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Relação com o Brasil deveria ter peso maior, diz ex-ministro argentino

Em entrevista exclusiva a VEJA, o ex-ministro da Economia da Argentina Martín Guzmán fala sobre suas impressões do país, que vive uma crise interminável

Por Luana Zanobia Atualizado em 13 mar 2024, 18h55 - Publicado em 13 mar 2024, 15h13

A Argentina, palco de sua terceira grande crise em apenas 40 anos de democracia, está mergulhada em desafios persistentes, muitos dos quais têm raízes profundas em questões mal resolvidas do passado. Agora, comandado por Javier Milei, economista com visão ultraliberal, o país precisa endereçar essas questões antes de qualquer mudança de rota.

A inflação, que supera os três dígitos, é a face mais tangível da crise argentina. Os preços dispararam, aumentando em 276,2% no acumulado de doze meses até fevereiro, deixando visíveis os efeitos colaterais desse desequilíbrio econômico nos bolsos dos argentinos. A abundância de pesos em circulação é apontada como uma das principais causas desse fenômeno, resultado direto dos déficits fiscais acumulados ao longo de uma década. No total, a dívida argentina é de US$ 366 bilhões. Deste montante, US$ 170 bilhões são denominados em moeda estrangeira.

O economista e acadêmico Martín Guzmán, ex-ministro da Economia na gestão de Alberto Fernández (2019-2022), desempenhou um papel crucial na negociação da dívida da Argentina com seus credores estrangeiros e o Fundo Monetário Internacional (FMI). Essa ação foi fundamental para evitar que o país entrasse em default, porém, seu período no cargo foi marcado pelo estouro da inflação. Discípulo dos ensinamentos de Joseph Stiglitz, vencedor do Prêmio Nobel de Economia, Guzmán ingressou no cargo sem experiência prévia na esfera política. Em 2022, o país negociou um acordo para quitar aproximadamente US$ 44 bilhões com o FMI entre 2026 e 2034, ou seja, houve um rolamento da dívida. Em troca, comprometeu-se a reduzir o déficit fiscal de 3% do Produto Interno Bruto (PIB) em 2021 para 0,9% até 2024. Contudo, enfrentando forte oposição de Cristina Kirchner e a persistente escalada da inflação, Martín Guzmán renunciou ao cargo, em  2022.

Agora, o governo liderado por Javier Milei tem buscado implementar um plano de ajuste econômico desde sua posse, incluindo desvalorização do peso e desregulamentação de preços controlados. Embora tenha havido uma leve desaceleração na taxa de inflação em fevereiro, que caiu de 20,6% em janeiro para 13,2%, os níveis permanecem inaceitavelmente altos, corroendo a renda da população e exacerbando os índices de pobreza do país. A nação ainda segue liderando a lista de países com a pior inflação do mundo.

Confira abaixo entrevista exclusiva com Martín Guzmán, que enfatizou a importância da relação da Argentina com o Brasil . Ele ressaltou a relevância da estabilidade política e econômica no Brasil como um fator crucial para a estabilidade da América do Sul como um todo, destacando a interdependência entre as economias dos dois países e a importância de trabalharem juntos para promover o crescimento e o desenvolvimento mútuo.

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Durante a pandemia, quando muitos países aumentaram seus gastos para lidar com a crise sanitária, o senhor liderou a renegociação da dívida argentina. Considerando esse contexto, quais foram os principais obstáculos enfrentados e como foram superados? A reestruturação de 2020 proporcionou um alívio significativo que foi essencial para permitir a recuperação econômica que se seguiu em 2021 e 2022, mas a sustentabilidade a longo prazo depende de múltiplos fatores, incluindo uma gestão fiscal sustentável. Não existe um quadro internacional para a reestruturação da dívida soberana, e é evidente que essa lacuna representa um grande obstáculo que gera complexidades desnecessárias. Pressões de economia política adicionam um elemento de complexidade aos processos de reestruturação da dívida.

Considerando a estagnação econômica persistente na Argentina desde 2012 e a predominância de empregos precários e informais, qual é a sua visão sobre a principal barreira estrutural que impede o país de alcançar um crescimento sustentável e inclusivo? O primeiro grande obstáculo tem sido uma gestão macroeconômica inconsistente. Somado a esse problema estava o comportamento de tomar emprestado quantias imensas de dívida em moeda estrangeira desde 2016. Apenas dois anos depois, essa dívida se tornou insustentável. Além disso, em 2018, o FMI liberou um empréstimo recorde ao país de  US$ 45 bilhões, valor que excedeu em 127 vezes a capacidade de endividamento do país. Em seguida, houve a pandemia de Covid-19 em 2020, e durante os anos que se seguiram à pandemia foi impossível alcançar consenso dentro da então coalizão governante sobre como resolver os desequilíbrios macroeconômicos.

A intervenção estatal em setores-chave da economia, juntamente com regulamentações rígidas, tem sido um obstáculo ao crescimento do setor privado e à competitividade internacional. Poderá a postura neoliberal do novo governo mudar esta situação? O novo governo argentino aponta que existem privilégios, incluindo um excesso de regulamentações, algumas das quais são destinadas a beneficiar interesses estabelecidos, que afetam negativamente o desempenho da economia de mercado. No entanto, a abordagem que está sendo adotada não levará a uma economia mais competitiva e com melhor desempenho. Os monopólios precisam ser regulados. No entanto, o presidente Milei argumenta que a regulamentação dos monopólios é ineficiente. Isso nem mesmo é uma postura neoliberal. Sua abordagem levará a uma maior concentração, abuso de poder de mercado e desigualdade.

Considerando as declarações do Ministro da Economia do governo de Javier Milei, Luis Caputo, sobre contar com o Brasil para ajudar a Argentina a superar sua atual crise econômica, como o senhor vê o papel do Brasil no contexto da recuperação econômica da Argentina? Existem duas questões que precisam ser separadas aqui. Por um lado, a Argentina tem seus próprios problemas a serem enfrentados, e esses precisam ser resolvidos pela Argentina. Por outro lado, é do interesse de ambos os países que suas relações sejam baseadas em políticas estatais mais estáveis, em vez de políticas governamentais, o que significa que certas políticas não mudam quando o governo muda. Isso é o que deveria acontecer com o desenvolvimento de infraestrutura regional, que ajudaria ambos os países a se tornarem mais competitivos e resilientes, dado que esses investimentos requerem horizontes temporais — para planejamento e operações — que transcendem os governos.

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Que oportunidades e desafios o senhor identifica para a cooperação econômica entre os dois países? O Brasil deveria ser o país mais importante para a Argentina em termos de política externa. O Brasil é o país mais relevante no potencial de investimentos em infraestrutura para integração que aumentam a competitividade da região. Também é o país com o qual uma agenda de política externa comum para aprimorar o financiamento regional para infraestrutura e conhecimento traria os maiores benefícios. Seria bom ver uma agenda de planejamento regional de longo prazo entre os estados da Argentina e do Brasil. Não vemos isso hoje. Nem mesmo vemos parcerias entre think tanks de ambos os países para pensar sobre essas questões. Estou pressionando fortemente para mudar isso em meu país.

Como podem os países latino-americanos melhorar o seu déficit de infraestruturas sem sucumbir à corrupção e a resultados ineficientes? As instituições são fundamentais. O Estado deve ter estruturas legislativas e normativas que impeçam a corrupção e, ao mesmo tempo, tornem a execução eficiente. Na Argentina, a arquitetura do Estado precisa de reforma. Estou pressionando por uma lei aprimorada para a gestão financeira pública. A corrupção danifica não apenas a legitimidade do Estado, mas também a democracia e a soberania, e não deve ser tolerada.

O avanço das políticas industriais nos EUA e na Europa pode prejudicar a competitividade para a industrialização nas economias emergentes? Se não reagirmos adequadamente, sim. Os Estados Unidos estão basicamente violando as regras da OMC sob o argumento de que os subsídios são implementados por razões de segurança nacional. Isso é abuso de poder. Isso não significa que os Estados Unidos não devam adotar políticas industriais, mas as regras do comércio internacional devem ser redefinidas para evitar abusos de poder e nivelar o campo para políticas industriais. O Mercosul se beneficiaria de negociar acordos comerciais e de investimento que tornassem seus países elegíveis para os subsídios que economias avançadas fornecem para políticas industriais, como os previstos na Lei Chips da União Europeia e na Lei de Redução da Inflação nos EUA. Isso não tem feito parte dos frameworks das negociações recentes do acordo Mercosul-UE, mas deveria.

E em relação à China? Também devemos prestar mais atenção ao que acontece com os padrões de comércio entre a América Latina e a China. Nossos países exportam commodities e importam produtos manufaturados de média e alta tecnologia da China, replicando padrões coloniais. Uma integração mais profunda com a China baseada nos padrões atuais não é a solução para nossos problemas de desenvolvimento. Isso não significa que as relações não devam ser bem estabelecidas, de forma alguma, pois são importantes e trazem certos benefícios, mas devemos estar cientes de que os benefícios para a região do comércio com a China são limitados.

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