A força das hidrovias – Como o Yangtzé move a colossal economia chinesa
O Yangtzé conecta centros industriais, zonas francas e portos estratégicos em uma rede logística vital para sua ambição de liderar o século XXI

Ao cortar a China de oeste a leste por mais de 6.300 quilômetros, o rio Yangtzé cumpre, há milênios, um papel central na história, na cultura e na economia do país.
É o maior rio da Ásia, o terceiro maior do mundo e o eixo natural em torno do qual civilizações floresceram, reinos foram unificados, cidades erguidas e, agora, cadeias logísticas avançadas estão sendo desenhadas.
Chamado pelos chineses de “Chang Jiang” (Grande Rio), ele é, ao mesmo tempo, um símbolo ancestral e um motor da modernização.
A importância do Yangtzé remonta a séculos antes da unificação da China. Nas suas margens se desenvolveram comunidades agrícolas que dominaram as técnicas de irrigação e navegação fluvial.
Dinastias como a Han e a Tang utilizaram o rio como eixo de integração territorial, estabelecendo rotas comerciais e canais artificiais que conectavam o Yangtzé a outras bacias importantes, como a do rio Amarelo.
O próprio conceito de “China unificada” foi forjado a partir da capacidade de conectar os extremos do país por água, algo que, até hoje, define o papel do rio na arquitetura do Estado chinês.
Mas é no século XXI que o Yangtzé volta a ocupar o centro do planejamento nacional, desta vez com um novo significado: o de artéria logística de baixo carbono.
Ao longo de seu percurso, que começa no planalto tibetano e deságua no mar da China Oriental, na altura de Xangai, o rio conecta zonas industriais, áreas rurais, cidades portuárias e plataformas de exportação.
Seu uso como hidrovia comercial é parte vital do chamado “Cinturão Econômico do Yangtzé”, estratégia que impulsiona mais de 40% do PIB chinês.
Cidades como Wuhan, Yichang, Nanjing e especialmente Chongqing têm se integrado a essa rede hídrica de transporte.
Em Chongqing, a mais de 2.000 quilômetros do mar, navios de grande porte carregam contêineres com carros elétricos, baterias e produtos industriais que seguirão por via fluvial até os portos do leste, como Xangai, e dali ao mundo.
A operação é possível graças a um sistema sofisticado de eclusas, dragagens e infraestrutura portuária, que transformaram o Yangtzé em uma das hidrovias comerciais mais longas e eficientes do planeta.
A escolha estratégica pelo transporte fluvial não é apenas econômica, é ambiental. Em termos de emissão de carbono, o modal hidroviário é até 80% mais eficiente do que o transporte rodoviário.
Num momento em que a China busca se posicionar como liderança global na transição ecológica, o Yangtzé ganha novo papel: o de canal verde para o crescimento sustentável.
Em 2023, foi anunciado um plano nacional para modernizar as hidrovias do país, com foco especial no Yangtzé. Ele prevê desde sensores inteligentes para o controle de tráfego até o uso crescente de embarcações elétricas e híbridas.
“A logística fluvial no Yangtzé é parte essencial da estratégia de neutralidade de carbono da China. Permite movimentar milhões de toneladas com menor impacto ambiental e enorme eficiência econômica”, explica Ma Jun, diretor do Institute of Public and Environmental Affairs, com sede em Pequim.
Nas últimas décadas, porém, o Yangtzé sofreu com pressões ambientais intensas: poluição industrial, dragagens descontroladas, construção de represas e sobrepesca.
Em resposta, o governo chinês implementou medidas drásticas: novas leis ambientais, zonas de proteção ao longo do rio, recuperação de áreas degradadas e até uma moratória de pesca de dez anos em centenas de trechos críticos.
Em 2021, entrou em vigor a Lei de Proteção do Rio Yangtzé, a primeira legislação ambiental chinesa dedicada a um rio específico.
Chongqing, por sua vez, desempenha papel duplo nesse processo. Ao mesmo tempo em que é um polo industrial e logístico central da hidrovia, a cidade também tem investido na recuperação ecológica das margens do Yangtzé.
Parques ribeirinhos, corredores verdes e sistemas de tratamento de esgoto foram ampliados para mitigar impactos.
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O porto de Guoyuan, um dos mais modernos do interior chinês, já opera parcialmente com energia limpa e integra ferrovias, rodovias e transporte fluvial em um modelo de logística intermodal.
O impacto desse sistema é colossal. Em 2023, mais de 3 bilhões de toneladas de carga circularam pela bacia do Yangtzé — número que supera toda a movimentação fluvial da União Europeia somada.
O modelo tem sido observado por especialistas internacionais como um possível exemplo a ser replicado em outras partes do mundo onde grandes rios cortam áreas urbanas densas, como o Amazonas, o Nilo e o Mekong.
Mas para além dos números, o Yangtzé permanece como uma âncora simbólica. Ele encarna a ideia de continuidade entre passado e futuro, entre a China das dinastias e a China das mega redes logísticas.
Na tradição taoísta, o rio representa a fluidez da vida, a adaptação e a força serena. Hoje, esses princípios parecem ressoar também no modo como o país projeta seu desenvolvimento: com fluxo constante, força calculada e uma corrente subterrânea de ambição global.
*o repórter viajou a convite do China Media Group