Plano de guerra: como o governo deve agir para combater a crise econômica
É preciso planejar soluções com efeito em curto, médio e longo prazo — para trabalhadores e empresas de todos os tamanho e setores
Economista tido como o mais liberal dos liberais — ao menos entre os que realmente importam para o debate público —, Milton Friedman entendia a necessidade de os governos criarem redes de sustentação sociais. Foi de sua sala na Universidade de Chicago que saiu, em 1962, um projeto de renda mínima universal — inspiração para o brasileiro Bolsa Família e o recém-aprovado projeto do chamado “coronavoucher”, que distribuirá 600 reais pelos próximos meses a trabalhadores informais atingidos pela crise desencadeada pelo novo coronavírus.
Os princípios desenhados por Friedman e sua equipe são um exemplo de que o liberalismo admite, em determinadas — e estritas — circunstâncias, intervenções do Estado para a sustentação da economia. O momento de alto stress econômico provocado pela Covid-19 é, sem dúvida, um deles. Trata-se de uma situação de caos social e econômico vista somente em episódios como as duas grandes guerras mundiais. Em três meses, a economia global já entrou em uma espiral de declínio e, em se tratando das preocupações que enchem a cabeça de dez entre dez governantes do planeta, só perde para a mortandade decorrente da contaminação provocada pelo vírus. As democracias liberais da Europa e os Estados Unidos não hesitaram em abrir os cofres para amparar trabalhadores e empresários diante da ameaça. No Brasil, não vem sendo assim. A lentidão e a efetividade parcial das medidas que têm sido tomadas só não chamam mais atenção porque vêm acompanhadas do comportamento negacionista e pouco esclarecido do presidente Jair Bolsonaro.
Até o momento, o ministro da Economia, Paulo Guedes, conseguiu liberar 101 bilhões de reais em dinheiro novo para conter o impacto do coronavírus. É injusto comparar, mas trata-se de uma quantia irrisória quando confrontada com o montante de 2 trilhões de dólares (ou 10,5 trilhões de reais) destinados pelos Estados Unidos a programas de abrangência infinitamente superior. Surpreendente, o pacote da administração de Donald Trump vai além de mitigações pontuais entre os menos favorecidos e funciona como um ponto de partida para o engajamento de todos os setores econômicos. Um olhar, de fato, para o futuro (o que ainda não temos por aqui). Além de muito dinheiro, situações como a da pandemia da Covid-19 exigem uma ação firme dos governos na liderança de um processo capaz de envolver toda a sociedade. Algo como o que foi feito nos anos 1930, quando o presidente americano Franklin Delano Roosevelt estabeleceu o New Deal (Novo Acordo, em livre tradução) para revitalizar a economia dos Estados Unidos após o crash da bolsa de 1929.
O cenário de privações que se desenha com o coronavírus é, do ponto de vista histórico e cultural, estranho aos brasileiros. Diferentemente dos americanos e europeus, não temos familiaridade com conflagrações bélicas, mortandades e devastação decorrentes de acontecimentos desse porte. E um espelho disso é a Constituição brasileira, gestada à saída da ditadura militar pelo então presidente da Câmara dos Deputados, Ulysses Guimarães, e desenhada sob uma óptica diplomática e de normalidade político-econômica. Sob esse aspecto, o texto da Carta precisa mudar. Hoje ela não abre possibilidades para que dispositivos focados na responsabilidade econômica do Executivo e contenção de abusos, como a Regra de Ouro, o Teto de Gastos, as vinculações de receitas para educação (25%) e saúde (13,2%), sejam flexibilizados em momentos de excepcionalidade econômica ou em tragédias como a pandemia. Com isso, o governo federal pode dispor de apenas 4% de todo o orçamento público para enfrentar a Covid-19.
No domingo 29, o ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal, deu uma chance para o governo aumentar suas possibilidades de reação. Ele autorizou o Executivo a descumprir a Lei de Responsabilidade Fiscal e a Lei de Diretrizes Orçamentárias para realizar gastos acima do previsto, livrando o presidente de possíveis sanções administrativas. É uma medida importante, mas ainda insuficiente. Já é consenso que o Brasil não vive uma crise episódica, mas um abalo sísmico que criará cicatrizes profundas na economia nacional. “É correta a visão de que os governos precisam ser cautelosos nos gastos públicos, mas não podemos ter uma visão extremista que impeça o país de reagir, o que inclui gastar o que for necessário, diante da excepcionalidade como a que vivemos”, defende o economista Raul Velloso, ex-secretário para Assuntos Econômicos do Ministério do Planejamento.
É praticamente ponto pacífico entre os economistas, de diversos matizes teóricos, o fato de que o Congresso Nacional deve ajudar o Executivo no relaxamento temporário das obrigações orçamentárias e definir os gatilhos para que se desvincule praticamente todo o Orçamento. Nesse sentido, ambas as esferas precisam trabalhar em profunda consonância — o que não existe até então, mesmo porque o governo tem se mostrado pouco engajado em tal esforço. “O Palácio do Planalto precisa, primeiramente, enviar uma medida ao Congresso que permita a emissão de dívida e a suspensão da Regra de Ouro. O Executivo precisa dessa autorização para poder gastar quanto for necessário e com isso diminuir a paralisia que está rapidamente se espalhando pela atividade econômica”, explica a economista carioca Monica de Bolle, professora da Universidade Johns Hopkins, nos Estados Unidos.
A pandemia da Covid-19 tem demonstrado que as economias modernas precisam ter condições de se ajustar a uma nova realidade praticamente da noite para o dia. Atitudes como as de empresas que rapidamente mudam de ramo de atividade para atender a demandas específicas ou mesmo o recrutamento de mão de obra para produzir insumos críticos, como ocorreu com a instalação de uma linha de produção de máscaras descartáveis em presídios de São Paulo, são louváveis, mas insuficientes. É preciso planejar soluções com efeito em curto, médio e longo prazo — para trabalhadores e empresas de todos os tamanho e setores. “Já existe um consenso sobre as iniciativas que precisam ser postas em prática, o debate é sobre grau, intensidade e duração. O governo terá de garantir renda, empréstimos e crédito para a população”, avalia Nelson Barbosa, ex-ministro da Fazenda.
Em meio à crise do coronavírus, o ministro Paulo Guedes vive o maior e o mais decisivo desafio de sua carreira. Sua reação inicial, admita-se, não foi das melhores. Primeiro, Guedes não antecipou os efeitos da crise. Na verdade, achou que seria apenas uma “gripezinha” na economia. Em seguida, quase num surto depressivo, o ministro passou as duas primeiras semanas de expansão da pandemia no país refugiado em seu apartamento, no Rio de Janeiro, sem muita reação. De volta ao trabalho em Brasília na segunda-feira 30, começou a participar ao longo da semana das entrevistas coletivas sobre a evolução da pandemia no Palácio do Planalto e alinhou seu discurso ao dos ministros Sergio Moro, da Justiça, e Luiz Henrique Mandetta, da Saúde. Em suas aparições públicas, Guedes reforçou que a estratégia de combate à paralisia econômica ultrapassa os 750 bilhões de reais — em sua maioria, antecipações de pagamentos de assistência social à população mais necessitada, postergações no recolhimento de impostos ou créditos corrigidos pela Selic para o pagamento de salários. Ou seja, o dinheiro a ser usado hoje faltará amanhã. Apesar de positivas, as medidas não darão o empuxo que a economia brasileira precisará para sair da UTI após a Covid-19. “Guinadas temporais, típicas de crise de grande porte, exigem estratégias diferentes das que vinham sendo adotadas”, diz Marcílio Marques Moreira, ex-ministro da Fazenda.
O caso é sério e demanda um plano mais parrudo rapidamente. Na avaliação que o próprio Guedes tem feito a membros de sua equipe e colegas de ministério, o Brasil ainda resiste à quarentena durante abril e maio. Depois desse período, as consequências poderão ser incontornáveis. O ministro tem reforçado também que o momento de deixar o chamado lockdown deve ser determinado por critérios técnicos que cabem ao Ministério da Saúde. Mesmo atribuindo a decisão final a Mandetta e sua equipe, Guedes busca uma solução intermediária para encurtar a quarentena. Nos últimos dias, sua equipe tem estudado os setores mais sensíveis ao impacto da pandemia. Ele recebeu mais de 700 demandas de federações, sindicatos, associações e empresários, com pedidos que variam de questões tributárias a trabalhistas. Após analisar as áreas mais sensíveis e cruzar com informações da evolução da pandemia no mundo e no Brasil, a equipe econômica desenhou um cenário para a adoção de uma quarentena mais seletiva. A proposta começou a ser discutida na terça-feira 31, em uma reunião com Bolsonaro, que incluiu ainda Mandetta e Moro.
Na prática, a medida implicaria manter em quarentena os idosos acima de 60 anos, pessoas com doenças crônicas e infectados, além de crianças e professores. Esse último grupo voltaria às aulas um mês depois que o Ministério da Saúde liberasse a população economicamente ativa. Para reforçar os cuidados com a saúde dos brasileiros, seria feito um enorme esforço para esterilizar espaços públicos e manter o distanciamento social. Assim, a perspectiva seria destravar o país e, a partir do terceiro mês, retomar a produtividade. Esse, no entanto, é o cenário ideal para a área econômica, que terá de contar com o aval da Saúde — além de depender da evolução da contaminação no país (veja a reportagem na pág. 66). Mesmo assim, passa longe das reais necessidades diante da hecatombe econômica que se avizinha. Ao propor o New Deal em 1933, Roosevelt proclamou: “Não é hora de duvidar ou hesitar, mas de agir”. O mesmo vale para o Brasil de 2020.
Publicado em VEJA de 8 de abril de 2020, edição nº 2681