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De olho nos tributos

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Dados e análises sobre os impostos e seu efeito na economia
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O split payment da reforma tributária e o fluxo de caixa

Nem Berkeley, nem dois milênios de filosofia, explicam o mundo

Por Adolpho Bergamini
23 out 2024, 08h20

Enquanto as ciências biológicas estudam a vida, a filosofia se ocupa da existência. As conclusões da ciência estão sempre sujeitas a mudanças, porque novas tecnologias e métodos de pesquisas podem aprimorar o olhar do cientista sobre átomos, moléculas e os elementos da natureza. Mas as angústias humanas são as mesmas desde tempo imemoriais. Pensadores antigos ainda oferecem respostas aos dias de hoje e Aristóteles, por exemplo, nascido há quase 2.500 anos, ainda é o “Everest” da filosofia.

Se você já fez indagações sobre o mundo à sua volta, se já perguntou se ele é realmente do modo como se apresenta aos seus olhos, você merece os parabéns, há um filósofo inquieto aí dentro. Indagações como essas estão no campo da chamada “teoria do conhecimento”. Todo filósofo tem a sua. Para o texto desta semana, trago a de George Berkeley. Segundo ele, a percepção é tudo. É na percepção que está o conhecimento dos objetos, das ideias, do mundo e do senso crítico a seu respeito.

A essa altura você deve estar franzindo a testa e pensando que já ouviu falar a respeito dessa teoria, que viu em algum lugar que existem dois mundos: o real e o percebido. Mas não é isso o que Berkeley diz. Para ele só existe o mundo percebido, nenhum outro. O mundo que conhecemos, e a avaliação que fazemos dele, pertence à nossa percepção e ele só existe em função das nossas impressões e dos nossos sentidos. E como cada ser humano tem suas próprias percepções, existem bilhões de mundos diferentes, cada um com o seu.

Tive intensas reflexões sobre George Berkeley ao finalizar um texto que será publicado nas próximas semanas em uma obra coletiva. Escrevi sobre o split payment, que no contexto da reforma tributária será o novo meio de quitação dos tributos. Mais do que isso, é o “coração da reforma tributária”, conforme declaração dada por Tiago do Vale, coordenador de Assuntos Tributários do Ministério da Fazenda, à Comissão de Assuntos Econômicos do Senado, onde atualmente tramita o Projeto de Lei Complementar número 68/2024.

Explico o que é. Hoje, o contribuinte é responsável pela apuração de seus tributos. Ao longo do mês, contrai obrigações tributárias quando realiza suas vendas e se arvora no direito de tomar créditos fiscais sobre as aquisições de bens e serviços utilizados em sua operação. Para proteger a integridade do regime não cumulativo e evitar o efeito cascata, esses créditos podem ser apropriados pelo contribuinte mesmo que seu fornecedor caia em inadimplência junto ao fisco. Ao final do período, haverá um encontro de contas: se o resultado for saldo de débitos, o tributo será recolhido; do contrário, o contribuinte poderá solicitar ressarcimentos.

A atual metodologia de apuração está em sintonia com os padrões de qualquer atividade empresarial. Como toda e qualquer despesa, os tributos têm um dia certo de vencimento, o que permite à empresa organizar o seu fluxo de caixa, programar pagamentos a fornecedores, funcionários e planejar investimentos.

Todavia, o PLP n. 68/2024 altera esse desenho radicalmente. Conforme as regras propostas, apenas as operações que tiveram seus tributos efetivamente recolhidos é que poderão gerar créditos fiscais aos adquirentes de bens e serviços. Para garantir o adimplemento, foi criado o split payment. Em suma, no novo sistema haverá informações eletrônicas no documento fiscal que permitirão às instituições financeiras dividir (split) os pagamentos (payment) realizados pelo adquirente: o valor relativo ao negócio irá para o fornecedor e o montante do IBS e da CBS, ao Comitê Gestor e à Receita Federal, respectivamente.

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Mas o IBS e a CBS são regidos pela não cumulatividade, logo, os créditos do contribuinte hão de ser considerados na apuração fiscal. De olho nisso, o PLP n. 68/2024 obriga a operadora de pagamento a consultar os sistemas do Comitê Gestor e da Receita Federal para saber se o contribuinte tem, naquele momento, créditos a serem descontados. Se as comunicações eletrônicas não funcionarem, os tributos deverão ser integralmente pagos, sem os descontos, mas nesses casos o Comitê Gestor e da Receita Federal prometem ao contribuinte que não há motivo para preocupações, porque ele será ressarcido em até três dias úteis.

Aqui começo a trazer Berkeley para o contexto. Do grupo de pessoas que acompanha a reforma tributária, há quem aplauda o split payment. Sustentam que o Brasil dará fim a evasões fiscais e terá um dos mais modernos instrumentos de arrecadação do mundo. Mas há quem veja as mudanças com desconfiança. Eu estou neste segundo grupo, e explico a razão.

As regras em torno do split payment não consideram que as aquisições de bens e serviços podem não ser uniformes no curso do mês. Se determinadas vendas forem realizadas em dias ou semanas que não contaram com aquisições, o contribuinte estará na inglória situação de ter bancado a carga tributária de suas operações com parcela expressiva de seu caixa, mas chegar ao final do mês com créditos fiscais sobrando em sua apuração.

Caso os negócios do contribuinte sigam essa dinâmica, ele sempre terá saldos credores. Nesses casos, pode pedir ressarcimentos do IBS e da CBS, mas terá que aguardar até 180 dias pela resposta. Se não houver decisão até lá, o PLP n. 68/2024 promete que haverá devolução automática dos valores em 15 dias.

Já estamos falando de quebras no fluxo de caixa de quase 200 dias. É aqui que residem as maiores desconfianças. Façamos um exercício, vamos olhar ao presente para entendermos o que pode ser do futuro.

O Brasil tem pouco mais de 20 milhões de empresas. Segundo os regimes tributários atuais, alguns segmentos podem pedir ressarcimento de IPI, PIS e Cofins em certas condições. Por exemplo, as devoluções de PIS e Cofins são dadas a empresas da cadeia do agronegócio, medicamentos, autopeças e outros, e devem necessariamente apurar o seu imposto de renda pelo lucro real. Essas, segundo dados oficiais, constituem cerca de 2% do total de empresas do país. Considerando esses filtros, os contribuintes que movimentam a Receita Federal com pedidos de ressarcimento podem representar menos de 1% das pessoas jurídicas.

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Para esse grupo, a Receita Federal deveria decidir os pedidos, no máximo, em 360 dias. Mas esse tempo não é obedecido. Para escrever o texto que mencionei no início, fiz pesquisa nos seis Tribunais Regionais Federais do país a respeito da obediência do aludido prazo para decisão. Ao todo, localizei 16.309 decisões dadas contra a Receita Federal, o que quer dizer que 16.309 contribuintes foram ao Judiciário para pedir socorro e terem seu pleito ao menos analisado pelo fisco federal.

Esses números correspondem a cerca de 10% dos contribuintes que podem pedir restituição de tributos, o que é significativo. Mas é uma fração ínfima em relação às 20 milhões de empresas do país. Algumas reflexões vêm à mente. Se, para analisar pedidos de reduzido grupo de empresas, a Receita Federal excede o seu tempo de 360 dias, por que acreditar que o fará em 180 dias, ou até mesmo três dias, para um grupo que abrangerá a totalidade das empresas do país? O que mudou? E como garantir que o ressarcimento automático será mesmo realizado nos prometidos 15 dias, caso os prazos anteriores não sejam cumpridos? Como garantir que a Receita Federal cumprirá um prazo decorrente do não cumprimento de outros prazos?

Trago Berkeley novamente. Segundo as percepções que construíram o meu mundo, as administrações tributárias não são conhecidas exatamente pelo respeito ao direito dos contribuintes. Leis inconstitucionais, cobranças ilegais, revogação do uso de créditos para abatimento de tributos, revogação de benefícios fiscais antes de seu tempo e mudanças abruptas nas regras são alguns dos exemplos.

Somemos a isso outros dados importantes, como o inegável aumento do peso fiscal que virá para a esmagadora maioria dos contribuintes com a reforma tributária, sem contar possíveis outros ônus, como o imposto de renda sobre dividendos e outras medidas. Mas as administrações não baixam a guarda e continuam investindo duramente. Não bastam leis inconstitucionais, cobranças indevidas e aumento da carga, porque agora o fisco apresenta ao contribuinte o meio mais eficiente para desordenar por completo o seu fluxo de caixa. Muitos dirão que é uma medida para combater a sonegação fiscal, mas o argumento não se justifica porque os sonegadores estão longe de ser a maioria entre os contribuintes. Muitos estão pagando muito caro por causa de poucos.

Berkeley tinha razão. Realmente, o único mundo que existe é o de nossas percepções. O mundo das minhas percepções não pode ser o mesmo mundo daqueles que fazem coro ao split payment e às demais mudanças que estamos assistindo. Se nem os 2.500 anos de filosofia conseguem dar conforto a essas angústias, talvez a saída seja pegar carona nesses novos foguetes e mudar mesmo de mundo, literalmente.

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