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Por dentro do fenômeno Mercado Livre, a empresa mais valiosa da América Latina

Para defender a liderança, a companhia que detém 40% de participação no mercado brasileiro está fazendo o maior investimento de sua história

Por Ernesto Yoshida
Atualizado em 30 ago 2024, 10h54 - Publicado em 30 ago 2024, 06h00

Em 2 de agosto, o argentino Marcos Galperin, presidente da empresa de comércio eletrônico Mercado Livre, publicou um post em sua conta no X (antigo Twitter): “Había que hacerlo… y lo hicimos” (“Tinha que ser feito… e fizemos”). Ele comemorava o fato de o Mercado Livre conquistar o posto de empresa mais valiosa da América Latina, superando a Petrobras. Nesse dia, o Mercado Livre alcançou um valor de mercado de 88,6 bilhões de dólares, ante 87,8 bilhões da estatal brasileira. Nos dias seguintes, o Mercado Livre manteve a liderança — em 15 de agosto, valia mais de 100 bilhões de dólares.

A valorização das ações do Meli (o apelido do Mercado Livre) na bolsa americana Nasdaq nos últimos dias foi impulsionada pela safra de bons resultados. No segundo trimestre de 2024, o lucro líquido da companhia alcançou 531 milhões de dólares, o dobro do obtido no mesmo período do ano passado. A receita líquida também superou as expectativas e somou 5,1 bilhões de dólares no trimestre, alta de 42% em relação ao mesmo período de 2023. Os números confirmaram a continuidade do desempenho positivo do Mercado Livre, que lucrou quase 1 bilhão de dólares e teve receita de 14,5 bilhões no ano passado.

Nada mau para uma empresa que nasceu há 25 anos como uma startup em uma garagem no bairro de Saavedra, em Buenos Aires, liderada por Galperin. Ele teve a ideia de criar um site de leilões de produtos usados enquanto cursava MBA na Universidade Stanford. No curso, Galperin conheceu o brasileiro Stelleo Tolda, que se tornou seu sócio e veio tocar o negócio no Brasil dois meses depois da fundação. Tolda atualmente é consultor externo e membro do conselho de administração, presidido por Marcos Galperin.

Hoje o Mercado Livre atua em dezoito países da América Latina e é o maior grupo de comércio online da região — o Brasil é seu principal mercado, respondendo por mais de 50% do faturamento total. A ascensão do Mercado Livre contrasta com as crises recorrentes na economia argentina no mesmo período, com altos índices de inflação, déficit fiscal, instabilidade cambial e achatamento da renda — mais de 55% dos argentinos vivem na pobreza, segundo os dados mais recentes.

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Robôs em ação: redução em até 20% do tempo de processamento dos pedidos
Robôs em ação: redução em até 20% do tempo de processamento dos pedidos (Vinicius Stasolla/Mercado Livre/.)

Em entrevista por videoconferência (leia na pág. 30) a VEJA NEGÓCIOS, Galperin conta que, desde o início, vislumbrou a dimensão que o Mercado Livre poderia alcançar um dia. “A verdade é que éramos muito ambiciosos e, talvez, também ignorantes. Mas sempre soubemos que a internet iria mudar o mundo”, disse o empresário, de Montevidéu, no Uruguai, cidade em que mora desde 2002 e para onde transferiu a sede da empresa em 2020. “Sabíamos que a possibilidade de crescer era grande. O que não sabíamos era que seria tão difícil implementar nossa visão em toda a América Latina. Tivemos que desenvolver do zero os sistemas de logística, de pagamento e de financiamento. Isso demandou muito tempo, tecnologia e investimento.”

No Brasil, a expansão continua a passo acelerado. A empresa anunciou para este ano um investimento de 23 bilhões de reais, 21% acima do que fez em 2023 e o maior de sua história no país. Os recursos estão sendo direcionados principalmente para áreas-chave como tecnologia, logística e serviços financeiros. “Isso mostra a importância que a inovação e a infraestrutura tecnológica têm no nosso negócio para impulsionar o crescimento e aprimorar a experiência dos usuários”, diz Fernando Yunes, vice-presidente sênior e líder do Mercado Livre no Brasil. Um investimento recente foi a implantação, em junho, de um sistema de robôs na operação de um dos principais centros de distribuição da empresa no país, localizado em Cajamar, na região metropolitana de São Paulo. A tecnologia incorporou mais de 100 robôs móveis autônomos, responsáveis por distribuir e mover até 20 000 produtos por dia. “Com isso, devemos diminuir em até 20% o tempo de processamento de pedidos na operação”, afirma Yunes.

arte Mercado Livre

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Esse tipo de investimento é crucial para o Mercado Livre continuar melhorando aquilo que se tornou uma de suas vantagens competitivas: a logística. Quando a pandemia de covid-19 começou, a empresa entregava 31% das encomendas no prazo de 24 horas. Hoje, metade dos pedidos é entregue no mesmo dia ou no dia seguinte, e 80% chegam em até 48 horas. Para isso, o Mercado Livre conta com dez centros de distribuição, 109 service centers (locais em que os pacotes são recebidos e enviados aos consumidores por meio de veículos menores, como vans), nove aviões e uma frota de 28 600 veículos, dos quais 1 300 são elétricos.

“Nossa estrutura de logística foi montada para atender não somente à demanda de hoje, mas do futuro. Quando a pandemia começou e houve uma explosão das compras on-line, estávamos prontos para absorver o aumento da demanda”, diz Yunes. Com a ajuda da logística azeitada, o Mercado Livre dobrou sua participação no varejo eletrônico brasileiro em apenas quatro anos — de 20% no primeiro trimestre de 2020 para em torno de 40% atualmente. Para ter ideia do espaço ainda existente para crescer, o comércio digital representa 16% do total vendido no Brasil, de acordo com um levantamento da Fundação Getulio Vargas.

A eficiência logística é, por vezes, alvo de críticas, especialmente em relação às condições de trabalho oferecidas nos centros de distribuição e para os entregadores. Yunes responde a essas críticas destacando os esforços da empresa para garantir condições de trabalho seguras. “Nossos centros de distribuição são projetados e mantidos de acordo com elevados padrões de segurança e infraestrutura. Registramos taxas de acidentes de trabalho baixíssimas, de nível internacional”, afirma.

Vende-se de tudo

Diferentemente de muitas empresas que vendem produtos pela internet, o Mercado Livre não se considera uma companhia de varejo, mas de tecnologia. Esse é um ponto importante para explicar seu sucesso. “O Mercado Livre é uma empresa nativa digital, ou seja, já nasceu desse jeito há 25 anos. Por isso, nunca precisou adaptar seu negócio para o mundo digital, processo pelo qual muitas empresas passaram e passam até hoje”, obser­va Yunes.

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Yunes, líder no Brasil: estrutura de logística para atender ao crescimento da demanda
Yunes, líder no Brasil: estrutura de logística para atender ao crescimento da demanda (Mercado Livre/Divulgação)

Ser nativa digital significa que a empresa não carrega o peso de uma estrutura física. Durante a pandemia, o Mercado Livre não enfrentou o problema de ter lojas fechadas — pelo contrário, se tornou uma solução para aqueles comerciantes que estavam com seus estabelecimentos fechados. O número de produtos oferecidos no marketplace do Meli dobrou — de 224 milhões em 2019, antes da pandemia, para 448 milhões hoje. A empresa afirma que oferece em sua plataforma praticamente tudo o que é permitido por lei, de roupas e produtos de beleza até eletrônicos e automóveis.

O vasto sortimento está à disposição dos consumidores por meio do aplicativo do Mercado Livre, instalado em um de cada três celulares no Brasil. Uma preocupação constante é com a usabilidade do app, que deve permitir que as pessoas façam suas compras com poucos cliques e com várias opções de pagamento. Para melhorar a experiência dos clientes, o Mercado Livre investe fortemente na contratação de engenheiros e outros técnicos — são 16 000 profissionais trabalhando no desenvolvimento de produtos. O número total de empregados, aliás, subiu de menos de 10 000 antes da pandemia para 76 000 atualmente.

Embora o Mercado Livre não tenha lojas físicas, a empresa estabeleceu parcerias com diversos estabelecimentos, como lavanderias, papelarias e lojas de bairro, que funcionam como locais de coleta e devolução de produtos. Atualmente, existem 5 000 desses pontos, conhecidos como Kangu, espalhados pelo país. Para compensar a ausência de lojas físicas, que muitas vezes servem como vitrines para marcas, o Mercado Livre tem investido alto em marketing. Em janeiro, a empresa adquiriu os naming rights do Estádio do Pacaembu, em São Paulo, com um contrato estimado em 1 bilhão de reais por trinta anos. Além disso, investe em publicidade em programas de grande audiência na TV, como o Big Brother Brasil, da Globo.

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Liderança sólida

O consultor Alberto Serrentino, fundador da Varese Retail, especializada em varejo, classifica a trajetória do Mercado Livre desde a pandemia como “brilhante”. “A empresa ganhou consistência e escalou com grande velocidade e qualidade, expandindo sua base de clientes e diversificando o perfil dos sellers”, diz o consultor (sellers são os vendedores ou lojistas que utilizam uma plataforma on-line para vender seus produtos ou serviços). Serrentino chama a atenção para a distância que o Mercado Livre conseguiu abrir sobre os concorrentes. “O GMV (sigla em inglês do valor total bruto das vendas realizadas nas plataformas) do Mercado Livre é o dobro do obtido pelo Magalu, mais que o triplo do da Shopee e quatro vezes o valor das vendas da Amazon. Trata-se de uma liderança sólida.”

Outro ponto relevante, de acordo com João Pedro Soares, analista do banco Citi, é que o Mercado Livre não é apenas uma empresa de comércio eletrônico, mas um ecossistema que inclui operações de pagamentos, serviços digitais, cartões de crédito e empréstimos pessoais. “Quantas empresas possuem uma plataforma de pagamentos e crédito tão robusta como o Mercado Pago? Com as facilidades oferecidas pelo Mercado Pago, os usuários tendem a usar mais o marketplace, criando um círculo virtuoso”, diz Soares. Em 2023, o Mercado Pago foi responsável por 44% da receita do grupo argentino. O banco digital tem mais de 50 milhões de usuários ativos por mês.

Amazon nos Estados Unidos: a maior do mundo faturou 575 bilhões de dólares em 2023
Amazon nos Estados Unidos: a maior do mundo faturou 575 bilhões de dólares em 2023 (Deb Cohn-Orbach/UCG/Getty Images)

As perspectivas para o futuro do Mercado Livre não estão isentas de desafios. O mercado brasileiro deverá se tornar mais competitivo, com a chegada de plataformas asiáticas e o desenvolvimento da parceria entre o Magalu e a chinesa AliExpress, que anunciaram em junho um acordo para ofertar seus produtos em ambas as plataformas de market­place. “O Magalu vai ganhar musculatura com essa parceria com a AliExpress. A Shopee vem se expandindo de maneira muito agressiva, enquanto a Amazon também tem crescido de forma consistente. A Temu, site chinês que teve uma escalada impressionante nos Estados Unidos, também tenta ganhar mercado por aqui. E a Shein, apesar do foco inicial em moda e beleza, busca crescer como um marketplace multicategorias”, diz Serrentino.

Entrega da Shopee: as vendas digitais ainda são apenas 16% do comércio no Brasil
Entrega da Shopee: as vendas digitais ainda são apenas 16% do comércio no Brasil (Maria Júlia Melo/Divulgação)

Para o analista Soares, ao olhar para o retrovisor, o principal ponto de atenção para o Mercado Livre é a evolução da Amazon, a maior empresa de comércio eletrônico do mundo — no ano passado, faturou quase 575 bilhões de dólares, quarenta vezes mais do que o Mercado Livre. “Em termos de desafios de longo prazo, a única concorrente que realmente pode preocupar o Mercado Livre é a Amazon”, afirma Soares. “Se a Amazon, com seu poder financeiro gigantesco, decidir que quer ser a número 1 na América Latina, isso seria motivo de preocupação para qualquer empresa.”

Otimista, Galperin, o presidente do Mercado Livre, gosta de dizer que a história da empresa está só começando e que o melhor ainda está por vir. Resta saber se o melhor virá para a empresa argentina ou para uma de suas concorrentes.

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Publicado em VEJA, agosto de 2024, edição VEJA Negócios nº 5

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