Carta ao Leitor: Enfim, um começo
Abrir mão de uma parte da Eletrobras foi, sim, um aceno objetivo e sensato do governo em nome da boa gestão, estrada para um futuro menos desigual
O economista americano Milton Friedman (1912-2006), um dos mais influentes pensadores liberais do século XX, crítico contumaz do Estado inchado, é autor de uma frase, uma divertida e irônica provocação, que poderia servir de manifesto: “Se puserem o governo para administrar o Deserto do Saara, em cinco anos faltará areia”. Há algum exagero, evidentemente — mas eis a graça das tiradas que se perpetuam. No Brasil, existem iniciativas estatais positivas, de serviços competentes, modernos e de vital utilidade pública, como a Receita Federal, o sistema eletrônico de votação, implementado desde os anos 1990 pelo TSE, e o Sistema Único de Saúde (SUS), que, na tragédia da pandemia do novo coronavírus, tem representado um digno porto seguro a milhões de brasileiros. Tê-los é uma bênção coletiva.
E, no entanto, quando se olha ao redor, há demasiado Estado. Tamanho exagero tornou-se um atalho para a ineficiência e a corrupção, como se viu nos sucessivos anos de desmando que emolduraram o assalto aos cofres públicos da Petrobras. É bem-vinda, portanto, a aprovação pelo Congresso da medida provisória que abre caminho para a privatização da Eletrobras — trata-se, a rigor, de um processo de capitalização da companhia. O governo tem, hoje, 61% dos papéis da empresa. Ficaria com somente 45%. É apenas um bom começo, uma largada promissora — faltam ainda a avaliação do BNDES, o parecer do Tribunal de Contas e a aceitação dos acionistas. Mas é passo na direção correta, que deve ser celebrado, e tema da reportagem que começa na pág. 46.
Com a eleição de Jair Bolsonaro à Presidência, havia imensa expectativa de que sua gestão abrisse mão de empresas estatais para a iniciativa privada. O ministro da Economia, Paulo Guedes, chegou a dizer, ainda na campanha eleitoral, que a privatização resultaria em pelo menos 1 trilhão de reais para os cofres públicos. Infelizmente, estamos muito distantes dessa meta. Tome-se como exemplo dessa ineficiência os Correios, ímã de apadrinhamentos políticos e negociatas, terreno fértil para o suborno. Mesmo tendo o monopólio na entrega de correspondências, a empresa consegue ser deficitária. De 2013 a 2018 foram mais de 3 bilhões de reais de prejuízo. Estima-se que perca 10% ao ano de valor de mercado, com o crescimento de companhias privadas de logística de reputada qualidade, velocidade e capilaridade. O Estado, enfim, não precisa entregar cartas. Portanto, abrir mão de um naco da Eletrobras foi, sim, um aceno objetivo e sensato em nome da boa gestão, estrada para um futuro menos desigual, em que o governo possa empregar seus recursos nas áreas que realmente são necessárias.
Publicado em VEJA de 30 de junho de 2021, edição nº 2744