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Com decisões equivocadas, governo Lula aumenta a incerteza na economia

Trapalhadas como a da natimorta MP que limitaria créditos tributários das empresas expõem a inépcia do presidente e de seu time no jogo econômico

Por Juliana Elias, Felipe Erlich Atualizado em 14 jun 2024, 11h40 - Publicado em 14 jun 2024, 06h00

Apaixonado por futebol, o presidente Lula gosta de usar metáforas ligadas ao esporte para reforçar uma ideia ou expressar feitos de seu governo. Um projeto bem-sucedido é chamado de “gol de placa”, por exemplo. Nos últimos dias, contudo, Lula deu uma tremenda “bola fora”. Na terça-feira 4, milhares de empresários brasileiros acordaram sob a ameaça de um confisco de bilhões de reais das contas de suas empresas. De maneira simplificada, foi isso o que fez a Medida Provisória 1227, que restringiu o uso dos créditos tributários do PIS e da Cofins, dois impostos cobrados sobre os negócios. A MP foi publicada naquele dia pelo governo federal — sem aviso prévio e com efeito imediato. Os prejuízos potenciais, de acordo com a avalanche de advogados e entidades setoriais que prontamente emergiu para combater a decisão, seriam, além da abertura de um enorme buraco no caixa das empresas, os repasses dessa perda na forma de aumento de preços para clientes e consumidores. Apresentada como “MP do Equilíbrio Fiscal” pelo governo, a medida ganhou o apelido de “MP do Fim do Mundo” tão logo caiu no domínio público, o que dá ideia do impacto desastroso que havia provocado. Se para as empresas foi um susto, para o país significou o aumento da percepção de risco nos quesitos contas públicas, inflação, taxa de juros e câmbio — ou seja, um abalo considerável na situação da economia, com sérias dúvidas sobre o poder e o destino de ninguém menos que o ministro da Fazenda, Fernando Haddad (leia a reportagem na pág. 28).

arte MP do FM

O barulho gerado foi alto, e a vida da MP, ainda bem, curta. Na terça-feira seguinte, 11 de junho, o presidente do Senado e também do Congresso Nacional, Rodrigo Pacheco, anulou parte da medida provisória e a devolveu ao Executivo. As MPs são um tipo de proposição de lei prevista para ações emergenciais e que passam a valer imediatamente, de maneira temporária, sem precisar de aprovação prévia dos parlamentares. A votação e a conversão em lei acontecem depois. Por essa razão, a presidência do Congresso tem poder de impugnação quando avalia que a MP fere algum ponto da Constituição. Esse recurso, entretanto, foi usado pouquíssimas vezes. Um levantamento feito pelo escritório Cascione Advogados contou apenas outros cinco casos de devolução de MP desde a promulgação da Carta de 1988. Diante da bomba, Pacheco não teve alternativa.

SAÚDE AFETADA - Farmácia: com MP, o setor deixaria de contar com créditos para pagar impostos
SAÚDE AFETADA – Farmácia: com MP, o setor deixaria de contar com créditos para pagar impostos (Veetmano Prem/Fotoarena/.)

A magnitude dos prejuízos que a MP de PIS/Cofins causaria às empresas, seu efeito imediato sobre preços, cotação do dólar e negócios na bolsa de valores, a forma açodada com que foi decretada, a reação ruidosa que causou, sua sobrevida efêmera e o fim excepcional que recebeu dão a dimensão da inépcia, se não da total falta de responsabilidade, de Lula e seu time no jogo econômico. A rejeição da medida provisória pelo setor produtivo e pelo Legislativo colocou toda a agenda da economia na berlinda. “Foi um recado claro de que a estratégia do governo de solucionar o problema fiscal apenas pelo aumento de receitas chegou ao limite”, diz o economista especializado em contas públicas Murilo Viana. Nas palavras do estrategista-chefe da corretora BGC Liquidez, Daniel Cunha, a agenda arrecadatória “morreria de morte morrida”, exaurida pelo tempo, mas, com o episódio da MP, “acabou morrendo de morte matada”. Tomara.

POR UM FIO - Fábrica de tecidos: a medida causaria grandes perdas no setor
POR UM FIO – Fábrica de tecidos: a medida causaria grandes perdas no setor (Patricia Monteiro/Bloomberg/Getty Images)

A única forma de o governo se reerguer nesse campo, fundamental para o sucesso do país, é iniciar um processo de enxugamento de custos da máquina pública. Nos quatro meses até abril, a arrecadação da União cresceu 9% ante os mesmos meses do ano passado, considerado apenas o aumento acima da inflação. Sem nenhuma contrapartida de controle nos gastos, porém — que avançaram 12% no mesmo período, ressalve-se —, poucos acreditam na promessa de zerar o déficit fiscal neste ou no próximo ano. A recente trapalhada da MP, com o ministro da Fazenda desgastado, contribui para reforçar as dúvidas, e, em decorrência, ao contrário do que o governo quer, está criada uma nova pressão para o Banco Central reduzir ou até estancar o corte da taxa de juro básica em sua reunião de 19 de junho.

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BOMBA - Posto de combustível: aumento no ato de até 7% no preço da gasolina
BOMBA - Posto de combustível: aumento no ato de até 7% no preço da gasolina (Bruno Amaral/Fotoarena/.)

A bola fora cometida com a natimorta medida provisória foi um erro crasso à luz da Constituição e das melhores práticas de legislação tributária — aliás, contraria princípios da reforma que está para ser normatizada. Os créditos de PIS/Cofins são valores liberados pela Receita referentes ao que as empresas pagam a mais de tributos, conforme compram e vendem seus insumos e produtos. É uma maneira de evitar cumulatividade na cadeia, ou seja, a cobrança de imposto sobre imposto. Atualmente, as companhias podem usar esses créditos para pagar qualquer outra taxa federal ou então receber o valor de volta da Receita em dinheiro. A devolução, porém, pode demorar mais de um ano e não tem correção. Com a MP, esses saldos passariam a ser usados apenas para abater pagamentos de PIS e Cofins. Na prática, faria sobrar crédito parado na conta das empresas, já que estas levariam mais tempo para debitá-lo totalmente, ao mesmo tempo que precisariam de dinheiro novo para pagar os outros impostos. No caso de setores que são isentos de PIS/Cofins e que têm os chamados créditos presumidos, a MP vedava a devolução em dinheiro.

arte MP do FM

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De acordo com o governo, numa espécie de preconceito permanente contra a iniciativa privada, trata-se de um sistema repleto de fraudes e distorções, como é o caso de negócios que chegariam a ter “imposto negativo”, ou seja, que, além de não pagar o tributo, ainda recebem dinheiro a mais do Fisco. A realidade está longe disso. As medidas ajudam a reduzir uma carga tributária que hoje atrapalha e engessa investimentos no país. Nos cálculos da Fazenda, que até aqui só tem olhado para o lado das receitas, as mudanças permitiriam um aumento de arrecadação de 29 bilhões de reais neste ano. Mal aconselhado, Haddad garantiu que a medida não geraria custos ou inflação, mas não convenceu ninguém. “Os pagamentos de IPI vencem no dia 25, a contribuição previdenciária vence dia 20”, diz o advogado tributarista Adolpho Bergamini, colunista de VEJA. “Uma farmácia que já contava com esses créditos para pagá-los em junho, agora iria pagar com o quê?”

AQUI, NÃO - Pacheco, presidente do Senado: MP anulada e devolvida
AQUI, NÃO - Pacheco, presidente do Senado: MP anulada e devolvida (Lula Marques/Agência Brasil)

Medicamentos, combustíveis, produtos agrícolas e uma série de alimentos, além de todas as exportações, que são isentas dos tributos, estão entre os setores que mais teriam sofrido com a implantação da MP. “Não há aumento de alíquota ou da base de contribuintes”, diz Vanessa Canado, ex-secretária do Ministério da Economia para a reforma tributária e coordenadora do Núcleo de Pesquisas em Tributação do Insper. “Mas seria, sem dúvida, um aumento da carga, ou então de onde viriam os 29 bilhões de reais a mais que o governo previu em receita?” De acordo com o Instituto Brasileiro do de Petróleo e Gás, a conta de créditos inutilizados para as distribuidoras de combustíveis chegaria a 10 bilhões de reais, e cobri-­los significaria um aumento de até 7% na gasolina.

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REVOLTA - Rubens Ometto, dono da Cosan: “Governo está metendo a mão”
REVOLTA - Rubens Ometto, dono da Cosan: “Governo está metendo a mão” (Patricia Monteiro/Bloomberg/Getty Images)

A reação de quem iria pagar a conta veio firme. Em declarações carregadas de revolta, o presidente da Confederação Nacional da Indústria, Ricardo Alban, afirmou que o prejuízo para o setor seria de 29 bilhões de reais apenas em 2024. “O Poder Executivo está mordendo pelas bordas”, disse, em evento recente, Rubens Ometto, sócio-controlador do grupo empresarial Cosan e um dos doadores da campanha de Lula em 2022. “Ele vai mudando as normas e as regulamentações para arrecadar mais. Do jeito que está, com o governo metendo a mão, querendo taxar tudo e com juros desse jeito, não dá.” A medida, que chegou a valer por sete dias até ser devolvida, instaurou uma crise emergencial nas empresas. “O empresário se movimentou, gastou dinheiro com honorários de advogados para se defender”, diz o economista-chefe da Confederação Nacional do Comércio, Felipe Tavares Dein. “Voltar atrás não zera a conta, já deixou um efeito negativo.”

CONTRA-ATAQUE - Alban, da CNI: o empresariado se mobilizou
CONTRA-ATAQUE - Alban, da CNI: o empresariado se mobilizou (Michelle Fioravanti/CNI/.)

A “MP do Fim do Mundo” foi apresentada como forma de compensar o rombo de 26 bilhões de reais advindo da desoneração da folha de pagamentos, acordada entre governo e Congresso. Em 17 de maio, o ministro Cristiano Zanin, do Supremo Tribunal Federal, deu sessenta dias para que o projeto de lei que formaliza o acordo sobre a desoneração fosse votado. Quase metade do prazo já ficou para trás e falta uma peça fundamental: de onde virão os recursos, de modo a atender à Lei de Responsabilidade Fiscal? Derrotado, Haddad diz que a Fazenda não tem “plano B” para a compensação e colocou a Receita Federal à disposição do Senado para que uma solução seja encontrada em conjunto — só agora, depois de toda a confusão causada. A bola, então, estaria com os parlamentares, incumbidos de sugerir uma ideia melhor para manter a desoneração da folha de pagamentos. A julgar pelo passado recente em matéria de responsabilidade fiscal dos congressistas, é melhor o ministério procurar também, por si só, alguma solução.

Do infortúnio, o setor privado tirou algumas importantes lições. “Ficou claro que existe uma capacidade de articulação do empresariado de dimensão até então desconhecida”, diz Ibiapaba Netto, diretor da Asso­cia­ção Nacional dos Exportadores de Sucos Cítricos, que acompanhou os fatos em Brasília. Verdade. Não há dúvida de que o poder de mobilização acabou sepultando a equivocada medida. Mas a questão crucial é que o episódio deu uma demonstração — para todo o mercado nacional e estrangeiro — de que a atual administração não compreende bem algumas variáveis básicas da atividade econômica, o que aumenta exponencialmente a incerteza sobre o cenário futuro. No saldo do imbróglio, ficou para o governo o alerta de que ele precisa urgentemente mudar a estratégia de jogo, tornar o meio-campo de negócios do Brasil mais seguro, adotar uma retranca nos gastos públicos e deixar o setor produtivo colocar a bola na rede. Se nada disso for feito, pode dar zebra.

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Publicado em VEJA de 14 de junho de 2024, edição nº 2897

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