Precatórios: é hora de resgatar a credibilidade do governo
Diante da dificuldade de usos alternativos de precatórios, apesar de previstos em lei, a saída é o STF decretar a inconstitucionalidade das PECs do calote
Ano passado, utilizei este espaço para denunciar, mais de uma vez, o esbulho que o governo Jair Bolsonaro intentava perpetrar contra os detentores de precatórios, que são direitos líquidos e certos decorrentes de decisões judiciais. De nada adiantaram os alertas feitos por este escriba, por vários outros analistas e por grande parte da imprensa.
De fato, o Congresso fez ouvido de moucos. Aprovou as emendas constitucionais 113 e 114, conhecidas como PEC do Calote, um grande erro de um governo que se dizia liberal. Fixou-se um limite para o pagamento dessas obrigações e se adiou o restante para resgate até 2026, criando uma bola de neve que pode alcançar mais de 350 bilhões de reais.
Para defender-se da acusação de calote, o governo Bolsonaro liderou a inclusão do parágrafo 11 no artigo 100 da Constituição, visando precisamente a evitar tal bola de neve. Por esse dispositivo, os precatórios podem ser oferecidos em pagamento de débitos tributários, de outorga de serviços públicos e outros. Para o então ministro da Economia, Paulo Guedes, era uma oportunidade de participação em concessões e privatizações.
Sucede que pau que nasce torno, não tem jeito, morre torto. O ministro de Portos e Aeroportos, Márcio França, anunciou que a norma, prevista em lei, não seria aplicada em outorgas nos aeroportos. Negócios que estavam sendo entabulados foram suspensos. Insegurança jurídica e incertezas regulatórias passaram a dominar o ambiente.
Para piorar, a Advocacia-Geral da União (AGU) revogou a regra que permitia o uso de precatórios no pagamento de outorgas em leilões de infraestrutura e na quitação de dívidas federais. A AGU disse que o objetivo da revisão seria conferir mais segurança jurídica ao procedimento, mas não conseguiu restabelecer a confiança no processo. O pano de fundo é o de um governo que parece desconfiar da iniciativa privada.
Uma solução, que apoiei publicamente, seria excluir os precatórios do teto de gastos. A própria Secretaria do Tesouro Nacional aderiu à ideia em novembro de 2022, preocupada com os efeitos do não-cumprimento tempestivo das obrigações do governo. Defendeu, então, que “a totalidade das despesas com sentenças judiciais e precatórios deva ser excetuada do limite de despesa”. Acontece que a abolição do “teto de gastos” tornou inviável essa maneira de conferir liquidez aos precatórios não honrados pelo governo.
Resta o Judiciário para resgatar a credibilidade do Tesouro, evitando que a permanência do calote ou a eventual morte do uso alternativo dos precatórios possa acarretar novas incertezas aos detentores desses direitos. Seria também uma forma de obviar o risco de tal situação vir a contaminar a própria confiança nos títulos emitidos pelo governo.
Já se encontram sob a apreciação do STF ações de inconstitucionalidade das emendas 113 e 114, as quais representaram um ataque a direitos de propriedade consagrados na Constituição. Em casos semelhantes do passado, o STF decidiu pela derrogação da norma. Faria bem ao país se repetisse a dose.