O desafio da Uber após alcançar o primeiro lucro de sua história
Depois de perder 32 bilhões de dólares em catorze anos de atividade, empresa agora precisa se manter na rota do crescimento
Nos anos recentes, poucas empresas podem dizer que, de fato, transformaram o mundo. A Apple, que gestou o revolucionário iPhone, certamente é uma delas. Com seu pioneiro streaming, a Netflix merece ser adicionada à categoria, assim como a Amazon, que, afinal, popularizou o comércio eletrônico. Na área da mobilidade, nenhuma outra, ao menos no século XXI, foi tão impactante quanto a americana Uber. Fundada em 2009 na cidade de São Francisco, na Califórnia, em meio ao esplendor tecnológico do Vale do Silício, a companhia teve o mérito de reinventar a forma como as pessoas se movimentam pelas cidades. Com seu aplicativo, bastam alguns cliques no smartphone para solicitar o carro, enquanto o pagamento se dá por um processo 100% digital. Aos olhos de hoje, parece algo banal e rotineiro. Uma década atrás, admita-se, não poderia existir nada mais inovador. Embora onipresente na vida de milhões de pessoas, a Uber enfrentou em sua trajetória um dilema incômodo: a incapacidade de ganhar dinheiro. Mas isso finalmente — e para surpresa de muitos — acaba de mudar.
Depois de catorze anos e 32 bilhões de dólares em perdas acumuladas desde o seu nascimento, a Uber passou a operar no azul. No segundo trimestre, seu lucro global totalizou 326 milhões de dólares, uma reviravolta diante dos 713 milhões de dólares perdidos no mesmo período do ano passado. O resultado contrariou a previsão de analistas, que duvidavam que a empresa conseguisse trabalhar no campo positivo antes de 2030. Houve até quem apontasse a Uber como um caso perdido, um modelo concebido para jamais lucrar. “Durante a maior parte de nossa história, o lucro não foi a primeira coisa que surgiu quando perguntavam sobre a Uber”, reconheceu o executivo-chefe Dara Khosrowshahi em teleconferência de apresentação de resultados. “Na verdade, muitos observadores ao longo dos anos proclamaram corajosamente que nunca ganharíamos dinheiro.”
A Uber enquadra-se na classe que o mundo corporativo chama de “empresas de crescimento”. São aquelas que, em seus estágios iniciais, recebem montanhas de recursos de fundos de investimentos para crescer de forma acelerada e, assim, desbravar mercados que em algum ponto futuro darão lucro. Contudo, o recebimento de quantias astronômicas de capital de risco não significa necessariamente que elas, efetivamente, trarão o retorno esperado. “Em alguns casos, isso jamais ocorrerá”, afirma Eduardo Tancinsky, consultor especializado em tecnologia. “As empresas de crescimento quase sempre são da área tecnológica e costumam tornar seus fundadores bilionários, embora nem sempre bem-sucedidos do ponto de vista do negócio.” Há exemplos recentes. A plataforma de hospedagem Airbnb, fundada em 2008, e a companhia de compartilhamento de escritórios WeWork, nascida em 2010, permanecem com seus balanços no vermelho. No campo oposto, há gigantes de tecnologia que são pródigos em fazer dinheiro rapidamente (veja o quadro). A Microsoft precisou de apenas dois trimestres para começar a abastecer o bolso de Bill Gates.
Afinal, o que a Uber fez para virar o jogo? O presidente Dara Khosrowshahi recorreu a um velho receituário: corte de custos associado ao aumento de preços dos serviços. A fórmula deu certo porque, ao mesmo tempo, houve um aumento considerável da demanda, principalmente fora dos Estados Unidos. Enquanto as receitas geradas pelo mercado americano permaneceram estáveis, na América Latina, na Europa e na Ásia elas aceleraram cerca de 30% no último ano. Segundo o consultor Tancinsky, a diversificação também trouxe frutos. Os negócios subjacentes ao transporte de passageiros, como a entrega de alimentos e o frete, deram retorno mais rápido do que o projetado. No Brasil, a companhia cancelou o serviço de entrega de alimentos Uber Eats em março de 2022. Procurada pela reportagem, a empresa disse que se trata de uma mudança na estratégia da operação de delivery no país.
Nos últimos anos, a Uber também alcançou um feito incomum: restaurar a sua reputação. Isso só foi possível com o afastamento, em 2017, de seu fundador, o americano Travis Kalanick, acusado de assédio sexual e roubo de informações empresariais. Na corrida pelo lucro, a Uber ultrapassou várias barreiras. O desafio agora é manter o pé no acelerador.
Publicado em VEJA de 11 de agosto de 2023, edição nº 2854