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Indicadores econômicos contraditórios dos EUA preocupam o mundo

No país, pleno emprego e consumo em alta se misturam à ameaça de uma grave crise no horizonte

Por Luana Zanobia, Felipe Erlich Atualizado em 4 jun 2024, 11h54 - Publicado em 1 out 2022, 08h00

Tudo o que acontece nos Estados Unidos é acompanhado com olhos atentos pelo resto do planeta, principalmente quando o assunto diz respeito à economia. E quando os sinais emitidos pela maior potência mundial são conflitantes e imprevisíveis desencadeia-se um sentimento de perplexidade e apreensão. É o que vem acontecendo nos últimos meses, quando se registraram dois trimestres consecutivos de queda no produto interno bruto (PIB), o que segundo os cânones econômicos caracteriza a entrada de um país em uma recessão técnica. No entanto, o cruzamento de indicadores relevantes mostra que a situação não é tão simples de definir. Apesar das quedas de atividade deste ano, o nível de emprego, o consumo e a inflação permanecem aquecidos no país, e surpreendendo os analistas a cada anúncio mensal.

NOVO BALANÇO - Casa de câmbio em Londres: no mundo atual, o dólar, o euro e a libra esterlina valem quase o mesmo -
NOVO BALANÇO - Casa de câmbio em Londres: no mundo atual, o dólar, o euro e a libra esterlina valem quase o mesmo – (Frank Augstein/AP Photo/Image Plus)

É algo completamente diferente do que aconteceu em crises abruptas, como as causadas pela Covid, em 2020, ou pelo derretimento do mercado imobiliário em 2008. Tão atípico que a entidade responsável por declarar que o país entrou em crise, o Departamento Nacional de Pesquisa Econômica (NBER, na sigla em inglês), uma organização privada sem fins lucrativos formada em 1920, ainda não o fez — e não há prazo para que o faça. “Se de fato entrarmos em uma recessão, será muito estranha, porque uma das principais razões pelas quais nos preo­cupamos com elas é o desemprego. Agora temos justamente o oposto”, disse a VEJA Penny Goldberg, economista-chefe do Banco Mundial entre 2018 e 2020. “É muito difícil pensar sobre esses problemas usando as ferramentas usuais que temos. Em recessões, as pessoas estão desesperadas para trabalhar e, agora, os empregadores estão implorando às pessoas para irem trabalhar.” Em julho, o país teve a menor taxa de desemprego em 53 anos, de 3,5%, registrando apenas 5,6 milhões de desempregados. Mesmo com a leve alta, a 3,7%, em agosto, o país tem um recorde de 1,9 vaga disponível para cada desempregado.

arte EUA

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Apesar disso, para a empresa de pesquisas Ned Davis Research, a probabilidade de recessão é quase certa, de 98%. E os rendimentos dos títulos do Tesouro de longo prazo subiram para o maior patamar desde 2010, um forte sinal da aproximação de um cenário de crise. Por esses parâmetros, o próximo ano deve trazer o que os economistas estão chamando de growth recession, recessão de crescimento, um fenômeno paradoxal e que tem o potencial de se transformar em um grande desafio para o presidente Joe Biden e para o Federal Reserve, o banco central americano. Trata-se de um período prolongado de crescimento baixo e de aumento gradual do desemprego, uma espécie de estagnação. Como definiu uma economista da consultoria KPMG que participou da última edição do tradicional seminário anual do Fed em Jackson Hole, em Wyoming, seria tal qual uma “tortura de gotejamento de água na cabeça”.

Boa notícia em qualquer parte do mundo, o aquecimento da economia preocupa os americanos, pois traz a perspectiva de maior inflação, que já acumula alta anual de 8,3% e deve exigir do Fed uma postura mais agressiva de aumentos dos juros. O país vive uma inércia da subida dos preços que tem resistido até mesmo à redução do preço do petróleo no mercado internacional. “O Fed trabalha com a expectativa de que a manutenção de um crescimento lento seja suficiente para a inflação cair. Mas isso é apenas uma esperança, ninguém sabe quanto a economia precisará desacelerar para controlar a inflação”, afirma Maurice Obstfeld, ex-assessor econômico da Casa Branca e ex-conselheiro econômico do Fundo Monetário Internacional (FMI).

A grande preocupação está na linha tênue entre o que pode ser definido como desaceleração e a recessão. Desacelerar sem gerar contração na economia é altamente desejável, mas pouco provável. “Um tigre contido não é o mesmo que um tigre solto nas ruas, mas também não é um tigre de papel”, escreveu o economista Solomon Fabricant, quando cunhou o termo recessão de crescimento, em 1972. No início do ano, o Fed esperava que a taxa de juros a 3% seria o bastante para colocar a inflação dentro da meta de 2% ao ano, mas isso não aconteceu. Na última reunião do órgão, neste mês, ele reforçou o compromisso de combater a inflação e “fazer o que for preciso” para alcançar a meta, abandonando o discurso de um pouso suave da economia. O posicionamento aumenta as projeções para elevações agressivas, entre 4,25% a 4,50% até o fim do ano, enquanto também crescem as estimativas de que chegará a 5%, em 2023.

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CONSUMO RESISTENTE - Loja de eletrônicos em Maryland: mercado interno aquecido continua a estimular inflação -
CONSUMO RESISTENTE - Loja de eletrônicos em Maryland: mercado interno aquecido continua a estimular inflação – (Chip Somodevilla/Getty Images)

Essas expectativas, por si, já causam nervosismo mundo afora. Os principais índices de bolsa registraram nos últimos dias mínimas históricas de 2020, do auge da pandemia. A forte pressão fez com que 400 ações monitoradas no índice S&P 500 despencassem na segunda-feira 26, com o índice acumulando mais de 100 dias no vermelho em 2022, um dos períodos mais longos de queda desde 2008. A aversão ao risco tem levado ainda a uma valorização global do dólar, mesmo com aumentos dos juros acontecendo em diversos outros países, que também vivem sob a ameaça do descontrole inflacionário. O euro e a libra esterlina estão em baixas históricas frente à moeda americana, com as três valendo praticamente o mesmo.

No Brasil, na última semana, o dólar voltou a superar a marca dos 5,40 reais, a mais alta cotação em dois meses, antes de cair um pouco. “Vocês, do Brasil, deveriam se preocupar com o Fed. Por exemplo, quando ele aumenta muito a taxa de juros, isso é ruim para a balança de pagamentos (o entra e sai de dinheiro de um país) brasileira, porque o dinheiro começa a se mover”, disse a VEJA em um evento ocorrido em São Paulo o canadense David Card, vencedor do Prêmio Nobel de Economia de 2021. É comum os investimentos deixarem países em desenvolvimento em momento de alta dos juros nos Estados Unidos, um prognóstico que sinaliza a possibilidade de meses difíceis pela frente para os brasileiros. O fato é que as idiossincrasias do atual momento americano tem servido para os economistas se debruçarem sobre um fenômeno inusual e observarem os mecanismos que regulam os processos de aquecimento e desaquecimento da economia em plena ação. Trata-se de um aprendizado importante, mas que gera uma profunda apreensão seja nos países ricos ou naqueles nem tanto.

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Publicado em VEJA de 5 de outubro de 2022, edição nº 2809

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