Na guerra da reforma, a batalha do ITCMD
Os conceitos de Clausewitz e o novo entendimento do imposto sobre transmissão de patrimônio
Carl von Clausewitz é uma daquelas personalidades históricas que serão sempre lembradas por sua genialidade, léguas à frente de seu tempo. Nascido ainda no século 18, ingressou no exército da antiga Prússia determinado a vencer Napoleão. No entanto, Clausewitz também era amante da filosofia, estudante fervoroso de Maquiavel e Kant, e a agressividade das guerras napoleônicas o levou a pensar sobre as estratégias que deveriam conduzir as guerras em si mesmas. O resultado é o afamado Da Guerra, que é tão primoroso quanto complexo e, confesso, me causou certa confusão mental ao final dos longos doze meses que levei para completar a leitura de suas quase mil páginas.
Para o presente ensaio, fiquemos no básico. Para Clausewitz, a guerra é um duelo em uma escala mais vasta, em que cada lado age para submeter a outra à sua vontade. O objetivo é abater o adversário e torná-lo incapaz de reagir. É claro que o contexto dessas ideias é a guerra, literalmente falando, inclusive a sua doutrina foi empregada na guerra franco-prussiana e, depois, pelas forças armadas da recém-unificada Alemanha durante a Primeira Guerra Mundial. É ao longo desta obra que Clausewitz vai cunhar uma frase que ficou famosa e quase sempre é dita por comentaristas políticos antes de abordarem conflitos armados mundo a fora: “a guerra é a continuação da política por outros meios”.
No Brasil, há (e sempre existiram) vários duelos travados entre administrações tributárias, que trabalham para o crescimento da arrecadação a todo custo, e contribuintes por todo o país que se defendem e lançam mão de medidas para reduzir os encargos fiscais aos quais estão sujeitos. Estamos longe da diplomacia e da política. Mas esses duelos ganharam escala nacional com a reforma tributária, que foi capaz de unir a Receita Federal e os fiscos estaduais e municipais, com o objetivo certo e declarado de aumentar a carga tributária.
Agora, essa guerra ganha um novo front. No último dia 13, a Câmara dos Deputados aprovou o Projeto de Lei Complementar (PLP) n. 108/2024, que regulamenta pontos da reforma tributária que ainda não haviam sido tratados no PLP n. 68/2024. Mas parte do pacote aprovado não diz respeito à reforma, propriamente, mas sim a um tema espinhoso relacionado ao ITCMD, o imposto que grava doações e transmissões de patrimônio causa mortis. Se a proposta passar, benefícios desproporcionais conferidos aos sócios por suas empresas poderão ser legalmente considerados como doações, caso a desproporção não seja justificada.
O tema é de extrema relevância. Segundo dados oficiais, o país conta com mais de 22 milhões de empresas. Nesse universo, é comum que os sócios das corporações tenham diferentes perfis, qualificações, formações, rede de contatos e condições financeiras. Por exemplo, um dos sócios pode ter o capital para financiar a empreitada, mas não é dotado de conhecimentos técnicos para entregar os melhores produtos ou serviços aos clientes; o outro pode não ter os recursos para colocar a empresa de pé, mas é a pessoa certa com o know how que vai desenvolver as atividades e prezar pela qualidade.
Essas peculiaridades induzem a ganhos desproporcionais. A distribuição de lucros pode não ser de acordo com as ações ou quotas que cada sócio tem, mas sim em razão do volume de negócios que cada um gera. O mesmo cálculo desproporcional ocorre em negócios que reorganizam grupos empresariais, que podem ter como mecanismos aumento ou redução do capital com preços diferenciados, ou uma cisão desproporcional.
Enfim, o ponto, aqui, não é explorar os detalhes dessas operações, não é o perfil desta coluna. Mas é importante deixar claro que procedimentos como esses são comuns, acontecem diuturnamente e a nova regra do ITCMD acendeu o sinal amarelo para parcela significativa dos empresários do país.
Para explicar o que está por trás dos receios, peço licença aos leitores para mudar um pouco a linguagem e torná-la um pouco mais técnica. Mas prometo não abusar.
De acordo com o Código Tributário Nacional, as leis tributárias não podem alterar conceitos e conteúdo de direito privado para definir “competências tributárias” – esse é o nome técnico que a Constituição Federal utiliza para se referir ao poder que a União, estados e municípios têm para instituir e cobrar seus tributos. Já nas primeiras aulas de direito tributário de qualquer curso de graduação, o aluno aprende que o direito tributário é um “direito de superposição”. Quer dizer que as normas fiscais “olham” para os negócios praticados no dia a dia e, sobre eles, lançam o ônus tributário. Por exemplo, o STF já decidiu que o ICMS apenas será devido em operações de compra e venda de natureza mercantil, não sendo permitido que as leis tributárias digam que, para fins tributários, outros negócios possam ser alcançados pelo imposto. Ainda no campo dos exemplos, o Judiciário também já decidiu, inúmeras vezes, que contribuições previdenciárias sobre a folha de salários não podem incidir sobre as chamadas “verbas indenizatórias”, porque não constituem remuneração pelo trabalho – como o nome diz, são indenizatórias.
Sobre a “doação”, o Código Civil a define como sendo a transferência, por liberalidade, de bens, direitos ou vantagens de uma pessoa a outra. A palavra-chave é “liberalidade”. Significa que a “doação” é via de mão única, um contrato unilateral que não pode estar vinculado a nenhuma condição, ação, atividade, contribuição, retribuição, serviço ou trabalho por parte da pessoa que recebe a doação. Seguindo nossa linha de raciocínio, o ITCMD somente poderá alcançar transmissões de bens e direitos que não estejam condicionadas a contrapartidas.
Mas esse não é o caso das distribuições desproporcionais de lucros, por exemplo. Há tempos que o Código Civil a permite e a própria Receita Federal, também há tempos, concorda que o dividendo recebido pelo sócio não perde sua natureza – de dividendo – se não for proporcional à sua participação societária. Afinal, mesmos os dividendos desproporcionais são pagos como retribuição à contribuição que o sócio deu para o desenvolvimento dos propósitos negociais da entidade. Também as cisões desproporcionais podem acontecer para remunerar um sócio retirante pela contribuição intelectual que deu à companhia. Não há nenhuma “liberalidade” nessa relação.
Sabemos, todavia, que alguns contribuintes mascaram seus negócios jurídicos com as formalidades de outros para, assim, escapar da tributação ou reduzi-la.
Tive a oportunidade de acompanhar de perto um desses casos, que envolveu justamente distribuições desproporcionais de lucros para evitar o ITCMD. O caso passou pela Câmara Julgadora da qual eu fazia parte no Tribunal de Impostos e Taxas de São Paulo. De acordo com o que foi levantado pela fiscalização, os dois sócios principais da empresa, que detinham 98% do capital, eram os pais dos sócios minoritários, dois irmãos que detinham 1% cada um. Mas, na apuração dos resultados, cada filho recebeu 45% dos lucros e os pais, 10%. As cifras eram milionárias. O fisco paulista pediu esclarecimento dos motivos que levaram sócios minoritários, com 2% da empresa, a receber 90% dos lucros. As explicações não vieram, ficou claro que os recursos haviam sido transferidos aos filhos com liberalidade, porque nenhum deles atuava na empresa, e que a remessa dos valores tomou a roupagem de dividendos para livrar a movimentação do ITCMD e do imposto de renda. A acusação fiscal foi mantida e a cobrança do imposto segue seu curso.
É claro que fraudes devem ser combatidas, mas também não pode ser ignorado que pipocam, no país, cada vez mais casos em que o ITCMD é cobrado mesmo nas situações em que as distribuições desproporcionais são perfeitamente compreensíveis e justificáveis. Já era tempo, portanto, de o tema ser incorporado à legislação, porque a ausência de regras claras, em que permeiam interpretações sem muitas balizas, é terreno fértil para a insegurança jurídica.
Por isso, o espírito da proposta contida no PLP n. 108/2024 vem em boa hora, mas seu texto peca ao não trazer justamente definições claras em torno das hipóteses em que o imposto será devido. Conforme a redação aprovada, haverá o encargo sobre doação em razão de benefícios desproporcionais para o sócio que tenham sido dados por “liberalidade e sem justificativa negocial passível de comprovação”.
Há problemas nessa redação. Por exemplo, como fazer a comprovação da contribuição intelectual de dado sócio à sociedade? Como medir algo que, por natureza, é imaterial e não quantificável? O texto aprovado não dá uma efetiva resposta a incertezas como essas, que rondam contribuintes e, por que não dizer, também órgãos fazendários.
É verdade que a criatividade humana é ilimitada. De tempos em tempos, o meio jurídico toma conhecimento de novos meios inventados para reduzir impostos, no mais das vezes com base na adoção de formas que não correspondem à verdadeira natureza do negócio. Não pareceria razoável, portanto, construir normas fechadas, que não acompanhariam as invencionices no mesmo ritmo. Mas uma redação tão aberta também não é a solução.
Se o texto vier a ser sancionado da forma como passou na Câmara dos Deputados, é capaz que tudo fique como antes, porque contribuintes e administrações fazendárias continuarão apostando no jogo de suas interpretações. Não há dúvidas de que procedimentos escusos para reduzir carga tributária não deveriam ter lugar no ambiente de negócios, são “armas” ruins que o contribuinte não deveria utilizar. Mas, se os fiscos já têm instrumentos para derrubá-los, qual a razão para o PLP n. 108/2024 trazer regras ao ITCMD nesses casos? Foi apenas um susto, ou os fiscos têm alguma estratégia em andamento? Por enquanto não é possível saber; e que as palavras de Clausewitz sobre estratégias nos iluminem.