As moedas virtuais ganham força e mercado
Os bancos centrais do Brasil e dos EUA preparam a criação do real e do dólar digitais, criptomoedas oficiais que deverão fazer frente a suas congêneres
Por todo o mundo desenvolvido, os bancos centrais estão sendo arrastados para o sistema financeiro do século XXI. O grande desafio dessas instituições tem sido acompanhar a velocidade de inovações trazidas pelo mercado para revolucionar as formas de pagamento. Em poucas áreas isso pode ser tão bem percebido quanto em relação às moedas digitais, um território novo pelo qual o governo brasileiro começa a se aventurar. No início do mês, ao comemorar a aprovação da autonomia do Banco Central (BC) pelo Senado, o ministro da Economia, Paulo Guedes, anunciou que o país criará o real digital, uma moeda virtual lastreada na unidade monetária nacional. A novidade dá sequência a outras inovações que vêm sendo preparadas pelo BC, como o compartilhamento de dados financeiros do open banking e o novo sistema de transações digitais, o PIX. “O Brasil terá moeda digital, estamos à frente de muitos países”, disse Guedes, na ocasião. A ideia é implementar o que no exterior já é conhecido pela sigla de CBDC (Central Bank Digital Currency, ou moeda digital de Banco Central, em português). De acordo com Roberto Campos Neto, presidente do BC, o projeto deve ficar pronto até 2022.
As principais vantagens observadas por diversos bancos centrais mundo afora são a eficiência que a digitalização da moeda pode trazer ao sistema de pagamentos e a eliminação de gastos com papel, impressão e transporte seguro necessários à moeda física, por exemplo. Os resultados da implementação, porém, ainda são incertos, afinal, nenhum país usa uma moeda digital soberana em grande escala. “A identificação das vantagens é dependente da situação específica de cada país”, disse a VEJA o chefe adjunto do departamento de tecnologia do Banco Central, Aristides Andrade Cavalcante Neto, coordenador do grupo de estudo sobre emissão de moeda digital. “Um dos objetivos é a digitalização dos pagamentos, de forma rápida, barata, segura e eficiente”, explica. O principal desafio é identificar qual modelo de moeda digital seria mais adequado ao contexto brasileiro e que acabe se complementando ao uso do PIX, que entra no ar oficialmente na segunda (16).
Os estudos vão em linha com o que o Federal Reserve (Fed), o banco central americano, também está fazendo. Administrador do dólar, a moeda dominante nas relações de comércio internacional, a instituição não pôde fechar os olhos diante dos avanços alcançados em países como a China, Coreia do Sul e França com suas criptomoedas nacionais. A instituição, porém, conduz o tema com cautela. “É mais importante para os Estados Unidos acertar que ser o primeiro”, disse recentemente Jerome Powell, presidente do Fed, em um evento do Fundo Monetário Internacional (FMI) ao se referir aos planos de adoção da moeda digital. Se os americanos prezam pela segurança, em termos de velocidade, o banco central chinês está à frente de todos, refletindo o acelerado ritmo com que o país adentrou na era do dinheiro virtual — com a ressalva de que os dados divulgados pelo Estado chinês não costumam ser totalmente transparentes. No começo do mês, o chefe do Banco Popular da China, Yi Gang, afirmou que correu bem o programa piloto de implementação do yuan digital em quatro cidades chinesas, com 4 milhões de transações no valor de 2 bilhões de yuans (cerca de 300 milhões de dólares).
As moedas digitais são o novo capítulo da revolução trazida pela internet. Tudo começou com a criação do bitcoin, em 2008, um sistema eletrônico de troca de dinheiro ponto a ponto que tem como vantagem a facilidade das transações, sem a necessidade de intermediários como bancos ou o pagamento de taxas. Desde então, mais moedas digitais vêm sendo criadas, como a ethereum e a tether, e a pandemia aumentou a sua utilização. De acordo com o site de rastreamento de preços CoinMarketCap, o volume de transações em 24 horas do bitcoin depois do surgimento da Covid-19 chegou a ultrapassar 70 bilhões de dólares — antes, o recorde era de cerca de 45 bilhões. O crescimento das criptomoedas é tamanho que grandes empresas de pagamentos passarão a aceitá-las a partir do ano que vem, como o PayPal. Trata-se de uma grande conquista para os seus adeptos. E está aí a grande preocupação dos bancos centrais em não ficar de fora do movimento: o risco é de moedas não soberanas, com as quais não podem lidar por meio de política monetária, ganharem muito espaço nas transações internacionais. Um dos grandes motivos para os Estados Unidos contarem com maior facilidade para se endividar fortemente sem correr os mesmos riscos de outros governos é que o país pode fazer emissões muito maiores de sua moeda e ainda conseguir empréstimos com juros mais baixos, já que o dólar tem demanda global. Perder uma vantagem como essa teria o potencial de trazer efeitos sísmicos para a maior economia do mundo.
Apesar do crescimento da demanda pelo dinheiro digital, a regulamentação na área está apenas começando. Na segunda-feira 9, o BC autorizou o Mercado Crédito, um dos braços da empresa de comércio eletrônico Mercado Livre, a atuar como instituição financeira. Na prática, isso significa que a plataforma do conglomerado digital de origem argentina poderá ofertar produtos financeiros como crédito por meio de fundos próprios, sem precisar da intermediação de um banco. A empresa, que realizou entre janeiro e setembro operações de crédito no valor de 2 bilhões de reais, monitora as regulações do BC, mas já considera o PIX como o caminho para a moeda digital brasileira. “Esse novo sistema de pagamento eletrônico já tem o potencial de substituir o dinheiro por meio de transações feitas por aplicativos, por exemplo”, diz Rodrigo Furiato, diretor de carteira digital do Mercado Pago.
Na China, foi uma outra empresa de comércio eletrônico, a Alibaba, que deu o empurrão inicial para a transformação. Porém, alguns atritos com o governo começam a aparecer quando o Ant Group, gigante de pagamentos nascido da empresa fundada pelo bilionário Jack Ma, se preparava para fazer sua abertura de capital, na primeira semana de novembro. A expectativa era movimentar 34 bilhões de dólares na operação, a maior já realizada no mundo. Às vésperas da realização da oferta pública nas bolsas de Xangai e Hong Kong, Ma foi convocado para uma reunião com autoridades monetárias chinesas e o processo foi suspenso. O motivo alegado para o cancelamento foi a necessidade de adequação a uma nova regulamentação prestes a ser implementada por Pequim. Um sinal de que nem mesmo o governo mais aberto às novidades das finanças digitais está disposto a ser atropelado por mudanças tão radicais.
Publicado em VEJA de 18 de novembro de 2020, edição nº 2713