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Os desafios e oportunidades para o Brasil na guerra tarifária de Trump

Confirmando as previsões, o republicano coloca em prática uma política que reverte uma tendência de décadas de abertura dos Estados Unidos

Por Diogo Schelp Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO , Juliana Elias Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO , Felipe Erlich Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 4 abr 2025, 13h08 - Publicado em 4 abr 2025, 06h00

O presidente americano Donald Trump escolheu o Jardim das Rosas, na Casa Branca, como o local para enterrar mais de quatro décadas de liderança americana em prol do livre mercado. O fato de Trump ter a intenção de arrancar a grama do jardim, construído em 1913, para substituí-lo por um pátio de cimento, conforme foi divulgado em janeiro, completa a metáfora: a depender do republicano, o sistema globalizado — sustentado nos ideais de abertura e interdependência econômica que o seu partido, historicamente, ajudou a promover — não sairá jamais daquele túmulo. O golpe fatal foi a ordem executiva anunciada por Trump, na quarta 2, para entrar em vigor à meia-noite de sábado 5, criando uma tarifa mínima de 10% para todas as importações, além de taxas adicionais para cerca de seis dezenas de países.

Os mais afetados foram os que usufruem de grandes superávits comerciais com os americanos. Trump fez questão de frisar que, muitas vezes, países aliados são os que mais “tiram vantagem” das baixas tarifas até então praticadas pelos Estados Unidos. Não mais. Com uma canetada, ele fez o país subir várias posições no ranking das nações mais protecionistas do G20, o grupo das maiores economias do mundo. O Brasil pode respirar aliviado pelo menos num primeiro momento: foi submetido apenas à tarifa básica de 10%. No comércio bilateral, os Estados Unidos exportam mais do que importam, apesar de reclamarem das nossas taxas, como as que incidem sobre o etanol. Nos últimos meses, o governo daqui vem agindo de forma perigosamente bipolar. Enquanto diplomatas apresentam nos bastidores as razões pelas quais as barreiras aos produtos nacionais prejudicariam o próprio setor produtivo americano, o presidente Lula vem subindo o tom contra Trump. Na quinta 3, ao fazer um balanço das medidas, declarou: “Tomaremos todas as medidas cabíveis para defender as nossas empresas e os nossos trabalhadores brasileiros, tendo como referência a lei da reciprocidade econômica aprovada ontem pelo Congresso Nacional e as diretrizes da OMC”.

BASTIDORES - Alckmin e Vieira: liderança nas negociações com os EUA
BASTIDORES - Alckmin e Vieira: liderança nas negociações com os EUA (Ton Molina/Fotoarena/.)

Poderia ter sido bem pior para o Brasil, que ficou em segundo plano na declaração de guerra de Trump ao livre comércio. Ele acredita que os anos áureos do seu país ocorreram em um passado indefinido, quando a indústria era forte e produzia tudo o que a população precisava. Isso teria ficado para trás com as políticas de abertura comercial e com a globalização. “Durante anos, cidadãos americanos que trabalhavam duro foram forçados a ficar à margem, enquanto outras nações ficaram mais ricas e poderosas, muito disso às nossas custas. Mas agora é a nossa vez de prosperar”, disse Trump. Nada disso, porém, tem lastro nos fatos. A ampliação do comércio mundial na realidade permitiu aos Estados Unidos quadruplicar sua riqueza, voltando-se mais para a inovação tecnológica e para os serviços, enquanto outros países se dedicavam a produzir mais barato os artigos demandados pelos consumidores americanos. Isso, inclusive, ajudou a manter a inflação e os juros no país em níveis mais baixos. O que vem pela frente é ruim para o mundo e potencialmente desastroso para os Estados Unidos.

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DISPUTA - Milho: o etanol americano enfrenta tarifas altas aqui no país
DISPUTA - Milho: o etanol americano enfrenta tarifas altas aqui no país (Scott Olson/Getty Images)

A Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE) calculou que uma tarifa adicional de 10% sobre as importações americanas levaria a uma desaceleração da economia mundial e a um aumento da inflação já em 2025. Dentro de três anos, o crescimento do PIB global pode sofrer uma redução de até 0,3%. Essas estimativas, porém, são baseadas em um dado conservador. A tarifa global média americana pode ser maior, perto de 23%, quando se incluem na conta as taxas mais altas que foram atribuídas a importantes parceiros comerciais dos Estados Unidos, como a China (com 34%), a União Europeia (20%) e o Japão (24%), e as barreiras de 25% à importação de aço e alumínio e de carros e autopeças que já haviam sido anunciadas antes. Os danos na economia americana terão repercussão global. Apesar de Trump apresentar seu tarifaço como uma política para reindustrializar os Estados Unidos, as empresas locais não têm condições de atender à demanda interna rapidamente, o que deve gerar inflação local, exigindo uma elevação dos juros por parte do Fed, o banco central americano. Isso tende a obrigar outros países, como o Brasil, a fazer o mesmo.

Os precedentes históricos não são nada animadores. Em 1930, o governo do então presidente Herbert Hoover elevou as tarifas de importação para cerca de 20%, no que ficou conhecido como o pacote Smoot-Hawley, com o intuito de proteger as empresas e os agricultores americanos durante a maior crise econômica do século XX. A medida derrubou o comércio do país com o resto do mundo e prolongou os efeitos da Grande Depressão. A repercussão negativa do protecionismo de Trump promete ser maior, pois os mercados globais hoje são mais conectados: as importações representam atualmente 14% do PIB americano, o triplo de 1930. As cadeias de fornecimento precisarão ser inteiramente reformuladas. Um Nissan Rogue fabricado nos Estados Unidos, por exemplo, é composto por 75% de peças importadas de outros países. Já um automóvel montado no México, para ser vendido aos americanos, costuma conter componentes trazidos dos Estados Unidos, que por sua vez são feitos de materiais de origem mexicana. Para ser produzido, portanto, um veículo cruza a fronteira em partes diversas vezes.

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Por baixo da camada de alto impacto que o tarifaço de Trump terá para o comércio global, em que todos os países saem perdendo, desponta uma oportunidade para o Brasil. “A atitude de Trump em relação ao Brasil poderia ter sido pior. Comparativamente, nossa situação ficou melhor do que a de parceiros próximos dos Estados Unidos, como Israel, que vai pagar 17% de tarifa”, diz Welber Barral, ex-secretário de Comércio Exterior do Brasil e sócio da consultoria BMJ. Produtos brasileiros que hoje competem com europeus e asiáticos, por exemplo, podem ser beneficiados. “O fato de o país ter uma tarifa 24 pontos percentuais menor do que a taxação da China, por exemplo, faz muita diferença na hora de o importador americano escolher de quem comprar”, afirma Barral.

Se o governo Lula fizer os movimentos certos e as empresas brasileiras souberem se adaptar com rapidez, será possível fazer frente a concorrentes que produzem a custos mais baixos em outros países. As economias do Sudeste Asiático, por exemplo, que foram pesadamente taxadas por Trump, estão entre as maiores exportadoras de calçados para os EUA. O Brasil pode se tornar mais competitivo nessa disputa. Para que os ganhos não sejam anulados pela concorrência redobrada em outros países, que serão inundados por produtos que antes iam para os Estados Unidos, será essencial avançar em acordos como o que está sendo gestado entre UE e Mercosul. “Essa nova configuração cria um cenário singular: enquanto o mundo se fecha, o Brasil pode se abrir”, diz Gustavo Diniz Junqueira, ex-presidente da Sociedade Rural Brasileira, que vê oportunidade, por exemplo, para que produtos de maior valor agregado, inclusive da agroindústria, ganhem espaço no exterior.

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SEM MEDO - Embraer: mesmo com tarifa de 10%, empresa não deve ter perdas
SEM MEDO - Embraer: mesmo com tarifa de 10%, empresa não deve ter perdas (Lucas Lacaz Ruiz/Fotoarena/.)

Um exemplo de como a nova tarifa básica de 10% pode ser compensada por outros fatores é o da Embraer, que tem nas companhias aéreas e na aviação executiva dos Estados Unidos os seus principais clientes. Atualmente, a alíquota de importação sobre os aviões brasileiros é nula. A nova cobrança deve ter pouco impacto na empresa. Isso porque, em alguns segmentos de aeronaves, a Embraer praticamente não tem concorrentes e o mais provável é que os compradores tenham de absorver o custo maior da importação. Em outros, a fabricante se beneficia das barreiras ainda maiores que as rivais estrangeiras podem vir a enfrentar. Uma delas é a Airbus, da França, que pagará 20% para entrar nos Estados Unidos. A outra é a Bombardier, do Canadá, que por ora está livre das sobretaxas, mas pode vir a ser tarifada em 25%. O caso da Embraer também serve para entender por que responder ao protecionismo de Trump na mesma moeda não seria um bom negócio. Boa parte das peças usadas na produção das aeronaves aqui é importada dos Estados Unidos. Aumentar o custo delas reduziria a competitividade da indústria nacional. Sobretaxar a importação de aviões americanos, como os da Boeing, outra opção de retaliação, por sua vez, penalizaria as companhias aéreas brasileiras.

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Há, na ordem executiva assinada por Trump, alguns desestímulos adicionais à retaliação. O texto dá ao presidente americano o poder de aumentar ainda mais as tarifas para os parceiros que decidirem reagir com a mesma medida — e de reduzir a taxação para aqueles que resolverem se abrir mais para as exportações dos Estados Unidos. Diante disso, os europeus se veem no dilema de manter ou não sua promessa de revidar na mesma proporção. A presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, disse que o bloco já tinha na mão um pacote de retaliação contra a tarifa de 25% sobre aço, alumínio e automóveis e que, diante da nova taxação, prepararia mais um conjunto de contramedidas. O bloco quer negociar em condição de força com os Estados Unidos.

Já o governo brasileiro afirmou, em nota, que “a imposição unilateral de tarifa linear adicional de 10% ao Brasil com a alegação da necessidade de se restabelecer o equilíbrio e a ‘reciprocidade comercial’ não reflete a realidade”. No mesmo dia do anúncio do tarifaço de Trump, a Câmara dos Deputados aprovou a lei citada por Lula em seu discurso na quinta 3, que permite ao governo adotar medidas de reciprocidade comercial em resposta a restrições unilaterais às exportações brasileiras. O texto vai para sanção do presidente Lula, mas o governo deve recorrer a esse instrumento apenas em último caso. O foco será buscar a mesa de negociação, tarefa que deve ficar a cargo do vice-presidente Geraldo Alckmin, que também é ministro do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços, e do chanceler Mauro Vieira. Isso pode significar não só uma continuação das conversas já em curso para criar isenções a itens siderúrgicos brasileiros, mas também para encontrar brechas na taxa mínima de 10%. “O Brasil pode negociar cotas ou um gradualismo na introdução da tarifa, entre outros dispositivos disponíveis, para atenuar o impacto sobre o comércio bilateral”, diz o economista Gesner Oliveira, sócio da consultoria GO Associados e professor da FGV.

CRISE - Hoover em 1930: anúncio de tarifas com efeitos desastrosos
CRISE - Hoover em 1930: anúncio de tarifas com efeitos desastrosos (GRANGER/Alamy/Fotoarena/.)
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O problema é que o balcão de negócios da Casa Branca vai estar congestionado. Aliados históricos dos Estados Unidos, como a Europa e o Japão, devem assumir a preferência na fila de conversas. As idas e vindas de Trump na imposição de uma tarifa geral de 25% sobre produtos do Canadá e do México, por ora parcialmente suspensa, demonstram que é possível encontrar algum tipo de entendimento, ainda que de durabilidade duvidosa, com o governo americano. Enquanto as placas tectônicas do comércio mundial se reacomodam, o choque se fará sentir em toda a cadeia de valor global: canais de comércio serão desmanchados, importadores vão refazer contas e buscar alternativas, fornecedores vão congelar investimentos e as bolsas de valores se manterão instáveis. A única certeza da guerra de Trump: o fechamento ao livre comércio abre uma era de incerteza.

Publicado em VEJA de 4 de abril de 2025, edição nº 2938

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