Galvêas e a crise maior que o Brasil
Morto aos 99 anos, ex-ministro enfrentou a crise da dívida dos anos 1980
Depois de mais de trinta anos no serviço público, de funcionário de carreira do Banco Brasil à assessor de seis ministros e presidente do Banco Central, o economista Ernane Galvêas estava em 1979 pela primeira vez satisfeito com o seu salário. Demitido no início do governo Geisel em 1974 como todos os aliados de Delfim Neto, ele havia passado para a iniciativa privada.
“Foi minha sorte grande. Ganhava o equivalente a 3 mil dólares no Banco Central. Fui montar a Aracruz, a maior companhia de papel e celulose do continente. Virei presidente da empresa, meu salário estava em torno de 15 mil dólares, estávamos exportando 500 milhões de dólares ao ano. Daí me ligaram do Palácio do Planalto”, me contou Galvêas, em tom de ironia, em julho de 2017, aos 94 anos, na sua sala na Confederação Nacional do Comércio (CNC), defronte o aeroporto Santos Dumont, no Rio de Janeiro. Do outro lado da linha estava Delfim Netto o chamando para voltar ao governo. Ele quis recusar até saber que Delfim havia conversado antes com os sócios da Aracruz. “Era uma missão. Só que ao contrário da primeira vez (no chamado Milagre Econômico dos governos Costa e Silva e Médici), desta vez era uma missão impossível”. Galvêas morreu nesta quinta-feira, 23, aos 99 anos, no Rio.
Entrevistei Galvêas duas vezes para o meu livro “O Pior Emprego do Mundo”, sobre os ministros da Fazenda dos últimos 50 anos. Avisado que eu o procuraria por Delfim Netto e Francisco Dornelles, Galvêas me esperou na porta do elevador e com agilidade incomum para a idade, me mostrou as instalações da CNC, seus relatórios de conjuntura e sua sala abarrotada de papeis, recortes e livros. “Você tem 5 minutos para me convencer a dar essa entrevista”, me falou, meio de brincadeira, meio sério. Falamos por mais de duas horas e ele foi um revisor atento ao longo de todo o processo do livro.
Em janeiro de 1980, Galvêas assumiu o Ministério da Fazenda, tendo o amigo Delfim como chefe da Secretaria de Planejamento. Os dois formavam uma dupla afinada e sabiam que desde o choque dos juros americanos de 1979, o mundo estava em risco e o Brasil, a beira do abismo. Com os juros americanos em 21% ao anos, os títulos da dívida externa de todo mundo dispararam e os países subdesenvolvidos caiam em dominó. A Polônia quebrou em 1981. A Argentina, humilhada pela derrota na Guerra das Malvinas, veio logo depois. Em agosto de 1982, o México declarou moratória. O Fundo Monetário Internacional convocou uma reunião extraordinária para formar um fundo que começaria com 25 bilhões de dólares, mas que poderia chegar a 100 bilhões de dólares para impedir a crise sistêmica. Representante oficial do Brasil, Ernane Galvêas estranhou o tom da reunião:
“Cheguei para a reunião do FMI, em Toronto (Canadá), só que nada avançava. Bancos, governo americano, instituições de crédito, todos estavam tensos, mas todos fingiam que a crise era passageira. Daí o Edmond Safra [banqueiro brasileiro fundador do internacional Banco Safra] me chamou do lado e foi direto: “Esqueça. Ninguém vai ajudar o Brasil. A prioridade é salvar os bancos americanos que estão lotados de créditos podres. Já foi o México. O Brasil é a bola da vez”. Fui a Nova York, ninguém me recebeu. Vi que o Edmond tinha razão. Voltei para o Brasil, sentei com o Delfim e falei: “Acabou. Essa crise é maior que a gente”.
Galvêas e Delfim foram os gerentes de uma crise que derrubou o Brasil para a maior recessão conhecida até então e da semente da hiperinflação que massacrou uma geração. Mas há um lado menos conhecido. Galvêas foi fundamental na transição do regime militar para a democracia. Ele e Dornelles, sobrinho de Tancredo Neves e então chefe da Receita Federal, patrocinaram os contatos e as conversas secretas entre o então candidato Tancredo e o presidente João Figueiredo. Galvêas foi o mensageiro de Tancredo junto ao Fundo Monetário Internacional e à secretaria do Tesouro dos EUA de que o candidato do PMDB cumpriria os acordos de pagamento da dívida externa.
Identificado com o regime militar, Galvêas considerava que sua única experiência política havia sido na formação do programa econômico do candidato a primeiro-ministro San Tiago Dantas a primeiro-ministro na breve experiência parlamentarista do governo João Goulart. “Fizemos um bom programa, mas quem acabou se tornando primeiro-ministro foi o Francisco Brochado. O San Tiago, que era um cavaleiro, entregou o nosso programa à turma do Brochado. Eles usaram tudo: só que onde nós escrevemos “não”, eles colocaram ‘sim’ e onde escrevemos ‘ideia inviável’ eles puseram ‘viável’. Daí, eu voltei a ser um técnico”.