Avanço da reforma tributária deve render atritos entre governo e Congresso
Depois da aprovação, é preciso definir os setores que serão beneficiados. Para isso, dependerá do apoio e da boa vontade do Legislativo
Em um sistema político como o do Brasil, é impossível governar sem o apoio e a retaguarda do Congresso. Divergências são naturais e desejáveis, mas embates encarniçados entre o Executivo e o Legislativo podem afetar o que se costuma chamar de governabilidade. Em 2023, o presidente Lula colheu vitórias e amargou derrotas na sua relação com a Câmara e o Senado, o que, no cômputo geral, faz parte do jogo democrático. Nas últimas semanas, contudo, os conflitos na seara econômica ganharam intensidade e mostraram que a administração petista não terá, em 2024, vida fácil pela frente. No apagar das luzes do ano passado, o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, precisou correr atrás de soluções fiscais para contornar a renovação da isenção de impostos sobre a folha de pagamento imposta pelo Congresso. Agora, o ano mal começou e Haddad já recebeu uma saraivada de críticas feitas pelo próprio PT, que vem engrossando os ataques à sua ambiciosa meta de zerar o déficit das contas públicas, chamada de “austericídio fiscal” pela presidente da legenda, Gleisi Hoffmann. Nas próximas semanas, novos atritos estão previstos, e eles dizem respeito a um tema vital para o país: a reforma tributária.
Promulgada pelo Congresso Nacional em 20 de dezembro, a reforma não está plenamente estabelecida. Ao menos setenta pontos precisam ser regulamentados por meio de leis complementares que deverão ser apresentadas pelo governo ao Congresso nos próximos meses. Ou seja, há muito por ser negociado com os parlamentares que analisarão as propostas. “Embora as diretrizes básicas do novo sistema tributário estejam definidas, a forma como as leis complementares serão redigidas pode influenciar ou desidratar o seu impacto potencial”, diz Bráulio Borges, economista-sênior da consultoria LCA e pesquisador da Fundação Getulio Vargas.
A lista de pendências que serão apreciadas pelo Congresso é liderada pelo novo Imposto sobre Valor Agregado (IVA), similar ao aplicado nos países desenvolvidos. O IVA substituirá cinco tributos — três federais, um estadual e outro municipal. Portanto, sua premissa básica, que é simplificar o sistema, está garantida. No entanto, há um aspecto fundamental para torná-lo mais eficaz: a alíquota que incidirá sobre os produtos e serviços oferecidos pelos diferentes setores econômicos. Estimada em 27,5% pelo Ministério da Fazenda, a taxa já está entre as mais altas do mundo e poderá aumentar em virtude das exceções e tratamentos diferenciados previstos para alguns segmentos. “Cálculos do próprio Ministério da Fazenda mostraram que, sem nenhuma exceção, o IVA ficaria entre 22% e 23%”, diz Alexandre Manoel, ex-secretário de Planejamento do Ministério da Economia e atual economista-chefe da AZ Quest Investimentos.
O governo tem 180 dias contados a partir da promulgação da reforma para elaborar as leis complementares e enviá-las para o exame dos parlamentares. O plano da equipe econômica é empacotar tudo em três ou quatro grandes projetos de lei. “Haddad saiu vitorioso em 2023, mas em 2024 as coisas serão mais difíceis”, diz o especialista em contas públicas Felipe Salto, economista-chefe da Warren Investimentos. Mais pessimista que a ampla ala de entusiastas da reforma tributária, Salto calcula que o IVA poderá passar dos 33% com todos os benefícios do projeto brasileiro, e duvida da capacidade de o Executivo e o Legislativo darem conta da montanha de detalhes que está pendente. “A tarefa é árdua e deverá consumir todo o crédito que o governo ainda tem”, diz.
Setores como transporte público, saúde e educação poderão ter de 30% a 100% de desconto do imposto total. Ou seja, se a alíquota padrão do IVA ficar em 27%, eles pagarão de 18,9% a zero. Serviços financeiros, mercado imobiliário, restaurantes e agências de viagens, entre outras áreas de negócios, também deverão desfrutar de regimes especiais, com formas de cobrança próprias. No campo oposto, há aqueles que reclamam por não terem sido contemplados com as benesses. As companhias aéreas dizem que, se pagarem a alíquota cheia do IVA, de 27,5%, os gastos com tributação aumentarão em 12 bilhões de reais ao ano, o que certamente vai pesar no preço das passagens. Os debates estão apenas no início e certamente o Congresso será assediado nos próximos meses por diversos lobbies setoriais.
Entre os pontos mais aguardados pelos especialistas está a definição da chamada “cesta básica nacional”. Incluída no projeto pela Câmara dos Deputados, ela terá direito a imposto zero, mas é preciso estipular os itens que contarão com o benefício. Atualmente, a cesta de referência abrange uma ampla gama de produtos e varia em cada estado, incluindo alimentos, bebidas, produtos de higiene pessoal e limpeza. O objetivo da reforma é criar um padrão único nacional e reduzir o número de mercadorias contempladas. “A batalha da cesta básica promete ser intensa, com diversos setores pleiteando a inclusão de seus produtos, enquanto o governo terá a difícil tarefa de estabelecer critérios claros para ela”, diz Bráulio Borges, da FGV. De acordo com cálculos do especialista, uma cesta com algo entre 50 e 70 produtos isentos responderia, sozinha, por dois pontos percentuais de aumento da alíquota padrão do IVA aplicada sobre os outros setores. Se a lista de itens isentos for maior do que isso, a alíquota do novo imposto poderia chegar a 30%, superando o limite de 27,5% pretendido pelo governo.
Outro ponto de tensão será a definição dos produtos que ficarão sujeitos ao Imposto Seletivo, apelidado de “Imposto do Pecado”. A missão desse tributo, comum em países que adotam um sistema baseado no IVA, é aplicar taxação extra sobre itens considerados prejudiciais à saúde e ao meio ambiente, como cigarro, bebidas alcoólicas, alimentos ultraprocessados e combustíveis fósseis. Com isso, ao mesmo tempo em que desestimula o consumo, reforça a arrecadação. O problema é que ninguém quer fazer parte dele. “O desafio será encontrar um equilíbrio que promova a arrecadação necessária, reduza o consumo prejudicial e, ao mesmo tempo, evite efeitos colaterais indesejados à economia”, afirma Borges.
Apesar dos ajustes necessários que pairam sobre a reforma tributária, ela é mais do que bem-vinda. O emaranhado de tributos brasileiro sufoca empresas, prejudica consumidores e emperra o crescimento econômico do país. “Agora, o que é necessário fazer é lutar até o fim para conter o aumento de exceções”, afirma Alexandre Manoel, da AZ Quest. Nesse sentido, governo e Congresso precisam se manter em sintonia para resistir às inevitáveis pressões que surgirão de toda parte. O desafio, portanto, está longe de terminar.
Publicado em VEJA de 5 de janeiro de 2024, edição nº 2874