Como a Microsoft entrou para o clube dos 2 trilhões de dólares
Num caminho similar ao da Apple, empresa deu um salto de valor após um executivo assumir a posição que era do fundador. Qual será a próxima?
Em 2014, apenas os mal informados ou irremediavelmente otimistas comprariam com tranquilidade ações da Microsoft. Fundada por Bill Gates em Seattle, a empresa parecia estar superada, depois de ter tornado possível a revolução dos computadores pessoais na virada dos anos 1980 para os 1990 ao criar o sistema operacional Windows. A empresa saía de uma série de embates com reguladores dos Estados Unidos e do Europa, que acusaram-na de dificultar o acesso de programas de seus concorrentes ao seu dominante software para computadores e notebooks. E este nem era o maior dos problemas. A Microsoft havia ficado para trás na corrida por fornecer sistemas operacionais para telefones celulares.
Com a ascensão dos smartphones, estava óbvio que os internautas cada vez mais usariam os seus aparelhos móveis, em vez de computadores de mesa, para navegar na internet. O Windows Mobile não decolava e parecia fadado a ser um coadjuvante do iOS, utilizado pelos iPhones, da Apple, e do Android, do Google, acessado em aparelhos de diversos outros fabricantes, como a Samsung e a LG. Numa tentativa desesperada, a Microsoft havia comprado a divisão de celulares da finlandesa Nokia, em 2013. Em meio a esse cenário, as empresas quentes do momento ou eram nativas da internet, como o Google, o Facebook e a vizinha Amazon – também da região de Seattle –, ou mostravam muito mais apetite por inovação, como a Apple, fundada por Steve Jobs, o maior nêmeses de Gates em seus primeiros anos.
Como sinal de que o futuro da empresa poderia ser um lento caminhar para a irrelevância, a dupla que havia tornado a Microsoft hegemônica em software — e dois únicos CEOs em quatro décadas –, Gates e Steve Ballmer, se desfaria. Ballmer havia assumido o comando da gestão em 2000, quando Gates decidiu ficar apenas no conselho de administração. Depois de quase uma década e meia como CEO, a sua liderança estava fortemente desgastada com o fracasso dos tablets Surface, criados para competir com o iPad, da Apple. No lugar de Ballmer, assumiria o indiano Satya Nadella, que era o vice-presidente de computação em nuvem.
O discreto executivo, que em nada lembrava a aura de inventor de Gates ou a energia realizadora do executivo Ballmer, poderia não parecer a pessoa certa para o tamanho do desafio que enfrentaria. Mas, hoje, sete anos depois, Nadella conseguiu o improvável, levou a empresa a ultrapassar o valor de mercado de 2 trilhões de dólares, marca atingida no dia 22 de junho, apenas seis dias depois de ser alçado também à presidência do conselho da Microsoft – posição que vai acumular simultaneamente ao cargo de CEO –, e dois dias antes da apresentação do Windows 11, a primeira versão do seu sistema operacional a trazer a capacidade de acessar aplicativos criados para o Android. Em duas semanas, a companhia já se aproxima dos 2,1 trilhões de dólares. No seu período à frente da gigante, as ações da companhia na Nasdaq, a bolsa de tecnologia americana, já acumulam uma valorização acima de 600%, um desempenho muito superior ao recuo de 32% nos 14 anos sob Ballmer.
Quando Nadella assumiu, a Microsoft precisava ser reinventada. Os resultados da companhia ainda dependiam quase que integralmente do Windows, o sistema que havia tornado o uso de computadores amigável para pessoas sem conhecimento de programação. Mas as vendas ainda eram majoritariamente feitas como um produto comum, quando os termos da moda já passavam a ser o software como serviço e a computação em nuvem. O cliente corporativo ou final pagava por uma licença de uso para ter o programa instalado no seu computador, em vez de adotar o modelo de negócios em que o software roda remotamente num servidor localizado em qualquer parte do mundo e o usuário apenas o acessa para poder utilizá-lo.
Quando Nadella descontinuou a unidade de mobilidade apenas dois anos depois da compra da Nokia e demitiu 7,98 mil pessoas, ele demonstrou que estava disposto a tomar decisões difíceis. Hoje, a Microsoft se posicionou como uma grande competidora do multibilionário mercado de games, com a plataforma Xbox, e como uma rival poderosa para a Amazon Web Services (AWS) e o Google Cloud, no mercado de sistemas oferecidos em nuvem. “As empresas que trabalham em um ambiente de nuvem crescem de forma mais robusta. Logo, as desenvolvedoras que não olharem para esse mercado não irão surfar esse momento da tecnologia”, diz Pietro Delai, gerente de pesquisa e consultoria para nuvem e software da IDC para América Latina. Hoje, o mercado de infraestrutura como serviço e de software como serviço têm apresentado um crescimento na América Latina em torno de 30% ano a ano.
Entre outras decisões de Nadella, a companhia adquiriu, em 2014, a Mojang, estúdio responsável pela criação do jogo Minecraft, por 2,5 bilhões de dólares. Em 2016, foi a vez de a empresa comprar a rede social corporativa LinkedIn, por 26,2 bilhões de dólares, reforçando os seus laços com o público corporativo, que representa dois terços de seu faturamento, que atingiu 143 bilhões de dólares em 2020. “Toda grande empresa de tecnologia sempre foi calcada no seu fundador. Todas elas têm a mística do criador”, analisa Daniel Domeneghetti, especialista em marketing e CEO da E-Consulting. “A gestão profissional que vem a posteriori tem o desafio de conciliar as melhores práticas de crescimento sustentável das operações e novas estratégias com a manutenção e preservação da mística do fundador. Nenhuma companhia tecnológica que negou seu fundador se deu bem nas ondas dois e três.”
A transição da onda um para a dois, segundo o consultor, é a evolução da fase do empreendedorismo para o crescimento estratégico e sistematização. A terceira fase já envolve dar tiros certeiros e estratégicos. “Nessa fase, o fundador começa a falhar”, diz. “Na quarta fase, que é a sistematização e a maturidade, a gestão precisa ser um corpo profissional. Quando se falha nessa jornada é ou porque você trouxe um executivo ruim, ou porque ele brigou com o fundador.”
O grande desafio da empresa será se manter atualizada com o ritmo de inovações globais, algo que o analista Brent Thill, do banco de investimentos Jefferies, acredita que a empresa tenha capacidade de cumprir. “A Microsoft está entrando no ano fiscal de 2022 em busca da próxima etapa de crescimento de novas iniciativas de produtos, incluindo equipes mais integradas e a utilização do Windows 11, que traz uma interface de usuário mais moderna, segurança aprimorada e novas políticas da Windows Store para incentivar os desenvolvedores”, disse Thill, em relatório enviado para seus clientes. Ele estima a empresa com preço-alvo em torno de 310 dólares, o que elevaria o seu valor de mercado para 2,3 trilhões de dólares.
O clube dos 2 trilhões
Ao atingir o valor acima dos 2 trilhões de dólares, a Microsoft cimentou a sua posição como a segunda empresa privada mais valiosa do mundo, atrás apenas da rival Apple, que vale 2,4 trilhões de dólares – a petrolífera saudita Saudi Aramco chegou a superar a marca de 2 trilhões de dólares no fim de 2019, mas não conseguiu se manter neste patamar. O curioso é que a grande rival também hoje é presidida por um executivo, Tim Cook. Assim como Nadella, o atual homem forte da Apple parecia fadado a uma missão impossível, ao substituir o fundador Steve Jobs, seis semanas antes de sua morte por câncer pancreático, em 2011. Ele, no entanto, fez mais do que provar que o criador dos computadores Mac, do iPhone e do iPad poderia ter um sucessor digno de seus feitos. Cook tornou a Apple numa máquina de vendas que parece não ter limites para continuar crescendo, e, de quebra, ainda abriu caminho para que executivos substituíssem geniais fundadores de empresas de tecnologia, algo que algumas empresas nascidas na internet parecem ainda não terem ainda aprendido, como prova o Facebook de Mark Zuckerberg, que sofre hoje com o escrutínio de reguladores como aconteceu no passado com a Microsoft.
O próximo executivo a tentar seguir o caminho aberto por Cook e Nadella será Andy Jassy, criador da AWS e que assumiu a Amazon na segunda-feira, 5, no lugar do fundador Jeff Bezos, que se prepara para ir ao espaço com foguetes de sua outra empresa Blue Origin, de viagens espaciais. Jassy está recebendo uma companhia que já vale 1,9 trilhão de dólares, mas que também tem em seu cangote acusações de ser excessivamente dominante em seus negócios de vendas pela internet e de ser uma má empregadora. Conseguindo afastar as ameaças de desmembramento da empresa por governos — um temor que aumentou depois que o presidente americano Joe Biden indicou a jovem Lina Khan, uma crítica contumaz da Amazon e de outras Big Techs, como “xerife” do órgão antitruste do país –, poderá ser ele o responsável pela terceira empresa de 2 trilhões de dólares?