Precatórios: especialista critica decisão da AGU de revogar portaria
Integrante da OAB, Eduardo Gouvêa diz que ato do governo sobre portaria das concessões gera insegurança jurídica e pode travar investimentos privados
O governo federal entrou novamente num embate sobre a questão de aceitar ou não precatórios no pagamento de concessões. No último dia 15, a Advocacia-Geral da União (AGU) revogou a portaria que regulamentava o uso desses papéis em negociações com órgãos e entidades públicas federais, com o argumento de que é preciso reforçar a segurança jurídica das operações. A promessa é de que uma nova regra seja estabelecida num prazo de 120 dias.
O ato caiu como uma bomba para algumas empresas, caso da espanhola Aena, que no ano passado venceu leilão por um bloco de 11 aeroportos em quatro Estados, incluindo o de Congonhas, por R$ 2,45 bilhões. Parte desse pagamento seria por meio de precatórios. Na semana passada, a Comissão de Assuntos Econômicos (CAE) do Senado decidiu chamar a Advocacia-Geral da União (AGU) para ter explicações sobre o imbróglio.
Para entender: precatório é uma ordem judicial de pagamento. O que significa que, num determinado momento, o governo deixou de pagar uma dívida (muitas vezes precatórios alimentares, referentes a salários etc.) e perdeu na Justiça. É transitado em julgado. Em 2021, o Congresso aprovou a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) do Calote, que deu origem a duas emendas constitucionais, as de n.º 113 e 114 – que foram regulamentadas no fim do ano passado. Desde então, estava previsto o uso de precatórios no pagamento de outorgas, concessões, privatizações, leilões de imóveis públicos, entre outros.
A coluna ouviu o presidente da Comissão de Precatórios da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB/RJ), Eduardo Gouvêa, sobre o tema. Especialista em questões previdenciárias e cíveis, ele foi taxativo ao dizer que o ato do governo representa uma “esquizofrenia” e pode prejudicar a economia do País. “É uma esquizofrenia. Você faz uma regulamentação e, logo depois, revoga a mesma regulamentação, que não tem impacto prático do ponto de vista legal. O resultado são investimentos postergados e a chance de atender melhor o cliente, aumentar a base de clientes num processo de concessão… Ninguém faz essa conta.” Acompanhe a conversa:
O governo está novamente num embate sobre a questão de aceitar precatórios como pagamento de concessões. Por quê?
A princípio, eu acho que está havendo uma visão limitada de quem está cuidando do tema no governo. Primeiro, porque a regra de utilização dos precatórios é constitucional e auto-aplicável, prevendo o uso para pagamento de outorgas. Está escrito com todas as letras na Constituição que é auto-aplicável, então, retirar a portaria (da AGU) que regulamenta isso não inibe as partes interessadas de proporem a utilização. O governo não está se dando conta de que é uma questão de fluxo de caixa: ao deixar de pagar um precatório, sobra caixa para ele utilizar em outra coisa. E mais: se uma empresa compra um precatório com deságio e o utiliza para pagamento, vai haver uma operação de ganho de capital e, provavelmente, essa empresa vai estar sujeito à tributação na faixa de 34% do lucro. Ou seja, uma receita extraordinária para o governo.
Quem ganha e quem perde com essa situação?
Sobre essas propostas de utilização do precatório, só quem “perde” é o credor porque, dependendo do prazo que esse precatório levaria para ser pago, vale a pena antecipar a receita, mesmo que aceitando deságio. Todos os demais envolvidos ganham: o governo ganha e a empresa ganha. O próprio credor pode se beneficiar adiantando o recebimento dos recursos no mercado, vendendo o seu precatório com algum deságio para realizar um projeto, custeando uma faculdade do filho, fazendo uma viagem, comprando uma nova casa. Ou seja, na prática, tende a ser um ganho para todos, e o maior beneficiário é o próprio governo, porque liquida um passivo. Mas, infelizmente, parece que está faltando se debruçarem, de fato, com profundidade, sobre o tema.
Como é em outros países-chave para a nossa economia?
Não temos um instrumento semelhante em qualquer outro lugar do planeta. A verdade é que é uma excrescência existir o precatório na Constituição federal do Brasil, porque ela prevê o princípio da isonomia entre as partes, inclusive entre o poder público e o particular. E o poder público tem uma situação totalmente diferenciada para cobrar suas dívidas, em detrimento do particular, que tem de fazer um processo judicial e, depois, entrar em uma fila de precatório, sem certeza se receberá e quando.
Em 2021, foi aprovada a PEC do Calote que deu origem a duas emendas constitucionais, a 113 e 114. Desde então, está previsto o uso desses ativos no pagamento de outorgas, concessões, privatizações, leilões de imóveis públicos etc. De lá para cá, a situação melhorou e para quem? Por quê?
A regulamentação dessas emendas saiu recentemente, no fim do ano passado, permitindo o uso do precatório para diversos fins, incluindo pagamento de outorgas e transação tributária, por exemplo. A compensação fiscal e a autorização para pagamento com outorgas e transações tributárias são soluções que ajudam a movimentar a economia, a girar investimento, empregos, a melhorar o serviço público, liberando o Judiciário para cuidar realmente do que é importante, em vez de ficar sendo usado para empurrar dívidas de empresas, pessoas e governos para frente. A verdade é que o Judiciário virou um grande balcão de rolagem de dívidas. Uma solução óbvia desde sempre é esse grande encontro de contas que começou a ser feito agora, criando um programa eficiente que permita liberar processos que estão atravancando o Judiciário há décadas. A gente tem exemplos de processos que estão há 50 anos no Judiciário que podem desaparecer de um dia para o outro se essas soluções forem bem aplicadas. Empresas que estão devendo dinheiro, inclusive algumas em recuperação judicial, conseguem quitar seus passivos com precatórios e voltar a funcionar, pagar impostos, gerar empregos, saindo da dívida ativa, fazendo compensação fiscal e outros usos… E os governos ganham com mais atividade econômica, abatendo o que tem a receber de dívida das empresas, vendendo imóveis públicos que não lhe interessam mais. Então, é um “ganha-ganha” absoluto.
A espanhola Aena, por exemplo, está aguardando que se cumpra a Constituição para que possa usar precatórios no pagamento da concessão do Aeroporto de Congonhas (SP), no leilão do ano passado. Qual o impacto dessa “espera” em setores estratégicos como esse de aeroportos?
O que se vê é que esse desrespeito à Constituição atrasa investimentos, gera insegurança jurídica e passa a imagem de que o País não é sério. Você cria uma regra, coloca na Constituição e, depois, vem o governo e revoga uma portaria feita por ele mesmo, porque não importa quem está na Presidência da República (em referência à portaria 10.826/22, da Procuradoria Geral da Fazenda Nacional, e, mais tarde, à portaria da AGU 073, de dezembro de 2022, revogada agora em março). É uma esquizofrenia. Você faz uma regulamentação e, logo depois, revoga a mesma regulamentação, que não tem impacto prático do ponto de vista legal. O resultado são investimentos postergados e a chance de atender melhor o cliente, aumentar a base de clientes num processo de concessão… Ninguém faz essa conta.
O precatório é uma ordem judicial de pagamento. Num determinado momento, o governo deixou de pagar uma dívida e perdeu na Justiça. Em 2021, o que se viu com a aprovação da PEC foi o “calote do calote”… e agora? Qual a sua opinião sobre essa situação e o impacto no setor privado?
Eu entendo que o maior impacto no setor privado é essa insegurança jurídica. É o investidor, especialmente o estrangeiro, que não conhece bem aqui, quando ouve falar de precatório, não entende. Porque esse instrumento anacrônico não existe em lugar nenhum, você percebe que gera aquela sensação de: “Se eu tiver um litígio com o governo, vou ficar a ver navios por décadas, sem receber meu dinheiro”. E, se o governo é um mau pagador, qualquer operação que ele faz fica mais cara, e quem paga é a sociedade como um todo, a mais prejudicada, em última instância.
A Advocacia-Geral da União (AGU) criou um grupo de trabalho para propor novas regras sobre o uso desse mecanismo de pagamento. O sr. acredita que há novos caminhos? Ou pontos a serem esclarecidos? Quais?
A AGU criou esse grupo de trabalho, e é claro que existem outros caminhos: com certeza, existem caminhos melhores do que os que estavam na regulamentação anterior. É possível criar soluções mais interessantes e mais inteligentes com certeza, mas sempre com o objetivo de fomentar a possibilidade de cada vez mais essas operações acontecerem, diminuir o custo de administração do Judiciário, diminuir o custo da demora dos processos judiciais e dar efetiva utilidade a esses ativos (precatórios) que estão emperrados no Judiciário. Ou seja, pôr a economia para funcionar a partir dessas soluções que vão de uso do precatório para pagamentos de impostos, outorgas, compra de imóveis públicos e outros. Agora, importante frisar: a Constituição diz, muito claramente, que a questão da utilização dos precatórios para todos esses fins é uma faculdade do credor do precatório, não do devedor. Quem pode apresentar a proposta de utilização é o credor. O devedor, que são os governos, não podem criar restrições.
No entanto, a AGU revogou a norma sobre o uso dos precatórios em pagamentos a órgãos e entidades federais. E terá de se explicar ao Senado. Qual o impacto na economia do País, olhando em especial empresas públicas e até privadas?
É preciso parar de olhar o precatório como um problema e entender que ele é uma grande oportunidade para o governo transformar todo esse estoque de débitos em injeção de recursos na economia. São bilhões, talvez trilhões, de reais se você considerar também os direitos creditórios, como são os chamados pré-precatórios, que ainda não tiveram a sentença condenatória final para o governo pagar. Dessa forma, é possível beneficiar o credor do precatório, as empresas e os próprios governos, que vão arrecadar mais. A empresa também conseguirá investir, pagar mais imposto, dar mais lucro, gerar mais emprego. E, hoje, o dinheiro fica enterrado no Judiciário. A ideia é essa: um grande encontro de contas nacional que permita o saneamento das finanças públicas do poder público, das pessoas físicas e das empresas.