Com ou sem Trump, futuro da relação entre EUA e Europa é incerto
Atuação de presidente gerou rusgas; Biden pode acalmar os ânimos, mas atritos podem continuar e respingar no comércio exterior brasileiro
Correu na internet, no último mês, uma cena envolvendo o olhar estupefato do presidente da Sérvia, Aleksandar Vucic, quando Donald Trump anunciou que, em julho próximo, aquele país transferiria sua embaixada para Jerusalém. A reação de Vucic demonstra a sua surpresa, ao buscar no texto que acabou de assinar qualquer informação relativa a esta referência, e coça a cabeça como o marido que terá que encontrar explicações depois de um fim de semana em Las Vegas.
A pitoresca cena de estupefação explica muito sobre as relações internacionais contemporâneas. Aquela reunião, na Casa Branca, também restabelecia as relações da Servia com o Kosovo, o seu vizinho de maioria muçulmana que buscou independência no fim do último milênio.
O presidente Vucic tem enfrentado crescentes protestos populares em seu país, cuja trágica histórica recente recomenda pacificação. Ele tem a difícil tarefa de acomodar um discurso nacionalista com pressões da Igreja Ortodoxa Sérvia, e ainda recuperar a economia, que estava inclusive sendo apoiada por investimentos árabes em agricultura (outra preocupação que deve ter lhe passado pela cabeça durante o encontro com Trump).
O olhar embasbacado de Vucic também transmite o caráter, por assim dizer, heterodoxo da política externa que dominou todo o governo Trump. Reforçou-se o apoio a Israel, inclusive como trunfo na política eleitoral norte-americana, por meio de anúncios marqueteiros, transformando a solução de rusgas regionais em vitórias (“fantastic”, segundo Trump), enquanto não há linhas claras de sua política externa.
A cena na Casa Branca também jogou luz sobre uma relação delicada e fundamental para o Ocidente: a dos EUA com a Europa. Durante a gestão de Trump, frases cortantes dos dois lados e várias cenas de pouca delicadeza também viralizaram na internet.
A Europa, preocupada com seus próprios fantasmas internos e com o urso russo desarranjando em suas fronteiras, parece ter desistido de qualquer coordenação com a atual administração norte-americana, além dos temas cotidianos e de uma iniciativa isolada para um acordo econômico. A abordagem europeia quanto à Sérvia, por exemplo, o qual não reconhece como um país democrático, é totalmente distinta da norte-americana.
A cisão com os EUA nas estratégias internacionais afeta também uma agenda externa longa e cara aos europeus, que vão desde mudança climática, direitos humanos, defesa da democracia e proteção da intimidade. Para estes temas, o governo Trump não apenas desarticulou a coordenação prévia com os europeus, como ainda inspira líderes à direita em vários países, como Polônia e Hungria, que os contestam.
Não à toa, este cenário explica o enorme interesse europeu pelos resultados das eleições norte-americanas, com muita gente em Bruxelas torcendo descaradamente por uma mudança, uma possibilidade que aumentou fortemente após o presidente contrair covid-19 e o seu desempenho no debate eleitoral.
Mas os resultados da aposta do Biden no colégio eleitoral, caso funcione, seguramente não resolverá todos os dilemas europeus quanto à relação bilateral. é certo que se poderia antever menores choques quanto aos temas globais e à contenção da Rússia. Mas a lista de desavenças é longa: disputas comerciais que se arrastam há tempos (como a envolvendo a fabricante de aviões europeia Airbus), a exigência dos EUA quanto à reforma de organismos internacionais (a exemplo da OMC, pressionada desde o governo Obama), os próximos passos do Brexit, e sobretudo o modus vivendi com a China, com quem a Europa vê a necessidade de compromissos e os EUA veem como o conflito inevitável do século XXI.
Portanto, se uma mudança eleitoral nos EUA pode facilitar a coordenação de alguns temas (e diminuir a visível antipatia hoje existente na Europa), por outro lado, manterá uma longa lista de pendências bilaterais, para as quais a abordagem de Biden ainda é uma incógnita.
Além disso, as relações bilaterais entre EUA e Europa se verão afetadas pelas consequências do annus horribilis de 2020. Temas como imigração e desemprego ganharão ainda mais destaque, com as efeitos nefastos que trazem para o debate político e por favorecerem candidatos populistas e nacionalistas.
Paralelamente, as tentações protecionistas grassam, no mesmo sentido de jogar a culpa sobre o estrangeiro para exculpar mazelas internas. Por exemplo, aumentaram os incentivos para “relocalização de empresas”, o que na prática são subsídios para atrair de volta a manufatura que se consolidou na Ásia – e tanto Europa quanto Estados Unidos são protagonistas nesse fenômeno, que afeta diretamente as economias emergentes.
No mesmo sentido, países revisam normas que definem indústrias como “estratégicas”, para os quais comércio e investimento podem ser mais reguladas. Começou com a indústria médico-hospitalar, calejada pela falta de produtos durante a pandemia, mas está se estendendo para telecomunicações e novas tecnologias. De novo, em detrimento de mercados emergentes que dependem de investimento estrangeiro e de transferência de tecnologia para modernizar e “servicificar” seu crescimento.
Em todas essas tendências, o exemplo norte-americano ou europeu influencia o mundo ou provoca reações da Ásia. Por isso, é preocupante que o Reino Unido e a Europa tenham colocado em consulta pública, nas últimos semanas, propostas de regulamentação para impedir importação em seu território de produtos que promovam o desmatamento (ou de somente importar produtos “deforestation-free”). A experiência histórica demonstra que essas iniciativas acabam por ser copiadas por outros parceiros comerciais, por vezes mais interessados em impor barreiras do que no meio ambiente. Além disso, como já ocorreu com o combate à escravidão ou ao trabalho infantil, são medidas que juntam no mesmo balaio a agroindústria moderna e as técnicas extrativistas primitivas, prejudicando na prática todas as cadeias produtivas de um país. O Brasil, claro, tem de prestar particular atenção a este ponto, tanto pelo efeito sobre suas exportações, como pela consequência clara sobre o soft power de uma potência regional que não tem excedente militar. Não é à toa que o documento da consulta britânica cita, especificamente, Brasil e Indonésia como os países contra os quais a proibição de importações de commodities pode ter consequências efetivas na redução do desmatamento.
Por todo este contexto, o futuro da complexa relação EUA-Europa é um dos macrofatores a definir as relações internacionais nos próximos anos. Além do plano econômico-ideológico, terá impactos na previsibilidade econômica, num período em que todos os países lutam por recuperação pós-pandemia. Daí, reverbera em maior ou menor estabilidade financeira, em segurança para investimento estrangeiro direto, na eficácia das regras multilaterais. E em todas as regiões do mundo, como a pasmada expressão de Vucic ajuda a ilustrar.
* Welber Barral é estrategista de comércio exterior do Banco Ourinvest. Doutor em Direito Internacional (USP)