A queda na confiança dos EUA como devedor não começou com Trump — mas ele a agravou
Sucessivos governos americanos, de ambos os partidos, falharam em conter o crescimento da dívida pública e dos déficits fiscais — com a conivência do congresso

O rebaixamento da nota de crédito dos Estados Unidos pela Moody’s, retirando o último selo “AAA” das finanças americanas, marca o fim de mais de um século de confiança inabalável na capacidade do país de honrar suas dívidas. A agência de risco mantinha a nota do país no patamar máximo desde 1917 — quando o mundo ainda enfrentava a I Guerra Mundial e na Rússia se desenrolava uma revolução comunista. Faz muito tempo e é simbólico que esse marco esteja caindo agora, em meio às incertezas econômicas causadas pela política tarifária do presidente Donald Trump. A verdade, porém, é que a deterioração da confiança nos Estados Unidos como devedor não começou com Trump — embora sua gestão tenha acelerado e agravado o quadro.
A Moody’s foi a última das três grandes agências de classificação de risco a retirar dos Estados Unidos o selo máximo de crédito. A Standard & Poor’s (S&P) foi a primeira a tomar essa decisão, em 2011, no auge da crise do teto da dívida, quando o presidente do país era o democrata Barack Obama. Naquele ano, o governo atingiu o limite legal de endividamento, então fixado em 14,3 trilhões de dólares (hoje já está em 36 trilhões de dólares), e precisou da aprovação do congresso para poder tomar novos empréstimos e honrar compromissos já assumidos, como pagamentos de benefícios sociais, salários de servidores e juros da dívida. O impasse político em Washington levou o país à beira do calote técnico, expondo a fragilidade do processo decisório americano e a incapacidade de avançar em um plano de consolidação fiscal robusto.
Já a Fitch rebaixou a nota americana em agosto de 2023, citando a deterioração fiscal esperada para os anos seguintes, o aumento da dívida pública e a percepção de que os padrões de governança haviam sido enfraquecidos ao longo das duas décadas anteriores, mesmo após acordos bipartidários para suspender o teto da dívida.
Ou seja, a decisão da Moody’s, anunciada na última sexta-feira, 16, reflete uma tendência de longo prazo: sucessivos governos, de ambos os partidos, falharam em conter o crescimento da dívida pública e dos déficits fiscais — com a conivência do congresso americano. O déficit anual dos Estados Unidos está em aproximadamente 2 trilhões de dólares, ou 6,4% do Produto Interno Bruto (PIB), e a relação dívida/PIB deve saltar de 98% em 2024 para 134% em 2035. Segundo a Moody’s, os pagamentos de juros consumirão até 30% da arrecadação federal em pouco mais de uma década, um salto expressivo frente aos 18% atuais. Esses números só encontraram paralelo em períodos de crise global, como a II Guerra Mundial, a crise financeira de 2008 e a pandemia de Covid-19.
O alerta sobre a insustentabilidade fiscal, portanto, não é novo. Mas, ao longo dos anos, os investidores continuaram financiando o governo americano, mesmo após o primeiro rebaixamento de nota em 2011. Isso se explica pela força e pelo tamanho da economia dos Estados Unidos e pelo papel do dólar como moeda de reserva global. Agora, muitos investidores começam a questionar a exposição aos ativos dos Estados Unidos, e o custo de financiar a dívida sobe, pressionando toda a economia.
“Os Estados Unidos apresentam um déficit primário estrutural, que gira em torno de 6% a 10%, há algum tempo e vem crescendo de forma consistente”, diz o economista Hudson Bessa, especialista em mercado financeiro da Fipecafi. Ele explica que esse déficit está relacionado, em grande parte, ao perfil da economia americana, marcada por um consumo elevado e com alta produtividade, resultado de investimentos significativos.
Embora Trump critique o déficit comercial com outros países, é importante notar que, na balança de serviços, os Estados Unidos são amplamente superavitários. O país importa muitos bens, inclusive de capital, o que contribui para o aumento da produtividade. “Além disso, o consumo interno é elevado, como ficou evidente na crise de 2008, quando era comum encontrar americanos com múltiplos cartões de crédito”, diz Bessa. Assim, trata-se de uma economia de grande porte, que gasta muito e, por isso, apresenta um déficit que já pode ser considerado estrutural. Mesmo sendo uma potência, chega um momento em que surgem dúvidas sobre a sustentabilidade desse modelo, especialmente diante do crescimento contínuo do déficit.
“O governo Trump marcou um ponto de inflexão, funcionando como um gatilho para preocupações que estavam latentes. Sua política econômica foi marcada por decisões erráticas e mudanças abruptas de direção, o que gera incertezas no mercado”, avalia Bessa. A cada semana, o presidente assusta os investidores com uma nova decisão, frequentemente revertida em seguida, criando um ambiente de instabilidade. O plano econômico de Trump é visto por dez entre dez economistas como inflacionário, com potencial até para provocar recessão, além de colocar em risco a tradicional liderança americana nas alianças ocidentais. Esse clima de imprevisibilidade era inédito na economia dos Estados Unidos, levantando dúvidas sobre a confiabilidade do país como parceiro e sobre a viabilidade dos planos trumpistas.
Em resumo, se a erosão da confiança é estrutural, com demonstra o fato de que as agências de risco começaram a rebaixar suas notas para os Estados Unidos em anos anteriores, Trump contribuiu para acelerar o processo. Sua principal bandeira fiscal — a extensão dos cortes de impostos que ele começou em 2017, em seu primeiro mandato — tende a ampliar ainda mais o déficit. Estimativas do Yale Budget Lab apontam que tornar esses cortes permanentes custaria cerca de 5 trilhões de dólares em dez anos. O projeto de Trump, rejeitado inclusive por parte do próprio Partido Republicano, poderia somar até 3,8 trilhões de dólares à dívida na próxima década, ou mais, caso medidas temporárias fossem prorrogadas.
A estratégia de financiar cortes de impostos com tarifas de importação também é ilusória. Embora Trump defenda que a cobranças de taxas mais altas poderiam substituir parte relevante da arrecadação de impostos, projeções independentes apontam que, mesmo com aumentos agressivos, a receita gerada ficaria muito aquém do necessário para compensar as perdas de arrecadação. Além disso, tarifas tendem a ser repassadas ao consumidor americano e a reduzir a base tributária ao desestimular importações, tornando o mecanismo ineficaz para equilibrar as contas públicas.
A perda do selo “AAA” da Moody’s serve como alerta: o chamado “privilégio exorbitante” dos Estados Unidos — a capacidade de emitir dívida em dólar e atrair capital global sem grandes restrições — tem limites. O aumento dos juros dos títulos do Tesouro após o rebaixamento indica que investidores já exigem prêmios maiores para financiar a dívida americana, o que pode agravar ainda mais o quadro fiscal.