O Facebook consegue ouvir nossas conversas?
Estudiosos se dividem sobre a capacidade das redes sociais de acessar as conversas dos usuários a partir da liberação ao microfone do smartphone
Há vários relatos nas redes sociais de usuários que se sentem monitorados pelo Facebook. O roteiro costuma ser parecido: primeiro a pessoa menciona o nome de um produto, serviço ou marca em uma conversa. Em seguida, sua ‘timeline’ é invadida por anúncios sobre aquele tema. O que mais intriga quem se diz vigiado é que os anúncios são oferecidos mesmo que nunca tenha pesquisado sobre o assunto antes.
A teoria de que os gigantes da tecnologia poderiam escutar nossas conversas ficou mais forte a partir de 2014, quando o Facebook lançou um recurso que identifica sons ambientes (como músicas).
O Facebook, que conta com cerca de 2 bilhões de usuários, voltou a negar essa acusação. O vice-presidente da divisão de anúncios do Facebook, Rob Goldman, afirmou que a empresa nunca direcionou anúncios com base em conversas captadas pelo microfone do celular. “Nós não usamos – e nunca usamos – o microfone do seu celular para direcionar anúncios. Simplesmente não é verdade.”
A rede social informa que a coincidência entre conversas e anúncios pode ser um cruzamento de dados. Para mostrar propagandas relevantes, a empresa diz que leva em consideração páginas que seus amigos curtiram e até mesmo produtos que você adicionou em um carrinho de compras – desde que a loja virtual faça uso da ferramenta Pixel do Facebook.
Para o CEO do grupo de comunicação Dentsu Aegis Network Brasil, Abel Reis, a possibilidade de que as empresas façam o monitoramento dos usuários é uma lenda. “Não há a menor hipótese de que grandes plataformas estejam recorrendo a essas abordagens para captar dados de voz sem que os usuários sejam avisados”, afirmou ele. “Mas vamos imaginar que isso existe: uma coisa que as grandes anunciantes têm em comum é a atenção para a preservação dos consumidores e sua privacidade, nenhuma empresa madura e responsável aceitaria esse tipo de dados”.
Há outras questões a ser levantadas. Como seria possível monitorar 2 bilhões de usuários? Além da estrutura tecnológica, seria necessário superar outros empecilhos, como identificação de idiomas e gírias.
“Se essa coleta fosse efetuada, essas informações poderiam ser recolhidas de todos os usuários mediante utilização de processos automatizados, sem a necessidade de intervenção humana. Não existe a possibilidade de escolher qual usuário terá o celular monitorado”, afirmou o consultor do Instituto de Tecnologia e Sociedade do Rio, Mario Viola.
Levantamento mais recente da GSMA, entidade global de telefonia móvel, revela que o número de pessoas com smartphone em todo o mundo chega a 5 bilhões – mas a quantidade de dispositivos será de 8,4 bilhões até o fim de 2017, segundo a diretora do projeto de privacidade e dados do Center for Democracy & Technology, Michelle de Mooy.
Ainda segundo ela, nossos smartphones são pequenos aparelhos de rastreamento. “Os serviços habilitados para voz ainda são uma maneira relativamente nova para as pessoas interagirem com dispositivos. Não acho que está claro para todos que a informação de áudio pode ser muito pessoal e está sendo coletada, analisada e armazenada”, disse ela.
“Não é pura ficção”, ponderou o advogado e professor no Centro de Tecnologia e Sociedade da Fundação Getulio Vargas (FGV), Eduardo Magrani. “Quando você diz ‘O.k., Google’ significa que o seu celular deve estar gravando o tempo todo o que você está falando e muitas vezes o consumidor não é informado sobre como essas gravações são feitas para dar seu consentimento.”
Segundo o Google, os áudios armazenados ajudam no reconhecimento da voz do usuário e melhoram o sistema. A empresa ainda disponibiliza todas as atividades do internauta na seção “controle de atividades”, acessível quando o usuário faz login em sua conta do Google. É possível editar, excluir ou bloquear futuras gravações.
O Instagram também nega a captação de conversas e outros áudios quando não autorizados pelo usuário.
Diferentemente do Google, para bloquear o acesso de outros aplicativos ao microfone do aparelho, é preciso configurar as permissões dadas a cada um deles. Apesar de manter o funcionamento normal da aplicação, ao fazer uma transmissão ao vivo, por exemplo, não há como a rede social ter acesso ao seu áudio.
“Com serviços como Siri ou Google Assistente, seu celular está sempre escutando para captar palavras-chaves, mas não começa a gravar até ouvi-la. Seus áudios provavelmente não estão sendo escutados por seres humanos, mas empresas estão aplicando algoritmos para identificar padrões e determinar coisas sobre seu comportamento e interesses”, afirmou De Mooy.
Relatos
Do lado de quem acredita na teoria está o escritor Anderson França. Há um ano, seu relato no Facebook repercutiu ao receber mais de 28.000 curtidas e ser compartilhado 16.362 vezes. Na publicação, ele acusa a rede social de escutar suas conversas com a esposa e direcionar publicidade conforme seus interesses.
Procurado por VEJA, o escritor afirmou que, mesmo ao desativar a assistente de voz do aparelho celular, continua recebendo propagandas relacionadas a conversas e sons ambientes. “A identificação de uma palavra como ‘Anitta’ faz com que propagandas, sugestões de páginas e fotos no Instagram fossem massivamente exibidas.”
Ainda segundo França, por meses ele recebeu anúncios da atriz Jennifer Aniston após a esposa assistir à série Friends, na qual a americana atua como Rachel Green. “Eu não tenho o menor interesse na vida dela. Não escrevo o nome dela, não vejo filmes, não tenho registros dela no meu aparelho. Era o microfone do celular que ficava na sala e captou sons associados. Há mais gente falando sobre os efeitos disso, não foi uma criação minha.”
Em 2016, um casal decidiu realizar um teste para comprovar que o Facebook tinha acesso as suas conversas particulares para direcionar-lhes anúncios.
Outros relatos espalhados pela internet acusam o Facebook de bisbilhotar conversas alheias. A plataforma Reddit é popular por agrupar muitos deles.
Em 2016, um usuário do site afirmou que, após uma conversa sobre lavadoras de pressão, o Facebook de sua esposa começou a receber propagandas do produto. “Não posso deixar de sentir que eles estão dizendo apenas parte da verdade. Estão ouvindo e assistindo a cada pedaço de nossas vidas com as quais eles podem fugir e armazenar”.
A analista da empresa de pesquisas digitais Forrester, uma das mais respeitadas dos Estados Unidos, Fatemeh Khatibloo, realizou um estudo sobre o assunto depois que vinte amigos relataram que suas conversas na vida real estavam gerando publicidade no Facebook.
A pesquisa não conseguiu provar a teoria dos que acreditam que a rede social capta áudios do microfone do aparelho celular. “O processo de linguagem natural é difícil na melhor das circunstâncias. Ao adicionar limitações de dados e ruídos de fundo torna-se material de ficção científica”, escreveu Khatibloo em artigo publicado pelo site norte-americano Forbes.
Direito à privacidade
O avanço desse tipo de tecnologia também coloca em discussão a questão de privacidade dos usuários. “As pessoas têm preocupação com a privacidade. A grande questão é que elas não têm conhecimento dos riscos a que estão submetidas quando disponibilizam suas informações pessoais on-line”, afirmou Viola.
“Quando as pessoas dizem que não existe mais privacidade, que é coisa do passado, eu peço a elas a senha do Gmail ou Facebook e elas nunca querem repassar esse dado. Defendem a privacidade quando lhes interessa”, afirmou Magrani.
Segundo o advogado especializado em crimes eletrônicos, Jair Jaloreto, a extensão dos termos de adesão dificulta a leitura para os usuários ao instalar um aplicativo. “Não sei se é proposital, mas esses contratos são quilométricos apesar de fundamentais, porque você está firmando um compromisso com a outra parte.”
Ainda segundo ele, a legislação brasileira garante o direito ao sigilo e a dados pessoais e íntimos. “Embora haja uma autorização implícita quando a pessoa aceita os termos de adesão, o Marco Civil é claro, a rede social precisa dispensar os dados depois da captação e não pode mantê-los em um banco de dados.”
A Lei Carolina Dieckmann também protege o usuário brasileiro. “De acordo com o Código Penal, a transmissão de dados e sua comercialização são atos criminosos se obtidos por modo fraudulento.”
O CEO do Facebook, Mark Zuckerberg, chamou atenção ao publicar uma foto ao lado de um notebook com a câmera e microfone cobertos por fita adesiva. O suposto motivo seria a proteção de dados pessoais.