Assine VEJA por R$2,00/semana
Continua após publicidade

Eletrobras traz bom sinal, mas governo Bolsonaro é tímido com privatização

O país ainda precisa percorrer um longo caminho para se livrar do peso e da ineficiência das estatais

Por Victor Irajá, Felipe Mendes Atualizado em 3 jun 2022, 10h08 - Publicado em 3 jun 2022, 06h00

Próximo ao apagar das luzes dos seus quatro anos de gestão, o governo de Jair Bolsonaro pode, enfim, vislumbrar sua primeira grande privatização, depois de muito prometer. Nos últimos dias, foram vencidos os empecilhos finais que travavam a oferta de ações da Eletrobras, a maior empresa de energia da América Latina, a investidores privados, o que deve acontecer em meados de junho, segundo o cronograma divulgado. O negócio promete movimentar entre 30 bilhões e 36 bilhões de reais, com o governo federal baixando a sua participação de 72% para 45% na empresa, o que pulverizará o seu controle. No fim de maio, o Tribunal de Contas da União (TCU) aprovou o prosseguimento do negócio, e donos de crédito da Furnas, uma das subsidiárias da Eletrobras, aceitaram que a companhia faça um necessário aporte na problemática usina hidrelétrica de Santo Antônio, em Rondônia, situação pendente que era um potencial risco à venda da estatal de energia. “Até o último segundo vai haver liminares e judicialização do processo, mas os maiores entraves foram superados”, avalia Ana Karina Souza, sócia de energia do escritório Machado Meyer Advogados.

arte estatais

Com as ações da Eletrobras à venda na Bolsa de Valores de São Paulo, a equipe econômica capitaneada pelo ministro Paulo Guedes terá finalmente bons motivos para comemorar. Desde os primeiros rascunhos do plano de governo de Jair Bolsonaro, Guedes e seus técnicos se propuseram a uma ampla pauta privatista, ao lado de uma série de outras reformas estruturantes para estimular a atividade econômica. A ambição de Guedes era arrecadar mais de 1 trilhão de reais apenas com vendas de estatais. O desafio, entretanto, foi muito maior do que o ministro avaliava. Entre as prioridades estavam dezessete empresas (veja o quadro). Desse total, apenas três foram efetivamente ofertadas à iniciativa privada — BR Distribuidora, Transportadora Associada de Gás e Companhia Docas do Espírito Santo. As demais encontram-se em diferentes estágios de andamento. “Estudos avançados sobre a Companhia Brasileira de Trens Urbanos, o metrô de superfície de Belo Horizonte, e o Ceasaminas estão, agora, em análise no TCU, que deve liberá-los em breve. Outros estudos bem encaminhados são do Trensurb, empresa de trens urbanos de Porto Alegre, e do Porto de Santos. Os dos Correios não conseguem seguir em frente porque o Senado não deu o seu aval”, explica Diogo Mac Cord, secretário especial de Desestatização, Desinvestimento e Mercado do Ministério da Economia. Na semana passada, em meio à crise política provocada pela alta no preço dos combustíveis, o Ministério de Minas e Energia, sob o comando de Adolfo Sachsida, pediu a inclusão da Petrobras no Programa de Parcerias de Investimentos (PPI). Caso aprovada, a medida abre caminho para a privatização da petroleira — um marco histórico, mas que deve demorar ainda para acontecer.

CORRIDA CONTRA O TEMPO - Os ministros Paulo Guedes e Adolfo Sachsida: foco tardio na lista de privatizações -
CORRIDA CONTRA O TEMPO - Os ministros Paulo Guedes e Adolfo Sachsida: foco tardio na lista de privatizações – (Edu Andrade/Ascom/ME/.)

Faltando cerca de seis meses para o fim do mandato de Jair Bolsonaro, o governo terá de se esforçar substancialmente para conseguir avançar, de fato, em seus planos de desestatização. Como acontece com outras reformas de grande relevância, como a administrativa, a venda de empresas públicas enfrenta a resistência de políticos, servidores e organizações sindicais que se valem da ineficiência, do inchaço e de privilégios oferecidos — cargos públicos, em geral com alta remuneração, e orçamentos milionários, alvos fáceis de esquemas corruptos. Até o próprio presidente da República tem demonstrado ao longo de todo o seu mandato posições contraditórias sobre o assunto, o que levou auxiliares de Guedes como o empresário Salim Mattar, sócio da locadora de automóveis Localiza, a pedir demissão do posto de secretário de Desestatização em agosto de 2020. “O tempo de privatização é longo: demanda consultar, avaliar, pegar informação, ter firmeza na decisão. Mas acima de tudo é preciso ter um objetivo claro para esse processo, que já é extremamente complexo”, diz Elena Landau, diretora de privatizações do BNDES nos anos 1990.

Programas de desestatização não são novidade no Brasil e o país coleciona conquistas muito relevantes nesse aspecto. Entre 1991 e 2002, foram privatizadas 165 empresas públicas, entre companhias sob responsabilidade da União, estados e municípios. Apenas durante o triênio de 1997 a 1999, correspondente à segunda metade do primeiro governo de Fernando Henrique Cardoso, o Brasil se desfez de 123 estatais. Os ganhos alcançados são inegáveis. A Embraer, privatizada em dezembro de 1994, transformou-se em uma potência no competitivo mercado global de aviação civil e militar e hoje se tornou uma das pioneiras em pesquisas com foco no futuro do setor aéreo, ao desenvolver protótipos de carros voadores.

Continua após a publicidade
ALVO - Refinaria da Petrobras: a privatização da estatal seria um marco histórico -
ALVO - Refinaria da Petrobras: a privatização da estatal seria um marco histórico – (Ehder de Souza/Agência Petrobras/.)

No setor de telecomunicações, empresas que mal conseguiam suprir a demanda de instalação de telefones fixos foram substituídas por companhias que atendem a um mercado onde existem 242 milhões de smartphones (o que corresponde a mais de um aparelho por habitante) e atualmente conduzem a transição para a telefonia móvel de alta velocidade, o 5G. A Vale, privatizada em 1997, faturava por ano cerca de 3 bilhões de reais e empregava 15 142 pessoas quando era uma estatal. Com capital aberto, hoje ela é a maior empresa do país, responsável por 72 000 empregos diretos, e tem receita de 293 bilhões de reais anuais. Apenas em impostos e royalties, a Vale rendeu ao governo federal no ano passado o equivalente a 45 bilhões de reais.

arte estatais

As empresas estatais surgiram em meados do século XIX como uma solução para suprir deficiências de mercado. Na época, a Inglaterra havia alcançado uma brutal dianteira econômica e tecnológica graças à Revolução Industrial. Do outro lado do Canal da Mancha, países como França, Bélgica e Alemanha entenderam que poderiam diminuir a lacuna em relação aos britânicos com investimentos públicos maciços em empresas controladas pelo governo dedicadas a setores como ferrovias, siderurgia e geração de energia. No Brasil, o modelo começou a ser aplicado quase um século depois, sob o comando de Getúlio Vargas, quando o governo federal tomou a dianteira no planejamento do desenvolvimento econômico, ocupando áreas negligenciadas pelos investimentos privados. É quando nascem colossos como a Companhia Siderúrgica Nacional, a Companhia Vale do Rio Doce e a Petrobras, entre outros. Uma peculiaridade do modelo brasileiro foi o viés ideológico que acompanhou o movimento marcado fortemente por uma cultura antimercado, de desconfiança do lucro e de protecionismo. Não por acaso, a atuação do Estado em áreas estratégicas tornou-se uma questão de soberania nacional. “Por aqui desenvolveu-se uma mentalidade de que o mercado era mal, o lucro pernicioso. E isso em um momento em que no exterior as estatais já eram vistas como fonte de problemas para os governos, com seu gigantismo e ineficiência”, explica Maílson da Nóbrega, ex-ministro da Fazenda.

SUCESSO GLOBAL - Thatcher com Ronald Reagan: o modelo britânico foi copiado mundo afora -
SUCESSO GLOBAL - Thatcher com Ronald Reagan: o modelo britânico foi copiado mundo afora – (Mike Sargent/AFP)

Poucos líderes mundiais personificaram a vontade política de livrar o Estado do peso de elefantes brancos como a ex-primeira-ministra britânica Margaret Thatcher. Em seu governo, entre 1979 e 1990, ela vendeu companhias de diversos setores, entre eles energia e comunicações, ainda que sob feroz resistência de sindicatos e rivais políticos. Bem-sucedido, seu exemplo foi seguido na década seguinte por governos da América Latina e Europa Central, com a queda dos regimes comunistas. Apenas durante o processo de reunificação da Alemanha, em 1990, a agência responsável pela desestatização vendeu mais de 300 empresas. Tais experiências deixaram um legado relevante no que diz respeito às soluções para transferência de empresas públicas para a iniciativa privada, minimizando impactos sociais negativos e maximizando as chances de sucesso futuro. Desde então, em pelo menos três ocasiões, o Prêmio Nobel de Economia foi outorgado a pesquisadores que se dedicaram diretamente ao tema. É o caso do francês Jean Tirole, laureado em 2014 por analisar regulação e poder de mercado, e dos americanos Paul Milgrom e Robert Wilson, vencedores em 2020, por trabalhos sobre leilões de ativos. Entre as muitas lições aprendidas, estão, por exemplo, a importância das agências reguladoras na criação e manutenção de mercados robustos, com alta capacidade de geração de empregos, produtos e serviços de qualidade a preços competitivos.

IDEOLOGIA - Agressão em leilão da Usiminas, em 1991: viés antimercado -
IDEOLOGIA - Agressão em leilão da Usiminas, em 1991: viés antimercado – (Christina Bocayuva /Folha Imagem/.)

Infelizmente, o Estado brasileiro ainda está muito inchado. Estudo recente do Ministério da Economia com dados do terceiro trimestre de 2021 contabiliza 46 estatais e 112 subsidiárias em poder da União. Tais empresas gastam por ano 72,4 bilhões de reais apenas com pessoal. Apesar de conquistas como a da Eletrobras, o governo de Jair Bolsonaro tem apresentado um posicionamento errático na maneira como lida com a privatização. Empresas pequenas e de menor importância, alvos fáceis de programas de estatização mais consistentes, resistem, como é o caso da Empresa Brasil de Comunicação e da desenvolvedora de chips Ceitec. E, em meio às dificuldades de reduzir o número de empresas públicas, criaram-se outras — ainda que pequenas —, como a NAV Brasil, inventada em 2020 para abrigar 1 698 servidores, oriundos da Infraero, e a ENBPar, que administrará a Itaipu Binacional e a Eletronuclear, excluídas do rol de companhias da Eletrobras. O fato é que os avanços poderiam ter sido muito maiores sem os arroubos populistas e eleitoreiros que acometem o atual presidente. Está mais do que provado que a mão pesada e burocrática do Estado deve se manter longe da gestão de empresas. Isso trará benefícios evidentes para o próprio governo, para os cidadãos brasileiros e para essas companhias.

Publicado em VEJA de 8 de junho de 2022, edição nº 2792

Publicidade

Matéria exclusiva para assinantes. Faça seu login

Este usuário não possui direito de acesso neste conteúdo. Para mudar de conta, faça seu login

Domine o fato. Confie na fonte.

10 grandes marcas em uma única assinatura digital

MELHOR
OFERTA

Digital Completo
Digital Completo

Acesso ilimitado ao site, edições digitais e acervo de todos os títulos Abril nos apps*

a partir de R$ 2,00/semana*

ou
Impressa + Digital
Impressa + Digital

Receba Veja impressa e tenha acesso ilimitado ao site, edições digitais e acervo de todos os títulos Abril nos apps*

a partir de R$ 39,90/mês

*Acesso ilimitado ao site e edições digitais de todos os títulos Abril, ao acervo completo de Veja e Quatro Rodas e todas as edições dos últimos 7 anos de Claudia, Superinteressante, VC S/A, Você RH e Veja Saúde, incluindo edições especiais e históricas no app.
*Pagamento único anual de R$96, equivalente a R$2 por semana.

PARABÉNS! Você já pode ler essa matéria grátis.
Fechar

Não vá embora sem ler essa matéria!
Assista um anúncio e leia grátis
CLIQUE AQUI.