Dilma Rousseff, enquanto presidente da República, lançou mão de diversas medidas para maquiar as contas públicas. Uma delas, o uso de recursos dos bancos públicos para financiar o governo — as pedaladas fiscais —, custou o mandato. Mas outra ação criou polêmica em 2016. Com a alta do dólar, o Banco Central gerou um lucro extraordinário naquele ano, e o governo quis antecipar o pagamento desses recursos para cobrir o rombo das contas públicas. A ideia foi defenestrada pelos economistas e taxada como mais uma das artimanhas do rol de planos malignos que foram chamados de “contabilidade criativa”. Em 2020, o governo de Jair Bolsonaro deve lançar mão da mesma ideia. O comandante da área econômica, o ministro Paulo Guedes, quer usar 500 bilhões de reais “lucrados” pelo Banco Central devido à desvalorização do real para cobrir o Tesouro e ajudar a combater a crise. A medida é a mesma, mas o propósito e o motivo são diametralmente opostos.
ASSINE VEJA
Clique e AssineAqui estão as razões que demonstram — além do motivo de ser válida a antecipação do lucro agora — por que isso é tão necessário no momento:
1: Não há maquiagem das contas públicas — ao menos, até onde se sabe. O motivo para Dilma querer os lucros do BC era para fingir que estava alcançando a meta de superávit primário daquele ano. Depois, descobriu-se que as contas estavam tão estouradas que mesmo que os recursos do BC entrassem no caixa do governo, não fariam diferença. O tamanho do rombo só foi descoberto após o afastamento da mandatária, em abril de 2016. Naquele ano, o governo central (Tesouro, Banco Central e Previdência) registrou um déficit primário de 154 bilhões — o maior da história. Agora, não há qualquer motivo para se maquiar as contas públicas. Sabe-se que o déficit nominal chegará próximo a 1 trilhão de reais. E os 500 bilhões do BC vêm unicamente para dar fôlego ao Tesouro, que precisa lançar mão de recursos para garantir o pagamento de programas como o Auxílio Emergencial. “Não se trata de contabilidade criativa, pois o governo não está tentando encobrir. Até porque, a meta fiscal está em suspenso. No contexto atual sendo diferente da Dilma, não há nenhum problema de ordem técnica para fazer a transferência”, afirma a economia Monica de Bolle, pesquisadora da Universidade Johns Hopkins.
2: Existe previsão legal; antes não — Em 2019, foi aprovada a Lei 13.820, que prevê que em condições de severas restrições de liquidez para a rolagem da dívida pública o Conselho Monetário Nacional (CMN) pode autorizar a transferência do lucro cambial para o Tesouro. Há, portanto, clara previsão legal para a transferência dos recursos — o que não havia em 2016. Além disso, não há muitas discussões sobre a urgência gerada pela pandemia de Covid-19.
3: O governo está com dificuldade para se financiar, o que não acontecia antes — Há quatro anos, o sistema financeiro nacional estava bem diferente do atual. A taxa Selic, que remunera os títulos públicos, estava em exorbitantes 14,25% ao ano — fruto da administração inconsequente do governo da época. Desde a queda, paulatinamente isso vem mudando. Apesar da evolução, a pandemia pegou em cheiro o Brasil e trouxe vários problemas econômicos. Um deles é que o Tesouro tem enfrentado dificuldade para rolar seus títulos públicos — tanto que, apesar de a Selic estar a 3% ao ano, papeis com prazos mais longos estão sendo negociados com juros de mais de 8% ao ano. Essa diferença representa o quanto o mercado está reticente com o futuro das contas públicas no Brasil. Para piorar, há um volume grande de vencimentos no início de 2021. “Ao receber esse dinheiro, ou o Tesouro o deixará na conta única, como munição a ser exibida ao mercado — caso não aceitem rolar a dívida, o governo mostra que tem recursos para pagar — e reduzir o prêmio pedido pelo mercado, ou o Tesouro vai usar o dinheiro de imediato”, afirma Marcos Mendes, economista e professor do Insper. “Comparando a situação atual com o período Dilma, havia à época, uma deliberada decisão de expandir gastos primários e se buscava toda forma possível de financiar esses gastos. Uma das formas adotadas foi gastar em despesa primária dinheiro do orçamento previamente alocado para pagar juros e amortização da dívida, e buscar no BC dinheiro para quitar a dívida. Ou seja, foi uma escolha do governo de então gastar mais e buscar uma saída para financiar a dívida que gerou”, conclui.