Avanço da reforma administrativa torna-se condição para recuperação do PIB
Texto é enviado ao Congresso como sinal de que a política econômica do governo mantém o compromisso com as contas públicas
Em um encontro de presidentes de bancos centrais realizado na Suíça no fim do ano passado, o representante brasileiro, Roberto Campos Neto, se viu em uma situação desconfortável. Durante uma conversa com o canadense Mark Carney, então comandante do venerável Bank of England, com passagem também pela presidência do congênere Bank of Canada, ele ouviu do colega um comentário a respeito das bonificações que pagava como incentivo a seus funcionários. Em seguida, Carney perguntou que tipo de estímulo Campos Neto adotava no Brasil. Meio sem graça, o brasileiro respondeu que esse tipo de benefício era vedado pela legislação que rege o funcionalismo público. “E como vocês punem aqueles que não desempenham bem o trabalho?”, emendou Carney. “Não punimos. A legislação também não permite”, encerrou o presidente do Banco Central do Brasil. Se o diálogo tivesse ocorrido na última semana, Campos Neto talvez não experimentasse o mesmo constrangimento. Depois de ficar dez meses engavetada no Palácio do Planalto, a reforma administrativa, que modifica as estruturas do funcionalismo no país e estabelece princípios de meritocracia no Estado, foi finalmente liberada pelo presidente Jair Bolsonaro para ser entregue ao Congresso como proposta de emenda à Constituição (PEC).
O texto enviado pelo presidente é uma das âncoras do processo de reestruturação do Estado brasileiro proposto pelo ministro da Economia, Paulo Guedes, junto com a já aprovada reforma da Previdência e a reforma tributária, ainda em tramitação. Com a reforma administrativa, a equipe econômica pretende aproximar as regras válidas para os servidores das práticas das empresas privadas. Entre as medidas propostas estão a extensão do período de experiência no qual o servidor pode ser demitido, avaliação de desempenho e o fim das promoções ou progressões de carreira exclusivamente por tempo de serviço.
Privilégios como mais de trinta dias de férias por ano, redução de jornada sem diminuição da remuneração, pagamentos de parcelas indenizatórias sem a caracterização de despesas diretamente decorrente do desempenho da atividade, incorporação de cargos em comissão ou funções de confiança à remuneração permanente serão extintos. E também será vetada a aposentadoria compulsória como modalidade de punição (dispositivo em que o funcionário é afastado e continua a receber o benefício previdenciário). “A reforma administrativa é crucial para o avanço do país. Tanto que já deveria ter sido realizada há pelo menos vinte anos, para que o cenário não fosse o que vivemos hoje, de extrema pressão sobre o Orçamento”, diz o senador Antonio Anastasia (PSD-MG), membro da Frente Parlamentar que será responsável pela análise do projeto governista.
O envio da PEC ao Congresso foi o clímax de um rito um tanto quanto peculiar iniciado por Bolsonaro na terça-feira, dia 1º. O presidente anunciou que a proposta finalmente seria desengavetada em uma declaração dada horas depois de o IBGE divulgar a queda histórica do produto interno bruto do segundo trimestre. Entre abril e junho, o período mais impactado pela pandemia do coronavírus, a economia encolheu 9,7%. Apesar de o resultado vir em linha com as expectativas gerais do mercado e com a desaceleração de países por todo o mundo, o índice marcará 2020 como o ano de queda recorde do PIB em mais de um século. Ao acionar a ignição da reforma administrativa, o governo deu o sinal que o mercado ansiava de que a crise não será combatida apenas com medidas populistas, como o despejo de mais dinheiro entre a população mais vulnerável do ponto de vista econômico, mas também com um esforço para tornar o Estado menos pesado e mais eficiente. Foi o bastante para o Ibovespa valorizar-se 2,28% naquele mesmo dia.
Em uma estratégia semelhante à adotada com a reforma tributária, em que temas mais controversos foram deixados para uma segunda etapa, a PEC encaminhada aos parlamentares não aborda ainda assuntos como a definição de remuneração de entrada dos servidores, faixas salariais para progressão de carreira, lista de funções que serão extintas e definição dos cargos que perderão a estabilidade. Mesmo assim, quando aprovada, a reforma deve trazer alívio às contas do governo. Segundo um estudo elaborado pelo Ministério da Economia, o Brasil gasta 12% do PIB com o serviço público. Em países como Alemanha, Chile, Estados Unidos, Portugal, Reino Unido e Singapura, os dispêndios com a administração não ultrapassam 9% do PIB. Trata-se de um custo que não agrada a quem utiliza seus serviços. Um levantamento da Confederação Nacional da Indústria revela que 70% da população avalia de forma negativa a aplicação de recursos federais no setor público.
Quando a equipe econômica passou a desenhar a reforma, descobriu uma enormidade de esqueletos nos armários da administração federal. Entre os achados estavam carreiras extintas ainda em vigor, bônus para aposentados, servidores que progrediam de carreira depois de fazer cursos básicos e funcionários públicos com remuneração superior à de ministros e secretários. Ainda assim, Bolsonaro nunca foi um defensor fervoroso da pauta. Chegou a indagar aos técnicos do ministério por que a pressa para realizar as mudanças e, temendo ser alvo de manifestações como as ocorridas no Chile em 2019 e o impacto eleitoral da medida, barrou as discussões. Em uma conversa reservada com Paulo Guedes em torno da proposta, o presidente fez o seguinte cálculo: “Cada funcionário público tem, em média, quatro familiares. Então, se for reduzido o salário de mais de 10 milhões de servidores do Brasil, serão cerca de 40 milhões de votos a menos”.
A estimativa apresentada por Bolsonaro a Guedes foi soprada em seus ouvidos por assessores palacianos, entre eles representantes da ala militar, temerosos com a possibilidade de suas categorias serem afetadas. E, mesmo com a reforma administrativa preservando as Forças Armadas, o presidente receava que, no Congresso, o projeto pudesse ser ampliado e que parte da sua popularidade entre os servidores públicos, que não tiveram o seu salário reduzido em meio à pandemia, fosse afetada. Algo que o preocupa muito, dada a obsessão que tem por sua reeleição.
Pouco antes de fazer o anúncio de que enviaria o projeto ao Parlamento, o presidente e Guedes encontraram-se com lideranças da Câmara e do Senado para alinhar os ponteiros. Os dois ouviram dos congressistas o compromisso em debruçar-se sobre a reforma, em um claro gesto de apoio a Guedes como fiador da agenda econômica, depois de dias de desgastes do chefe da Economia com a ala mais perdulária do governo. No Congresso, antes mesmo da apresentação da PEC, parlamentares que reconheciam sua relevância para o país já se movimentavam para forçar a entrada do tema na pauta. “Os bons funcionários e os bons serviços prestados precisam ser reconhecidos, assim como precisamos corrigir distorções e privilégios inaceitáveis”, diz a senadora Kátia Abreu (PP-TO), que atua na frente parlamentar sobre o assunto, presidida pelo deputado Tiago Mitraud (Novo-MG). Mesmo com os trabalhos já iniciados, o grupo dependia de uma iniciativa do Executivo. “Não dava para avançar no tema sem eles no barco, porque é uma proposta que altera a estrutura do Executivo”, explica Mitraud. Tanto ele como o próprio governo reconhecem que têm muito trabalho pela frente e que a tramitação dificilmente será simples e célere, dada a complexidade do assunto e interesses envolvidos. Ainda assim, trata-se de um passo fundamental para corrigir algumas das disfunções mais execráveis e duradouras do Estado brasileiro.
Publicado em VEJA de 9 de setembro de 2020, edição nº 2703