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Pagar pra quê?

O governo concede anistia bilionária de dívidas tributárias de empresas, muitas delas com políticos entre os sócios, e incentiva a cultura do mau pagador

Por Bianca Alvarenga Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 23 nov 2018, 07h00 - Publicado em 23 nov 2018, 07h00

No fim de 2017, quando ainda alimentava esperança de aprovar a reforma da Previdência, o presidente Michel Temer sancionou o Programa Especial de Regularização Tributária (Pert). Em troca do apoio dos congressistas à reforma, o Tesouro Nacional estava abrindo mão de multas, encargos e juros de dívidas tributárias acumuladas por anos. Como se sabe, a mudança nas regras de pensões e aposentadorias acabou nunca acontecendo — mas o perdão aos maus pagadores seguiu em frente. Em linguagem de Brasília, pegaram o “toma lá” sem cumprir com o “dá cá”. A farra foi tamanha que 73 deputados e senadores embarcaram no programa e deram cabo de dívidas penduradas das próprias empresas. O relator do texto, deputado Newton Cardoso Jr. (MDB-­MG), é sócio da Companhia Siderúrgica Pitangui, que devia quase 50 milhões de reais. Ganhou um autoperdão nos juros e nas multas.

(Arte/VEJA)

A justificativa apresentada para a aprovação do Pert, chamado normalmente de Refis (sigla proveniente de Programa de Recuperação Fiscal, como foram nomeadas medidas similares no passado), era dar um auxílio às pequenas e médias empresas afetadas pela crise econômica de 2015 e 2016, que derrubou o faturamento. Mas um levantamento da Associação Nacional dos Advogados Públicos Federais (Anafe) mostra que cinco entre as principais empresas do país receberam o maior perdão nas dívidas tributárias (veja o quadro). Somente a Petrobras, a número 1 da lista, ganhou o perdão de 3 bilhões de reais e poderá pagar o restante da dívida em 150 meses. A JBS, vice-líder e uma das chamadas campeãs nacionais por ter recebido empréstimos subsidiados pelo BNDES, viu evaporar-se 1 bilhão de reais em dívida. No total, mais de 280 000 empresas conseguiram um alívio nas contas, somando um perdão fiscal da ordem de 38 bilhões de reais, segundo estimativas da Receita Federal. “Programas de renegociação de dívidas tributárias, com condições favoráveis para os devedores, são cada vez mais recorrentes no Brasil. Na última década, tivemos um a cada três anos, em média”, diz Marcelino Rodrigues, procurador da Fazenda Nacional e presidente da Anafe.

A consequência é óbvia: muitas empresas, na primeira dificuldade, deixam de pagar seus impostos porque sabem que, mais cedo ou mais tarde, eles serão negociados em condições paternais. Muitas das que foram beneficiadas no Pert, inclusive, tinham dívidas oriundas do descumprimento de renegociações de parcelamentos de débitos feitas em 2014 e 2009, os chamados “Refis da crise”. Os termos do acordo estão dentro da lei — ou seja, não há nada de ilegal na renegociação — e sua aplicação pode ser benéfica, quando evita a falência das empresas. Mas os programas recorrentes criam um incentivo perverso para o calote, e quem paga a conta é o contribuinte. Já há casos de companhias que não estão honrando o compromisso assumido no ano passado. A indústria Ciemarsal, que produz sal, fechou um acordo para renegociar sua dívida, recebeu um perdão de 137 milhões de reais, mas não pagou nenhuma das nove parcelas iniciais. Situações como essa fizeram com que a arrecadação do Pert fosse quase metade da prevista pelo governo.

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No papel, o programa determina que as empresas que deixam de honrar três parcelas consecutivas devem ser excluídas, mas Rodrigues, da Anafe, explica que não se trata de um processo simples: “É preciso notificar a empresa, recalcular a dívida e retomar a cobrança”. Os procuradores defendem o fim das renegociações frequentes, para acabar com a cultura do mau pagador. Se o governo não disciplinar a questão, correrá o risco de ver o volume de tributos a receber aumentar significativamente. Quem paga em dia é prejudicado, já que a concorrência pode trapacear e ser perdoada repetidamente.

O perdão de tributos em atraso, e até mesmo seu parcelamento, é uma jabuticaba — algo que só existe no Brasil. “Fizemos um levantamento e constatamos que nenhum outro país concede esse tipo de abatimento. Nos EUA, há casos de parcelamento de dívidas para setores específicos, mas com a cobrança rigorosa de juros e encargos”, afirma Rodrigues. Durante a crise de 2008, por exemplo, empresas americanas que estavam comprovadamente a caminho da falência podiam pagar os débitos em parcelas. No Refis brasileiro, qualquer empresa pode ser beneficiada pelo prazo de pagamento de 175 meses, e quem optar por pagar aos poucos terá a dívida corrigida somente pela Selic, a taxa básica de juros. Na prática, o Estado está financiando os maus pagadores a juros baixíssimos. Embora tenham tentado de forma incansável, os atuais membros do Ministério da Fazenda lograram pouco êxito em regrar a questão. A próxima equipe econômica talvez quebre esse ciclo histórico e consiga vencer a pressão do Congresso para a aprovação ocasional de programas de refinanciamento de dívidas. Caso contrário, veremos a perpetuação do mau exemplo, com o aval e o incentivo do Estado.

Publicado em VEJA de 28 de novembro de 2018, edição nº 2610

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