Em autobiografia, Henrique Meirelles traz detalhes inéditos de sua trajetória
Ex-presidente do Banco Central revela como foi a transição da carreira de executivo bem-sucedido para a política
Na história econômica do país, poucos brasileiros tiveram a sorte — e a competência — para deixar legados positivos tanto na iniciativa privada quanto na atividade pública. São ainda mais raros os que brilharam além das fronteiras brasileiras, ocupando cargos de destaque em grandes corporações internacionais. O goiano Henrique de Campos Meirelles é um deles. Banqueiro bem-sucedido, Meirelles deu notável contribuição à administração pública, e seu trabalho teve o mérito de ser reconhecido por políticos de diferentes matizes ideológicos, algo também incomum em se tratando de Brasil. Outro aspecto atípico diz respeito à sua capacidade para se reinventar. Depois de comandar um banco no exterior, Meirelles ingressou no governo federal aos 57 anos, iniciando uma nova jornada profissional. É essa trajetória pulsante que está descrita na autobiografia Calma sob Pressão, escrita na primeira pessoa sob a coordenação editorial do jornalista Thomas Traumann, colaborador de VEJA.
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Meirelles nasceu em Anápolis (GO), em 1945. Seus pais fizeram carreira no setor público: a mãe foi diretora de uma escola pública e o pai, professor na mesma instituição. A política, no entanto, sempre esteve por perto. Seu avô foi prefeito de Anápolis mais de uma vez e o pai exerceu cargos de relevo na administração estadual, tornando-se governador interino por algumas semanas. Enquanto isso, o filho concluía o ensino médio em Goiânia numa escola pública. Lá, Meirelles se sentiu atraído pelo movimento estudantil. Presidiu a União Goiana de Estudantes Secundaristas, que integrava o eixo de apoio ao presidente João Goulart. Num episódio dramático, os perdedores se recusaram a desocupar a sede da entidade, o que provocou um confronto violento. Ameaçado de morte, Meirelles foi alvo de seis tiros, que não o atingiram. “Foi um dos períodos mais ricos de minha vida”, disse.
Em 1965, foi aprovado no vestibular para a Escola Politécnica da Universidade de São Paulo. No terceiro ano do curso, associou-se a um colega para criar uma empresa de fabricação de artefatos de concreto. Ganharam a concorrência para fornecer material a um projeto de construção de casas populares, mas Meirelles descobriu que a construtora estava em dificuldades, o que os levou a desistir da empreitada. Concluído o diploma de engenharia, passou em concurso que lhe valeu frequentar o Instituto de Pós-Graduação e Pesquisa em Administração da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Fez o mestrado em economia e cogitou entrar no Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social ou virar professor. Tinha também uma proposta para trabalhar em uma conhecida rede de varejo.
De todas as opções de emprego, a menos promissora era a oferecida pelo Banco de Boston, depois chamado BankBoston. O salário era baixo e não havia oportunidade de ascensão para brasileiros. Mesmo assim, aceitou, dada a oportunidade de aprender sobre a economia mundial e como uma multinacional operava. Em poucos meses, Meirelles se tornou superintendente da companhia de leasing do banco. Aos 39 anos, depois de muita labuta, um feito: passou a ser o primeiro não americano a assumir a presidência do Boston no Brasil. Em 1996, a carreira meteórica de Meirelles o levaria ainda à presidência do BankBoston International, na cidade de Boston. Por ser brasileiro, a investidura no cargo exigiu tratamento especial pelo Federal Reserve, o banco central. Era a primeira vez que um estrangeiro dirigiria uma instituição financeira americana de grande porte.
O mesmo espírito inquieto que o levou a arriscar a sorte no exterior acabou estimulando-o a entrar na política. Em 2002, aposentado do ambiente corporativo, decidiu iniciar a carreira pública. Disputou e ganhou uma cadeira de deputado federal por Goiás. Em plena campanha, foi sondado pelo petista Aloizio Mercadante para assumir o cargo de presidente do Banco Central. O convite oficial foi feito por Lula, logo após a sua primeira eleição. O anúncio de Meirelles para o Banco Central foi uma surpresa positiva para o mercado financeiro. Ainda em campanha, Lula havia aprovado a Carta ao Povo Brasileiro, em que assumia o compromisso de observar direitos de propriedade e cumprir contratos (o que incluía pagar os compromissos da dívida externa, afastando temores de calote). Ideias econômicas equivocadas do programa do PT foram abandonadas. Nesse contexto, Meirelles era a cereja do bolo. Associava sua elevada reputação a um esforço que Lula empreendia, de dotar de credibilidade a política econômica de seu governo.
Meirelles condicionou a aceitação do cargo a dispor de autonomia para comandar a política monetária. O compromisso foi honrado, mas ele teve de lidar com pressões e críticas que vinham do PT e de setores do próprio governo. Entre seus autores estavam “ministros com gabinete no Palácio do Planalto”, como registrou. A certa altura, Lula pediu para que a taxa Selic fosse reduzida. José Dirceu disse à imprensa que o presidente ordenaria a redução do juro. A tensa conjuntura pôs à prova a habilidade de Meirelles para enfrentar a situação. Em diálogo com Lula, ele o informou de que o Comitê de Política Monetária tomaria a melhor decisão para o país. A taxa de juro foi elevada.
Em maio de 2008, “cansado de brigar sozinho” (o ministro da Fazenda Antonio Palocci, que o apoiava, havia sido substituído por Guido Mantega, que criticava publicamente a política monetária), Meirelles pediu dispensa do cargo. O jornalista João Borges, que havia sido assessor de imprensa do Banco Central, conta essa história no livro Eles Não São Loucos. Lula chegou a escolher um conhecido economista de ideias heterodoxas, mas desistiu da substituição na última hora. Meirelles permaneceu no cargo nos dois mandatos de Lula, durante os quais lidou bem com o fogo amigo e com o enfrentamento dos desafios da crise financeira de 2008, cujos resultados Lula comemorou. Afirmou que a crise chegaria aqui como “uma marolinha”.
Depois de deixar o Banco Central, Meirelles aceitou presidir a Autoridade Olímpica dos Jogos do Rio e atuou em conselhos de administração de instituições financeiras estrangeiras e na criação do Banco Original. Após o impeachment de Dilma Rousseff e com a assunção de Michel Temer à Presidência da República, Meirelles se tornou ministro da Fazenda. Foi um período de muitas reformas. A principal delas foi o teto de gastos, que restaurou a confiança na economia. Por pouco, não foi aprovada a reforma da Previdência, abortada após o conhecido diálogo de Temer com Joesley Batista, da JBS.
Meirelles deixou o governo Temer em abril de 2018 para candidatar-se à Presidência da República. A derrota nas urnas deve ter sido o único revés em sua vitoriosa carreira profissional. Mesmo assim, não ensarilhou armas e aceitou o convite para comandar, em 2019, a Secretaria de Fazenda do Estado de São Paulo, que acumulou com a Secretaria do Planejamento. Por onde passou, Meirelles cuidou de cercar-se de auxiliares competentes. Ele reconhece o papel dos que o ajudaram na vitoriosa trajetória, mas sua liderança foi certamente fundamental.
Publicado em VEJA de 20 de setembro de 2024, edição nº 2911