
Duas “novidades” parecem surpreender parte da inteligência nacional: a emergência ostensiva de eleitores de direita e a radicalização da expressão política. Mas o que parece novo é antigo e recorrente. A polarização sempre esteve entre nós — apenas aguardava momento oportuno para libertar os gênios que estavam presos nas garrafas da moderação.
No livro A Cabeça do Brasileiro (2007), Alberto Carlos Almeida já apontava traços autoritários, conservadores e pouco democráticos na população. Ele mostrava que muitos brasileiros valorizavam a ordem mais do que a liberdade e a disciplina mais do que a tolerância, além de defenderem punições rigorosas contra o crime e rejeitarem políticas redistributivas por considerá-las injustas ou ineficientes. É o que Almeida classifica como conservadorismo popular difuso — não uma ideologia estruturada.
Ainda assim, parte da elite intelectual resiste a reconhecer essa manifestação legítima do espectro político. A direita é tratada como aberração ou patologia autoritária, enquanto atos extremos da esquerda (invasões de terras, ocupações de prédios públicos e depredações) são, em muitos círculos, romantizados como lutas por justiça social.
O autoritarismo da direita é, com razão, condenado. Mas o da esquerda é tolerado, relativizado ou compreendido como desobediência civil legítima. O argumento se ancora na ideia de reparação histórica, como se atos de transgressão fossem resposta moral aos desequilíbrios do passado. Assim, ocupações são justificadas como instrumentos de justiça para populações historicamente excluídas.
“O autoritarismo da direita é, com razão, condenado. Mas o da esquerda é relativizado e tolerado”
Há aí uma distinção importante entre legalidade e legitimidade. Muitos apoiadores da esquerda e da direita não hesitam em relativizar a lei quando percebem que há uma “legitimidade superior” em jogo. A defesa de líderes acusados ou condenados, como Lula, baseia-se na ideia de que a perseguição judicial reflete a proteção de privilégios e não a aplicação da lei. A lógica se aplica ao apoio ao MST, mesmo quando suas ações transgridem normas legais. Ou ainda quando se relativizam as tentativas de atentados e conspirações por parte de aliados do ex-presidente Bolsonaro. Os argumentos são que o sistema protege ricos, criminaliza pobres e persegue defensores da liberdade. Logo, atacar as instituições seria ilegal, mas não seria ilegítimo, sendo ainda moralmente compreensível.
Esse raciocínio reaparece, com toda a sua ambiguidade, no debate sobre a anistia ao 8 de Janeiro. O governo se posiciona firmemente contra o perdão aos vândalos de extrema direita — e está certo em repudiar o ataque às instituições. Mas concede asilo político à ex-primeira-dama do Peru Nadine Heredia, condenada por corrupção. Ela é esposa de Ollanta Humala, um ex-presidente bolivariano e fracassado seguidor de Hugo Chávez. A seletividade ideológica grita.
Essa assimetria de critérios corrói a credibilidade institucional e amplia o fosso entre os Brasis. Soltamos dois gênios da garrafa: um à direita, outro à esquerda. Ambos rebaixam o debate, alimentam ressentimentos e reforçam radicalismos. Enquanto não formos capazes de reconhecer que autoritarismo é um vício compartilhado e não monopólio de um lado, seguiremos reféns da polarização que paralisa, distorce e fragiliza a democracia. E os gênios seguirão soltos, fazendo do país um campo de batalhas ideológicas em vez de projeto comum de nação.
Publicado em VEJA de 25 de abril de 2025, edição nº 2941