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O risco de um apocalipse econômico nos Estados Unidos

Biden corre contra o tempo para fechar acordo para aumentar teto das dívidas, ou poderá jogar o mundo numa crise sem precedentes

Por Luana Zanobia Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 23 Maio 2023, 16h04 - Publicado em 18 Maio 2023, 17h58

Já se disse que o Brasil costuma flertar com o abismo político e econômico, mas sempre evita cair nele. Tal sina de um país em desenvolvimento, isso não costuma acontecer nas nações mais ricas do mundo. Muito menos na maior economia do mundo. Os Estados Unidos, no entanto, se aproximam desta vez uma crise de proporções apocalípticas, capaz de colocar o país no centro de um colapso inédito dos preços de ativos por todo o mundo.

Por diversas vezes, o país já enfrentou a possibilidade de ultrapassar o seu limite de dívida. Mas, desta vez, a preocupação tem sido maior do que nunca de que um acordo poderia não ser alcançado entre o governo e a oposição, do Partido Republicano, para elevar o teto e evitar um calote inédito no país. Na terça-feira, 16, a secretária do Tesouro americano, Janet Yellen, afirmou que “o tempo estava acabando”, porque já no dia 1 de junho o limite seria estourado. A consequência seria desastrosa. “Se o Congresso falhar em chegar a um acordo, vai afetar a nossa nota de crédito. Teremos de dar calote em algumas obrigações, ou nos títulos do Tesouro ou em pagamentos de beneficiados da Seguridade Social”, afirmou ela, na sexta-feira anterior, em transmissão da emissora Bloomberg.

No mesmo dia, o Tesouro havia revelado que havia, até 10 de maio, apenas 88 bilhões de dólares em medidas extraordinárias para fechar as contas. Em uma semana, 10 bilhões de dólares haviam sido consumidos dos 333 bilhões de dólares de medidas autorizadas. O Fundo Monetário Internacional considerou a situação capaz de “repercussões muito sérias” para toda a economia do mundo. Por sua vez, o CEO do JPMorgan, Jamie Dimon, revelou que o banco já preparava uma sala de guerra para desastre que os Estados Unidos estava se autoinfligindo. Ele ainda criticou a influência do ex-presidente Donald Trump para a confusão, que poderia causar um colapso. “É mais uma coisa sobre a qual ele não entende muito. Qualquer um que sabe algo sobre isso entende que é potencialmente catastrófico”, disse.

Numa indicação de que, desta vez, o país corre mais riscos, a preocupação nos mercados aumentou bastante recentemente. O custo de proteção contra o calote da dívida americana tornou-se até mais elevado do que de muitas economias emergentes. Na semana passada, os credit default swaps (CDS) de vencimento em um ano, que são títulos utilizados como proteção contra possível calote, ultrapassou a marca de 160 pontos-base, superando o contrato brasileiro, cotado em torno de 50 pontos-base. “Esse cenário é alarmante e indica um aumento significativo na percepção de risco em relação à solvência do governo americano”, diz Gustavo Zuquim, gestor de portfólios do Andbank em Miami.

Os Estados Unidos, como a maioria dos países, têm um limite de dívida pública que é estabelecido pelo Congresso. Esse limite, também conhecido como “teto da dívida”, é a quantidade máxima de dinheiro que o governo federal pode emprestar. Desde a criação do limite de dívida em 1917, ele foi sendo aumentado, estendido ou revisado mais de 100 vezes. Entre os anos de 1980 e 2020, por exemplo, o teto da dívida subiu de menos de 1 trilhão de dólares para mais de 20 trilhões de dólares. O teto atual é de 31,4 trilhões de dólares.

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A dívida dos EUA chegou ao seu limite por várias razões. Em primeiro lugar, os gastos do governo têm superado as receitas por um longo período. Isso é em grande parte devido ao crescimento dos custos de programas obrigatórios, como a Previdência Social e o Medicare, bem como os custos da dívida nacional. Em segundo lugar, crises econômicas, como a crise financeira de 2008 e a pandemia de COVID-19, levaram a aumentos significativos nos gastos do governo e, consequentemente, da dívida. A política fiscal recente, incluindo cortes de impostos e aumento dos gastos, também contribuíram para o endividamento em alta.

Em 2011, houve um impasse no Congresso dos Estados Unidos sobre o aumento do limite da dívida federal. Embora o governo tenha conseguido evitar o default, a situação causou preocupações e levou a agência de classificação de risco Standard & Poor’s a rebaixar brevemente a classificação de crédito dos Estados Unidos. Além disso, em 2013, houve uma paralisação do governo federal dos Estados Unidos devido a uma disputa política entre o Congresso e o Presidente sobre o orçamento. Isso resultou em alguns atrasos nos pagamentos de obrigações, mas o país não chegou a entrar em calote.

Desta vez, as negociações seguem travadas e parecem repetir, de forma pior, a história do passado. O presidente Joe Biden cortou o tempo fora em sua turnê pelo Pacífico, com presença em evento do G7, no Japão, para voltar para casa e fechar um acordo. Negociadores republicanos nem queriam que ele viajasse, mesmo que isso significasse perder a oportunidade de se aproximar de países como a Austrália, na busca de conter as ambições geopolíticas da China. Os republicanos querem vender caro um acordo, exigindo cortes de gastos futuros.

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Concordando com a estimativa de Yellen, projeções do Congressional Budget Office (CBO), órgão independente e não partidário que produz análises econômicas, indicam que, se o teto da dívida permanecer inalterado, existe um risco significativo de que, em algum momento durante as duas primeiras semanas de junho, o governo não será capaz de cumprir todas as suas obrigações financeiras. O CBO avalia que embora seja possível que o Congresso aumente o limite da dívida, o processo de “reconciliação” é demorado e não tem o apoio democrata suficiente. Uma abordagem bipartidária também parecia improvável. “Esperamos que o mesmo cenário das batalhas anteriores em relação ao teto da dívida se repita aqui: as negociações vão até o limite, mas a crise será evitada no último momento, mesmo que seja por meio de um ou mais acordos temporários. Não há incentivo para nenhum dos lados ceder muito cedo.

A Câmara e o Senado divididos fornecem os ingredientes para que essa seja uma das lutas mais brutais desde 2011, que levou a uma redução da classificação da dívida dos EUA”, defendem os analistas Jim Cielinski e Garrett Strum, da gestora de ativos britânico-americano Janus Henderson. Na avaliação da gestora, a probabilidade de um calote total na dívida do Tesouro dos EUA é inferior a 1%, sendo considerado um risco extremo. Mesmo que a data limite seja ultrapassada, é provável que o default da dívida seja evitado. O Tesouro dos Estados Unidos pode tentar priorizar os pagamentos de juros e principal, mas isso seria uma tarefa desafiadora em termos operacionais. Outras obrigações, como pensões e folhas de pagamento federais, podem ser suspensas. No entanto, isso levaria a uma paralisação completa do governo e o público rapidamente culparia o Congresso por essa situação. “Navegamos atualmente em mares turbulentos, com dificuldade em estimar o que poderá acontecer”, diz William Castro Alves, estrategista-chefe da Avenue.

Apesar das incertezas, o mercado de renda variável não está precificando um cenário de calote nos Estados Unidos. “Caso fosse esse o caso, veríamos uma queda significativa nas bolsas americanas, como ocorreu em 2011, quando houve uma forte volatilidade e incerteza relacionadas à possibilidade de calote”, avalia o estrategista. Caso um calote ocorra, os impactos seriam extremamente sérios e abrangentes. Seria um evento sem precedentes, de magnitude desconhecida. Os efeitos se propagariam por todas as classes de ativos financeiros. “Os balanços dos bancos sofreriam desvalorização, os fundos de mercado perderiam valor e até mesmo ativos considerados seguros seriam afetados. Além disso, haveria uma redução no rating dos Estados Unidos, o que resultaria em um rebaixamento do rating de empresas também”, avalia Zuquim. Isso ocorre porque as empresas não podem ter uma classificação de risco superior à do país em que estão localizadas. Empresas com classificação “triplo A” perderiam seu grau de investimento, o que teria consequências significativas para o mercado financeiro.

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Diversos especialistas já fizeram projeções sobre os possíveis impactos de um calote. Estima-se que o mercado de ações poderia sofrer uma perda de 45%. As taxas de financiamento imobiliário aumentariam consideravelmente, o dólar se desvalorizaria e outras moedas fortes, como o euro e o iene, ganhariam mais força. O comércio global seria afetado e a economia mundial sofreria consequências negativas. A comunidade internacional está atenta a essa situação, uma vez que um calote nos EUA teria ramificações significativas em todo o mundo. O dólar desempenha um papel fundamental como moeda de reserva e como base para transações comerciais internacionais. Portanto, qualquer turbulência financeira relacionada à dívida americana teria implicações para todas as economias e mercados.

Apesar do impasse, não é de interesses de nenhum dos partidos que os Estados Unidos entre em default. “Os credores da dívida americana são diversos, não se limitando apenas a pequenos investidores. Bancos e empresas seguradoras também possuem exposição significativa a esses títulos. Portanto, o impacto de um calote se estenderia para além dos investidores individuais, afetando o sistema como um todo”, diz William, da Avenue.

Em seu aviso ao mercado e aos políticos, Yellen alertou para uma situação de calote que é “algo que a América não faz desde 1789”. “E não deveríamos começar agora”, completa. O ano de 1789 foi o de início da primeira presidência, de George Washington. Como seu secretário do Tesouro foi escolhido Alexander Hamilton, que ficou responsável por estruturar o pagamento das dívidas contraídas pela Guerra da Independência. Os Estados Unidos não estão saindo de um grande conflito em seu território, como na época. Mas o cisma causado pela polarização política, somado aos desajustes econômicos deixados pela pandemia, parece ter efeitos similares.

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