas pelos países do Ocidente ao segundo maior produtor de petróleo do mundo, justo em um momento em que a demanda pelo produto estava crescendo graças ao retorno das atividades econômicas pós Covid-19, fez o mercado temer uma crise de oferta. Desde então, o presidente Putin conseguiu driblar as restrições comerciais ao substituir seus compradores habituais na Europa por refinarias na Índia, Paquistão e China. Os Estados Unidos e o próprio Brasil aumentaram sua produção, e a falta de combustível no mercado que manteria o preço tão elevado não chegou a se concretizar. Estados Unidos, Brasil e Guiana exportaram mais, e houve uma certa vista grossa para que Irã e Venezuela ignorassem as sanções para manter o mercado abastecido.

DESVAIRIO – Maduro apresenta mapa “expandido” da Venezuela: aventura inconsequente (Zurimar Campos/Presidência da Venezuela/AFP)

O conflito entre Israel e o Hamas em Gaza, que começou em outubro, gerou preocupações semelhantes, ainda que em escala muito menor – não há produção de petróleo na região dos confronto. O risco ali é de que outros países do Oriente Médio sejam arrastados para a guerra, notadamente o Irã. O país controla o Estreito de Ormuz, no Golfo Pérsico, por onde passa mais de um terço de todo o “ouro negro” comercializados no mundo. Basicamente toda a exportação da Arábia Saudita, Iraque, Kuwait, Catar, Bahrein e Emirados Árabes Unidos precisa da autorização iraniana para ganhar os oceanos e chegar aos compradores nos cinco continentes. Como não interessa a ninguém que isso ocorra, o cenário é por ora considerado improvável pelo mercado.

Mas a prova de que o commodity ainda ainda vai gerar muito dinheiro a seus produtores, é a ameaça da Venezuela de encampar o território e, principalmente, os riquíssimos campos de petróleo no mar da Guiana. Desde 2015, o pequeno país de área menor que o estado de São Paulo descobriu reservas de 11 bilhões de barris em sua costa. A título de comparação, o Brasil tem reservas comprovadas de 14,9 bilhões de barris. O presidente venezuelano, Nicolás Maduro, promoveu um plebiscito para justificar a anexação, mas o trabalho de diplomacia e as manobras das Forças Armadas brasileiras e americanas na região já amainaram o discurso oficial. São dos Estados Unidos as duas empresas com maior investimento na região, Chevron e ExxonMobil. A reação das duas maiores potências do continente torna improvável qualquer medida militar por parte da Venezuela. E, do ponto de vista do mercado de petróleo, o impacto não seria muito significativo mesmo que Maduro se lance nessa aventura inconsequente, uma vez que a produção na Guiana ainda é incipiente e na Venezuela está em franca decadência desde 2016.

DESACELERAÇÃO DA ECONOMIA

Uma forte crise no mercado imobiliário vai frear o crescimento chinês em 2024 para 4,6%, a menor taxa em 30 anos (sem contar com 2020, o primeiro ano de pandemia), segundo o FMI. A Europa segue ainda não conseguiu recuperar o ímpeto de investimento desde a pandemia. Os juros altos em quase todo o lugar, para frear a inflação, e a uma tendência generalizada de se tentar diminuir a dependência de insumos e produtos estrangeiros, em uma busca por segurança em detrimento da eficiência econômica (leia mais em Pé no Freio), prometem diminuir o ritmo de crescimento global de 2,9% em 2023 para 2,7% no próximo ano. Já prevendo o movimento, a Arábia Saudita promoveu três cortes de produção para manter o preço artificialmente alto, e tenta convencer seus concorrentes a fazer o mesmo. Mas o petróleo caro não ajuda em nada o desenvolvimento, pois eleva os custos de virtualmente todos os setores da economia. “Desaceleração leva a uma demanda fraca por petróleo, o que derruba o preço”, explica Ricardo Kazan, sócio e gestor de commodities da Legacy Capital. “Mas quando a Arábia e os países da Opep cortam a produção para segurar a cotação do barril, acabam entregando participação no mercado para EUA, Brasil, etc., então eles precisam de cautela”.

TRANSIÇÃO ENERGÉTICA

O documento final da Cúpula do Clima das Nações Unidas (COP-28) realizado em dezembro, em Dubai, foi considerado histórico por trazer uma linguagem mais forte sobre a necessidade da diminuição no uso dos combustíveis fósseis. Além disso, o Brasil, os Estados Unidos, a China e mais 115 países prometeram triplicar a produção de energia de fontes renováveis até 2030. O problema é que nenhum dos anúncios veio acompanhado de metas precisas, planos detalhados ou punição em caso de descompromisso dos signatários. Some-se a isso à previsão da Opep de que a demanda de petróleo vai crescer 2,2 milhões de barris por dia no próximo ano, e o próprio Brasil projeta aumentar sua produção em 2024, e o resultado é uma unanimidade entre analistas de que o petróleo ainda vai reinar por muito tempo na matriz energética mundial. As empresas do setor estão tão confiantes nisso que a ExxonMobil comprou a Pioneer por 59,5 bilhões de dólares (64,5 bilhões, se contar a dívida) para aumentar sua exploração de xisto nos Estados Unidos, e a Chevron comprou a Hess por 53 bilhões de dólares (60 se considerar as dívidas) para incorporar suas licenças de exploração nana Guiana. “Tanto as empresas quanto os governos perceberam que, além da sustentabilidade, é fundamental garantir a segurança energética, que por enquanto só os combustíveis fósseis conseguem fazer”, analisa Pires. “Então os investimentos em produção estão voltando com força”.

BRASIL NA OPEP+

O presidente Lula confirmou em dezembro que o Brasil aceitou um convite para entrar na Opep+, a extensão da Organização dos Países Exportadores de Petróleo criada em 2016 para incluir economias que ganharam relevância no mercado da commodity mais recentemente, como Rússia, México e Cazaquistão. Seus membros participam das reuniões com os 13 fundadores originais da Opep, mas sem o compromisso de seguir as decisões ali tomadas. Segundo o presidente, seu interesse é unicamente convencer os países produtores de petróleo a se prepararem para o fim dos combustíveis fósseis e investir na transição energética. Mas nenhum analista acredita que a filiação brasileira terá impacto prático na exploração nacional do commodity, uma vez que vai contra os objetivos do país se submeter às decisões de terceiros. “O objetivo do cartel – cuja formação, aliás, é crime no Brasil – é manter o preço do barril o mais alto possível através da manipulação da oferta, o que não interessa nem ao governo, pois gera inflação, nem aos acionistas da Petrobras, que querem vender o maior volume que conseguirem”, analisa Pires. “Sem falar que se trata de um clube de autocratas, e se juntar a eles depõe contra a imagem democrática do país”.

Pé no freio

PAROU – Obra parada de estádio em Guangzhou: crise imobiliária na China (Costfoto/Future Publishing/Getty Images)

Levou mais de um ano desde a declaração da Organização Mundial de Saúde de que o surto de coronavírus podia ser classificado como uma pandemia, em março de 2020, para que as autoridades sanitárias reconhecessem a existência da Covid Longa. Trata-se de uma condição que aflige cerca de 20% dos infectados pela doença que, meses após o desaparecimento dos sintomas originais, começam a sentir falta de ar, dor de cabeça, diarreia, entre outros problemas nos sistemas pulmonar, cardiovascular e nervoso. Pois demorou ainda mais para que os economistas notassem uma dificuldade grande da economia de se manter aquecida depois de dois anos do fim dos lockdowns que derrubaram consumo, investimentos e PIB em 2020. Os três anos seguintes mostraram uma recuperação vigorosa, mas 2024 está se desenhando como um ano de desaceleração geral da economia. “Os governos colocaram muito dinheiro na economia nos anos de pandemia para não deixar a população desamparada em tempos de crise sanitária, o que era mesmo necessário, mas agora está chegando a conta na forma de juros altos e baixo crescimento”, explica Lia Valls, pesquisadora de comércio exterior da FGV Ibre.

Além da inflação, e consequente subida dos juros para segurar a escalada de preços, a pandemia trouxe uma mudança profunda na organização da economia mundial. Desde o fim da Guerra Fria, houve um esforço das empresas e países para deslocar a produção de bens e serviços para onde os custos fossem menores. A revolução digital nos anos 1990 e 2000 facilitou muito o processo de gestão de cadeias de suprimentos longas, complexas e espalhadas pelo globo, o que deu forma a como as relações comerciais se dão hoje. É fruto desse processo o crescimento vertiginoso da indústria chinesa. Até os livros brasileiros são impressos no continente asiático, dado o baixíssimo custo e alta qualidade das gráficas locais. Então, quando o governo do presidente Xi Jinping impôs lockdowns em alguns de seus principais pólos industriais, a logística de distribuição de produtos entrou em colapso. A paralisação do porto de Xangai em abril de 2022 devido a um surto da variante ômicron do coronavírus deixou 1 800 dos 9 000 navios porta-contêineres em operação no mundo fora de ação, o que gerou falta de peças, produtos e até comida na maioria dos países. “Os Estados Unidos e a Europa estão investindo muito dinheiro para diversificar seus fornecedores ou repatriar sua indústria, abrindo mão de eficiência econômica para ter mais segurança de abastecimento em caso de eventos disruptivos, sejam eles climáticos, geopolíticos ou sanitário”, explica Patrick Van den Bossche, analista de macroeconomia da consultoria Kearney. “Uma economia menos eficiente vai crescer menos, é inevitável”.

PREOCUPAÇÃO - Ursula von der Leyen, presidente da Comissão Europeia: estagnação
PREOCUPAÇÃO – Ursula von der Leyen, presidente da Comissão Europeia: estagnação (Frederick Floran/AFP)

Há, portanto, duas questões de fundo que desaceleram a economia em todo o planeta. Mas são as dificuldades locais nas grandes potências que preocupam mais. A China, que tem sido o grande motor do crescimento dos países emergentes nas últimas décadas com seu apetite insaciável por matéria-prima, está perdendo fôlego. Sua indústria de construção civil, responsável por 25% do PIB, está em uma crise difícil de ser contornada. Mais de 50 incorporadoras imobiliárias no último ano deram calotes em seus credores, e abandonaram 20 milhões de casas e apartamentos inacabados país afora. Os compradores, predominantemente de classe média, se endividaram e agora não tem nem imóvel, nem dinheiro para consumir, contaminando outros setores da economia local. O modelo autocrático de governo permite à China o uso de ferramentas de estímulo não disponíveis às democracias, mas a injeção de dinheiro no setor produtivo durante os anos de pandemia minaram os cofres públicos. “A maneira tradicional de estimular a economia, por meio de um boom de crédito e da alavancagem, chegou ao fim”, vaticina Zhu Ning, vice-diretor do Instituto de Finanças Avançadas de Xangai. Para um país acostumado a crescer a taxas maiores que 6% ao ano há mais de 30 anos, a projeção de expansão de 4,6% para 2024 é um banho de água fria no mundo inteiro.

A Europa sofre com um problema ainda mais complexo. A zona do euro está oficialmente estagnada desde o quarto trimestre de 2022, e não sabe o que fazer para sair da situação. A demanda externa, especialmente da China, não dá sinais de melhora, e os efeitos do aperto monetário sobre o crédito a famílias e empresas para controlar a inflação impedem um boom no consumo interno. A continuidade da guerra entre Rússia e Ucrânia também não ajuda em nada, seja pela inibição nos investimentos por risco de o continente ser arrastado para o conflito, seja pelo aumento expressivo no custo da energia devido às sanções que limitaram a compra do gás russo. É verdade que a inflação está finalmente dando sinais de arrefecimento – caiu para 2,4% em novembro – mas os programas governamentais de assistência introduzidos durante a crise de energia estão chegando ao fim, e há o risco de o dragão voltar a rugir. Ainda que não aconteça, os prováveis cortes nos juros do Banco Central Europeu a partir de janeiro demoram para surtir efeito no crescimento econômico, por isso os analistas projetam uma expansão entre 1% e 1,5% para o próximo ano.

ESPERANÇA - Feira de Natal em Nova York: recessão esperada não aconteceu
ESPERANÇA – Feira de Natal em Nova York: recessão esperada não aconteceu (Eilon Paz/Bloomberg/Getty Images)

Finalmente, os Estados Unidos contrariaram a maioria dos analistas e evitaram uma recessão em 2023 sem descuidar de trazer a inflação a um nível mais saudável, e mantendo o mercado de trabalho aquecido. O parrudo crescimento de 3,8% neste ano, segundo o banco J. P. Morgan, deve arrefecer para o próximo ano por motivo parecido ao europeu. De março de 2022 até julho de 2023, o país elevou os juros de referência nos EUA de uma faixa alvo de 0% a 0,25% para 5,25% a 5,50% e diminuiu a sua carteira de ativos financeiros em cerca de 1 trilhão de dólares, no maior aperto monetário desde a década de 1980. O Fed (equivalente ao banco central brasileiro) já anunciou que pretende fazer cortes em 2024, mas seus efeitos demoram cerca de um ano para serem vistos nos gráficos de crescimento do PIB. O consumo interno foi um dos motores do crescimento em 2023, graças ao mercado de trabalho surpreendentemente aquecido, mas o desempenho fraco das exportações vai diminuir o ritmo de crescimento total. E o mercado imobiliário americano está muito distante da crise generalizada da China, mas os juros altos afugentam compradores e o setor já está esfriando. O crescimento projetado pelo FMI para a maior economia do mundo é de 2,3% em 2023, e desacelera para 1,5% para o próximo ano.

Feitas todas as contas, o Banco Mundial projeta um crescimento de 2,9% em 2024, bem abaixo da média histórica de 3,8% entre 2000 e 2019. Mas tudo é uma questão de perspectiva. Qualquer político ou empresário daria tudo para contar com uma taxa como essa em 2020, quando a economia global encolheu 3,1%, no auge das medidas sanitárias para domar a pandemia de Covid. O Brasil não vai poder contar com um cenário internacional aquecido para impulsionar suas exportações, mas também não vai ser arrastado para uma crise externa. A única saída é correr com as próprias pernas. Mãos à obra.

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