Pressão sobre Paulo Guedes aumenta com o congelamento do Renda Brasil
Incumbido de encontrar os recursos para programa de renda desejado por Bolsonaro, o ministro tem sua linha de ação cada vez mais restringida
Embates políticos e de ideias fazem parte do cotidiano de qualquer governo. Durante o segundo mandato do presidente Fernando Henrique Cardoso, ocorriam, dentro da equipe econômica, choques entre os grupos desenvolvimentista e monetarista. De um lado, estavam os que apoiavam gastos públicos como estímulo para a economia e, de outro, os da linha de Milton Friedman (1912-2006), defensores de um maior cuidado com as questões fiscais. Um dos abatidos na querela foi o engenheiro Clóvis Carvalho, ex-titular do finado Ministério do Desenvolvimento, que protagonizou um atrito público com o então ministro da Fazenda, Pedro Malan. O caso obrigou o presidente a assumir um lado e demitir Carvalho. Na atual gestão, há um embate similar, mas o presidente Jair Bolsonaro, em vez de marcar posição, faz acenos ambíguos aos dois lados. Apesar de seguidas declarações de apoio ao ideário liberal da equipe econômica de Paulo Guedes, as suas ações não condizem com a retórica — um reflexo da antecipação da campanha para sua reeleição. O problema é que as duas agendas são cada vez mais conflitantes.
Na manhã da terça-feira 15, o presidente utilizou as redes sociais para esculhambar o secretário especial de Fazenda, Waldery Rodrigues. Homem de confiança de Guedes, o secretário revelou em entrevista uma das ideias para viabilizar o Renda Brasil, programa que juntaria o auxílio emergencial pago na pandemia do coronavírus ao Bolsa Família. Para fúria do presidente, tratava-se do congelamento de aposentadorias e do salário mínimo, proposta dura que poderia minar sua popularidade. “Quem, porventura, vier me apresentar uma medida como essa, eu só posso dar um cartão vermelho”, disse Bolsonaro. “Até 2022, o meu governo está proibido de falar a palavra (sic) Renda Brasil. Vamos continuar com o Bolsa Família e ponto-final.”
A pressão logo aumentou sobre o Ministério da Economia. Depois de uma reunião de urgência com o presidente e da subsequente divulgação do vídeo, Guedes explicitou o seu dilema em apresentação na internet: “Quarenta milhões de desempregados e você vai ficar dando aumento de salário mínimo?”. É importante lembrar que não foi a primeira vez que uma tentativa de encontrar recursos para o Renda Brasil resultou em bronca de Bolsonaro. Em agosto, o presidente cancelou a apresentação do programa na véspera de sua divulgação, após descobrir que ele seria financiado com dinheiro do abono salarial. Na ocasião, declarou que não poderia tirar de “pobres” para dar aos “paupérrimos” e mandou Guedes reformular a proposta. Então, o ministro disse que os recursos sairiam do seu plano dos três D — desindexar, desvincular e desobrigar. Mas, com a rejeição à proposta de Waldery Rodrigues, a nova saída foi abatida logo no nascedouro. Tais ações dificultam a gestão eficaz e o desenvolvimento das ações sociais empreendidas pelo governo. “O país tem muitos programas para atender a população mais pobre, mas não existe avaliação de impacto”, analisa Marcos Lisboa, economista e presidente da escola de negócios Insper. “Eles são mal focados e não chegam aos grupos mais necessitados.”
O decretado fim do Renda Brasil, no entanto, é visto por muitos membros do governo apenas como um congelamento temporário do projeto, que deve retornar sob nova configuração. Tal expectativa se dá a partir da própria relevância do programa para a atração de dividendos eleitorais, uma vez que o auxílio emergencial tem seu fim previsto para dezembro. Estudo feito por Sergio Vale, economista-chefe da MB Associados, prevê impacto de queda de até 2,4% do PIB em 2021 se o auxílio emergencial não tiver nenhum substituto. Mesmo que essa perda seja em parte compensada pela recuperação pós-pandemia, o crescimento da economia ficaria em baixos 2,2%, levando o desemprego a atingir 17% da população antes de regredir. Para evitar esse cenário, Bolsonaro deve apoiar um Bolsa Família vitaminado. No Orçamento para 2021, o governo prevê que o programa atingirá 15,2 milhões de beneficiários, ao custo de 34,9 bilhões de reais. O valor médio recebido atualmente é de 190 reais. Mas o presidente acredita que pode incluir mais pessoas no programa, para chegar a cerca de 25 milhões de brasileiros. Gradativamente, também ampliaria os repasses. Nos seus sonhos de candidato, a meta é 500 reais às vésperas das eleições de 2022. É uma conta difícil de ser fechada, uma vez que, para oferecer metade desse valor a 25 milhões de pessoas, seriam necessários 75 bilhões de reais.
O campo de batalha será no Congresso Nacional, já que, no projeto de Orçamento para 2021, não há previsão de grande aumento de beneficiários do Bolsa Família. A equipe de Guedes defende, com todas as forças que lhe restam, o respeito ao teto de gastos como forma de evitar uma crise fiscal maior que afugente investimentos privados. Para cada recurso novo despendido, então, seria preciso “rebaixar o piso em vez de furar o teto”, conforme sustenta o ministro — e é disso que se trata a sua proposta dos três D. Os espaços são escassos. Segundo levantamento da Instituição Fiscal Independente (IFI) do Senado Federal, o governo vai precisar, para respeitar o teto, cortar no próximo ano 20,4 bilhões de reais em despesas discricionárias, aquelas que não são obrigatórias. Esse valor não contabiliza o descartado Renda Brasil ou mesmo a derrubada do veto presidencial à prorrogação de desonerações na folha salarial de diversos setores, algo que pode aumentar a conta em 10 bilhões.
Resumo da ópera: o pito presidencial disparado contra o secretário especial da Fazenda, Waldery Rodrigues, traz mais instabilidade a um cenário já turbulento. “A equipe econômica perdeu alguns dos seus expoentes mais relevantes e Guedes, hoje, se tornou alvo fácil do presidente”, avalia o cientista político Sérgio Praça. Em um episódio anterior, Marcos Cintra, então secretário da Receita, acabou demitido por defender o imposto sobre transações, nos moldes da CPMF, uma pauta cara a Guedes. “O presidente antecipou o calendário eleitoral e agora evita tomar decisões dolorosas”, afirma Cintra. Assim como aconteceu com Fernando Henrique no passado, o dia de Bolsonaro fazer uma escolha pode estar próximo. Ao assumir o Ministério da Economia, Guedes tomou para si uma missão que considera quase que divina. Sua permanência no governo, porém, passa pela aceitação de sua agenda. A pessoas próximas, ele tem confidenciado que, em dezembro, fará uma análise sobre ônus e bônus do desafio que tomou para si em 2018.
Publicado em VEJA de 23 de setembro de 2020, edição nº 2705