A ciência voltou ao centro das decisões, diz presidente do Santander
Em artigo, Sérgio Rial reflete sobre as transformações que mundo pós-Covid-19 poderá sofrer
Vamos ver ou não mudanças duradouras no pós-Covid-19? Possivelmente, teremos mais transformações do que imaginamos, mas não em tudo o que poderíamos abraçar. Já estamos vendo a democratização do uso da telemedicina, enquanto a educação remota se instala de modo mais permanente, com os pais aprendendo, em paralelo, como é difícil manter os jovens de hoje focados nos estudos por algumas horas. Descobrimos o prazer de estar juntos como família. Assistimos ao renascer do cozinhar como uma forma de socialização importante no elo do lar. Nosso olhar muda ao percebermos melhor as cidades que habitamos. O relógio mais lento do tempo faz tudo parecer maior, mais colorido e mais impactante. Nunca se fotografou tanto o pôr do sol como agora. É verdade que temos menos poluição, mas a resposta não está aí. Estamos simplesmente olhando. Antes não o fazíamos. O cansaço digital, provocado por dezenas de vídeos ao longo do dia, fora a avalanche de mensagens, está nos levando a valorizar mais o não digital, ou o não tecnológico. É como se estivéssemos havia dias armazenando emoções, e nos reenergizamos ao estar mais próximos de nós mesmos. É o prazer do silêncio reflexivo versus o ruído permanente da superficialidade da informação.
No campo humano, muita coisa mudará. No campo dos negócios, também. A questão da limpeza será mais relevante na interação com o consumidor. Quem sabe passaremos a ver os banheiros públicos de outra maneira? Do cuidado que temos na cabine do avião à preocupação com os rios, espero maior indignação do consumidor. É preciso reconhecer que lidamos com um mundo invisível a olho nu, microscópico, mas que deve ser tratado de forma séria. O retorno do sarampo ao Brasil é uma das novas ameaças que continuarão a aparecer para nos assombrar, fora outros patógenos que vão surgir. A importância dos nossos mananciais de água fresca, o saneamento tornando-se algo que deve ser visto não só como infraestrutura, mas como proteção à vida dos mais de 200 milhões de brasileiros, ou seja, como política de saúde pública. Do mesmo modo devemos encarar a necessidade de acelerar a construção de habitações dignas para todos, possivelmente com um projeto nacional de urbanização de comunidades pelo país. Talvez tenhamos de estabelecer linhas de financiamento de muito longo prazo para que cada família possa melhorar sua casa, com direito à propriedade e à implementação de saneamento e água por parte do Estado. O indivíduo é a semente de transformação da sociedade neste século.
Outro aprendizado até agora: a importância de um Estado eficaz. O Estado é o gestor dos diversos conflitos da sociedade. Devemos aproveitar este momento, quando estamos investindo dinheiro que não necessariamente temos, para mitigar o efeito regressivo desta crise nas camadas mais pobres. Cabe a nós, no sistema financeiro, fazer com que os recursos cheguem rapidamente aos cidadãos. Hoje, somos capazes de uma reação mais rápida, de levar liquidez a milhões de uma forma que teria sido impensável dez anos atrás. Tudo graças aos investimentos tecnológicos das últimas décadas. É essencial aproveitar esta ocasião para alcançar saltos maiores na digitalização, porque, no fim, a tecnologia liberta o consumidor, dando a ele a capacidade de decidir onde, de que forma e quando. Milhões de contratos de empréstimos estão sendo renegociados agora sem intervenção humana. Isso também era impensável alguns anos atrás. A revolução não para por aí. A discussão fintechs versus bancos desaparece, porque não é relevante. Aliás, nunca o foi. Mais concorrência é fundamental e não deve ser tratada como belicosa, e sim como complementar e necessária. O setor automotivo se beneficiou da criação da Tesla, do mesmo jeito que o sistema financeiro se beneficia dos serviços premium da Amazon.
A pandemia trouxe um grande aprendizado: a importância de um Estado eficaz
A liderança do sistema financeiro vinha mudando, e a crise deixou isso mais claro. Nós nos reunimos para enfrentar o tamanho da crise. Concorrentes sim, mas não adversários: essa se tornou a linha de pensamento de atuação. Das iniciativas de solidariedade à construção de soluções com o setor público, como a linha de financiamento às folhas de pagamento, os bancos demonstram uma vontade inabalável de ser parte da solução e do processo de cura econômica. Como disse o ex-presidente do Banco Central Ilan Goldfajn, o sistema financeiro une o futuro ao presente. Hoje já trabalhamos para esse futuro. É claro que existirão os detratores, que veem no lucro um pecado capital, esquecendo-se dos impostos e dividendos pagos e dos empregos gerados, acreditando que as instituições financeiras privadas deveriam estar completamente a serviço de políticas públicas. São críticas válidas, mas carecem de maior entendimento do princípio mais importante no sistema financeiro, que é cuidar bem de seu dinheiro, e para isso existem fronteiras que não podemos cruzar. Da mesma maneira, fica provado o valor de termos um banco de desenvolvimento como o BNDES, que, com o setor privado, pode funcionar como um motor para nos tirar da crise.
Por último, a pandemia trouxe a ciência de volta ao centro do processo decisório. Como vemos no fenômeno das lives de todas as naturezas, o valor da ciência não ofuscou o valor da prece. Vários grupos rezam por aqueles que estão internados, e nada disso conflita com o valor científico do que hoje sabemos acerca do vírus. Temos de retomar a capacidade de conviver com a ambiguidade, reduzindo a necessidade de verdades absolutas. Elas não existem em diversos campos. Temos de aprender com a polaridade de opiniões e de visões, porque essa é a riqueza de ser humano. Somos contraditórios, sim, mas não podemos esquecer que somos a espécie que pensa e resolve problemas complexos. Estamos completamente interconectados economicamente e também como espécie. A partir dessa constatação, temos de aprender a construir uma sociedade capaz de celebrar não apenas um lindo pôr do sol, mas o fato de podermos nos ajudar uns aos outros sempre. Que este vírus nos contamine de forma permanente com a solidariedade, e com mais humildade para servir.
* Sérgio Rial é presidente do banco Santander Brasil
Publicado em VEJA de 6 de maio de 2020, edição nº 2685