Como os motoboys se tornaram um alerta sobre a pororoca na economia
Atividade que cresceu na pandemia, o subemprego dos entregadores sinaliza problemas novos e ainda maiores para os próximos meses
Quem comparou o fluxo de incontáveis motoboys a um rio caudaloso tomando conta da Avenida Faria Lima, em São Paulo, na manifestação dos entregadores realizada dia 1º de julho, cometeu um equívoco geográfico e sociológico.
O movimento lembrou mais uma pororoca, a inundação que contraria curvas de nível e sobe contra a corrente, roendo margens e devolvendo à terra o entulho que ela levaria para o mar.
Imagens como as do vídeo disponível logo abaixo são, na verdade, sinal de que os marginalizados do mercado, mão de obra informal e até chamada de invisível, a despeito de seus uniformes em cores berrantes, têm de ser considerados muito mais seriamente do que foram a até agora.
Antes que a crise econômica fosse agravada pela pandemia, esse exército malpago crescia na onda da economia dos apps, uma das alternativas de subemprego para os 12% da força de trabalho já então excluídos do mercado formal.
Se a emergência sanitária fez aumentar a quantidade de mão de obra disponível para as entregas, com a paralisação até do restante da economia informal, a inédita demanda pelos serviços para os sitiados pelo vírus permitiu absorver parte dos novos desocupados, mas aviltou ainda mais a já precária relação de trabalho entre entregadores a empresas intermediadoras.
Motoboys são um problema social e de saúde do trânsito nos centros urbanos desde o tempo em que eram utilizados na entrega de documentos que hoje circulam apenas em formato digital. A dimensão alcançada agora pela precariedade da atividade é três vezes mais preocupante, pela quantidade deles em atuação.
Mas é o risco de que nem essa ocupação esteja disponível logo mais, para boa parte deles, que torna o cenário ainda mais dramático. Ou seja, a vida está ruim para eles e para o país no modelo atual – e a tendência é de que as coisas sejam piores daqui a algum tempo.
A reabertura da economia vai reduzir o volume de entregas, mesmo que muitos dos consumidores tenham migrado definitivamente para esse tipo de serviço. Por outro lado, dos 13% dos trabalhadores que estão afastados provisoriamente, em razão do distanciamento social, sabe-se que muitos não encontrarão o emprego na retomada, porque os empreendedores que os contrataram não reabrirão seus negócios.
Num cálculo otimista, mais da metade das pessoas consideradas aptas ao trabalho não terão emprego no próximo ano. E é bastante improvável que o agravamento do endividamento público observado agora para a criação do auxílio emergencial seja admitido em 2021, sem nenhuma perspectiva de aumento relevante na arrecadação federal.
No ano passado, quando o otimismo do ministro Paulo Guedes ainda podia ter algum fundamento, ele falava no número mágico de R$ 1 trilhão, a ser arrecado com o programa de desestatização. Se estão certas as estimativas de que o programa de auxílio emergencial por três meses pode custar, no final das contas, mais de R$ 100 bilhões, é fácil verificar que o Tesouro não aguentará essa sangria. A previsão do déficit nas contas públicas deste ano já está em R$ 800 bilhões.
Os entregadores podem até ser a parcela menor dessa pirâmide aritmética, mas sua visibilidade e a instabilidade que cerca seu trabalho representam um alerta quanto à necessidade de rearranjar amplamente a equação de gastos e tributos no país. A pororoca mais destruidora é a que solapa a possibilidade de enfrentamento dos problemas.
As renúncias fiscais estimadas no orçamento e 2020 chegam a R$ 330 bilhões. A sonegação tem projeções diversas, mas nenhuma é inferior a R$ 300 bilhões por ano. Uma reforma tributária pode não trazer ganhos significativos diretos, mas a mera desburocratização do sistema contribuiria para estancar alguns pontos de sangria.
Há três dias, Guedes informou pela enésima vez que tem a proposta de reforma pronta para ser levada ao Congresso. Citou ideias como reforçar a tributação de lucros e dividendos, realçou a hipótese de adoção do Imposto sobre Valor Agregado e desenhou novamente uma contribuição modelada na forma da CPMF para a compensação de perdas de arrecadação.
Segundo o ministro, só falta fazer os acordos políticos que permitam encaminhar sua proposição. Considerando que um dos adversários do modelo CMPF é seu chefe, o presidente, e que esses acordos pressupõem combinar com todos os Estados a instituição do IVA, falta, na verdade, tudo o que faltava há 18 meses, quando o governo Bolsonaro começou.
A maré na contramão do rio está cada dia mais alta.
Para enviar comentários sobre este texto, use, por favor, este link.