Como o Pix se tornou o modo de pagamento preferido dos brasileiros
A ferramenta já ultrapassa cartões de crédito e boletos, mexe com o sistema financeiro e se transforma num caso de inovação estudado no exterior
O sistema financeiro suíço é mundialmente conhecido por sua tradição, que remete à confidencialidade e à discrição garantidas aos comerciantes do começo do século XVIII. O americano se destaca por sua pujança, com milhares de bancos em operação por todo o território, sendo que até os considerados médios e regionais possuem patrimônio suficiente para impressionar grandes instituições de países economicamente poderosos. Já o brasileiro, apesar de sólido e com um histórico de boa adoção de tecnologia, nunca teve uma grande marca capaz de chamar a atenção no exterior.
Tal situação vem mudando rapidamente por causa de três letrinhas de pronúncia fácil: Pix. Em apenas dois anos e meio, a ferramenta de pagamentos conquistou o gosto e os bolsos dos brasileiros, virando também objeto de estudo de executivos de finanças e de investidores pelo mundo. A ponto de alguns deles já terem marcado viagens ao Brasil e um espaço na agenda do presidente do Banco Central (BC), Roberto Campos Neto, para entender como o sistema funciona e como a economia brasileira está sendo revolucionada por ele.
Um novo marco dessa reviravolta nos meios de pagamentos nacionais foi revelado, na quarta-feira 31, pelo BC. No ano passado, o Pix representou 29% de todas as transações registradas no país, ante 16% do total em 2021. Dessa forma, o sistema de transações digitais instantâneas, que entrou em operação em novembro de 2020, deixou comendo poeira velhos companheiros dos cidadãos brasileiros bancarizados: os cartões de crédito, de débito e os boletos. Denotando a forte propensão do consumidor local a adotar soluções tecnológicas, até abril deste ano o Pix já possuía mais de 147 milhões de usuários, a imensa maioria dos adultos do país, e 600 milhões de chaves cadastradas. É algo que ajuda a explicar por que os saques de dinheiro em agências bancárias e terminais de autoatendimento tenham caído de 3 trilhões de reais, em 2019, para 2,1 trilhões de reais, em 2022 — uma diminuição de 30%.
Não por acaso, portanto, a pergunta “já passou o Pix?” virou uma coisa comum no dia a dia da maioria dos brasileiros. De prestações de imóveis a gorjetas de manobristas, o uso da ferramenta se disseminou com força e o sucesso é tamanho que o meio de pagamentos adentrou a cultura popular, virando destaque nas paradas de sucesso, ao ritmo de rap, forró e sertanejo.
Como nem tudo é 100% perfeito, algumas dificuldades surgiram. Apesar dos inúmeros ganhos, a popularização do sistema teve alguns efeitos colaterais, sendo que o principal deles não é ligado diretamente ao funcionamento da ferramenta: os roubos de telefones celulares enquanto estão destravados, ou os sequestros relâmpagos, por permitir realizar grandes transferências de dinheiro em pouquíssimo tempo. Por isso, de forma acertada, foi instituído um limite para transações noturnas.
A exemplo do que ocorre com outros grandes benchmarks recentes de inovações, como os aparelhos da Apple, a chave do sucesso do Pix é a simplicidade. O sistema atraiu o brasileiro por sua facilidade de uso e pelo baixo custo de transação. Com um simples celular, é possível realizar um pagamento — basta acrescentar um número de CPF ou de um telefone móvel —, sendo que o valor pago é depositado na conta do beneficiário em segundos, sem a cobrança de taxas dos outros meios de pagamentos. No caso de pessoas jurídicas, paga-se 0,69 real por transação, uma pechincha se comparada com as cobranças de algumas bandeiras de cartão de crédito, que chegam a 2% do valor da venda. Isso explica a migração em massa dos pequenos comerciantes à modalidade, incluindo-se aí até as barracas de coco nas praias e os tabuleiros de acarajé da Bahia.
Já pelo lado dos grandes varejistas, a plataforma trouxe a oportunidade de aposentar os boletos. Apesar de constituírem uma alternativa às taxas dos cartões, eles podem levar dias para serem compensados, bagunçando o fluxo de caixa das empresas. Para piorar, muitas vezes os clientes desistiam de pagar essas contas, causando perda de vendas. “A principal vantagem do Pix é que, com ele, conseguimos dar mais descontos para o consumidor”, diz Felipe Cohen, diretor de marketplace do Magazine Luiza. “Além disso, ele aumentou muito a conversão de vendas, por ser uma experiência mais simples e fluida do que via boleto.” Somando-se as economias com o sistema, além do aumento do volume do comércio, os impactos positivos são quantificados por números impressionantes. “As estimativas apontam que o Pix poderá economizar até 37,9 bilhões de dólares e contribuir com 37,6 bilhões de dólares para o país até 2026, o que corresponderá a impressionantes 2,08% do PIB”, diz Angelo Duarte, chefe do Departamento de Competição e de Estrutura do Mercado Financeiro, do BC.
Não foi apenas o dia a dia do comércio que mudou com o advento da ferramenta. No ano passado, o Pix registrou surpreendentes 24 bilhões de transações, traduzindo-se em uma média de 66 milhões de operações diárias (veja o gráfico). Tamanho volume impactou a rotina e as estratégias das grandes instituições financeiras do país. “Nos últimos oito meses, observamos uma clara tendência de substituição do DOC pelo Pix, a ponto de o Itaú ter descontinuado esse método de transferência para pessoas físicas em janeiro deste ano. Além disso, o Pix tem assumido um papel substancial na substituição do TED, graças à sua disponibilidade constante”, relata Mario Miguel, diretor de pagamentos do Itaú Unibanco. Dessa forma, a Federação Brasileira de Bancos (Febraban) aposta que o DOC, outrora muito popular, está caminhando rápido para a obsolescência. Segundo as previsões, ele deve virar peça de museu já em 2024, devido à sua queda de uso.
Um dos fatores que mais chamam a atenção no cenário internacional para a inovação brasileira foi a velocidade impressionante de implantação do sistema, sem nenhum sobressalto relevante. O setor bancário nacional tem a tradição de uso da criatividade e de tecnologias de ponta, uma herança benéfica do turbulento período da hiperinflação das décadas de 80 e 90. Os pagamentos de cartões em parcelas, por exemplo, são até hoje novidade no Hemisfério Norte. Nos Estados Unidos, uma das grandes modas recentes é o sistema Buy Now, Pay Later, basicamente uma versão das velhas compras parceladas. E, até pouco tempo atrás, muitos países desenvolvidos ainda utilizavam bastante os cheques.
Em um primeiro momento, a despeito dessa tradição inovadora, o Brasil ficou para trás na revolução dos pagamentos digitais instantâneos, iniciada nas últimas décadas. Quem largou na frente foi a China, que promoveu uma guinada para os pagamentos por celulares apontados para QR codes, pelos sistemas privados WeChat Pay e Alipay. Outra grande referência internacional nesse campo foi a Índia, que criou a sua UPI (Interface de Pagamento Unificada, da sigla em inglês) já em 2016, que hoje atinge 40% das transações do país, segundo o premiê Narendra Modi. Até mesmo alguns países africanos, como o Quênia, entraram na onda dos chamados pagamentos móveis, dezesseis anos atrás, aproveitando o baixo índice de bancarização da população para inserir as pessoas diretamente na era das transações por telefones. O Brasil tinha tudo para entrar na mesma onda, levando em conta que é o quinto país do mundo em número de smartphones — o Pix forneceu o impulso decisivo.
A vantagem dele em relação a outros sistemas é algo que guarda similaridade com o modelo indiano: a ferramenta é controlada diretamente pelo banco central do país, o que garante maior segurança e confiabilidade. O sistema mexicano, por sua vez, não contou com o incentivo da autoridade financeira para estimular que grandes bancos e fintechs aderissem ao projeto. Com isso, até hoje não engrenou. Enquanto cabe ao poder público regular o Pix, a iniciativa privada tem a função de aperfeiçoar a plataforma, testar funcionalidades e buscar novos modelos de negócios para rentabilizar o uso. O BC também trabalha para ajudar na expansão do sistema. Em 2024, a instituição planeja lançar o Pix Garantido. Ele permitirá que os usuários realizem compras com garantia de pagamento e dará a opção de parcelamento. Bancos como Itaú, Bradesco e Nubank já apresentaram as suas próprias funcionalidades de Pix Crédito e o Pix Parcelado, entre outras.
A presença do Pix no mundo real também pode ser mais abrangente no futuro próximo. Enquanto os cartões são amplamente aceitos em estabelecimentos pelo país, o sistema instantâneo ainda enfrenta certas limitações. “Embora se destaque como uma opção prática e conveniente para pagamentos on-line, sua infraestrutura e aceitação no mundo físico ainda estão em evolução”, diz Marcelo Martins, executivo da associação de fintechs ABFintechs e sócio da Pay Ventures. ”Muitos estabelecimentos comerciais ainda precisam se adaptar para receber via Pix.”
Já na frente internacional, Campos Neto vislumbra, para o futuro, a plataforma brasileira se integrando aos sistemas de outros países. É algo que os programas chineses fazem, assim como o WhatsApp Pay, da Meta, empresa também dona do Facebook. A UPI, da Índia, tem interconexão com o sistema de Singapura. O Pix, certamente, seguirá o mesmo caminho. Num seminário recente sobre meios de pagamento digital promovido pela revista The Economist, ele foi citado como um dos mais bem-sucedidos casos do momento.
Com tamanho sucesso, a paternidade do Pix virou objeto de disputa. O projeto foi desenvolvido em grande parte durante a presidência de Ilan Goldfajn no BC, no governo de Michel Temer. Entrou no ar já pelas mãos de Campos Neto, em 2020. Por um bom tempo, o então presidente, Jair Bolsonaro, praticamente ignorou a sua existência. Mas, durante a campanha pela reeleição, ao perceber como ele havia caído nas graças do povo, tentou se posicionar como o pai do negócio, e seus apoiadores espalharam fake news de que a plataforma seria descontinuada ou taxada se ele perdesse o pleito. O fato de ter sido usado como peça de marketing político, ainda que de forma torta, é mais uma evidência de como o Pix virou um sucesso estrondoso no Brasil.
Publicado em VEJA de 7 de junho de 2023, edição nº 2844