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Voar está em alta

O ex-chefe de tecnologia da Boeing John Tracy diz que as novas gerações estão redescobrindo o fascínio do homem pela aviação

Por Raquel Beer 7 ago 2016, 08h36

No último dia 15, a empresa americana Boeing completou cem anos. Durante esse período, ajudou a definir os rumos do transporte aéreo no mundo e esteve presente em momentos históricos da exploração espacial – participou, por exemplo, da fabricação do foguete Saturno V, usado na missão Apollo, que levou o homem à Lua. Depois de trabalhar na companhia por mais de três décadas, o engenheiro americano John J. Tracy, de 61 anos, chefe da área de tecnologia desde 2006, decidiu deixar o posto estratégico que ocupava, e se aposentar, justamente naquela data comemorativa. “Eu podia ter saído em fevereiro, mas não queria ficar de fora dessa festa”, justificou.

Uma semana antes disso, Tracy esteve no Rio de Janeiro – para o lançamento do projeto ecoDemonstrador, desenvolvido em parceria com a Embraer, que testará tecnologias verdes em um avião nacional – e falou a VEJA. Na entrevista, ele se revela otimista com os avanços que irão permitir a fabricação de aeronaves cada vez mais poderosas e econômicas, defende o uso de biocombustíveis no setor e saúda a entrada na corrida espacial de empresas novatas como o sinal mais evidente de que a privatização do universo é irreversível. E de que voar, algo um tanto banalizado nos últimos tempos – os consumidores se acostumaram a viajar entre as nuvens – , voltou a deslumbrar o homem.

O senhor está deixando a Boeing em um momento de expansão da aviação comercial. Até 2030, o número de aeronaves do setor ao redor do mundo dobrará e chegará a 40 mil. Como anda a pressão para que as empresas produzam aviões maiores e mais baratos?  Os consumidores exigem sempre mais capacidade por menos dinheiro. Sabe quando não estamos satisfeitos com o celular que compramos há cinco anos mas não queremos gastar mais do que antes por um novo modelo? O mesmo acontece com os voos comerciais. Muito da tecnologia que desenvolvemos tem como objetivo tornar possível desenhar, fabricar e fornecer aviões mais eficientes por meio de processos mais econômicos.

A Boeing se aliou à brasileira Embraer para lançar o projeto de sustentabilidade ecoDemonstrador. O interesse em uma empresa brasileira tem a ver com a tradição do país no desenvolvimento de biocombustíveis?  É muito mais que isso. O Brasil tem uma história muito rica na aviação, é a pátria do pioneiro Alberto Santos Dummont, que fez o primeiro voo motorizado controlado no começo dos anos 1900. A parceria da Boeing com o país teve início em 1932, quando começamos a colaborar com o exército brasileiro. Hoje, temos parcerias com companhias aéreas como a Gol e a Latam e desde 2013 contamos com um centro de pesquisa em São José dos Campos. Essa é a primeira vez que não usamos um avião próprio no projeto ecoDemonstrador, um voto de confiança inacreditável na indústria aeroespacial brasileira.

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Apesar de manter programas verdes como o ecoDemonstrador, o setor de transporte aéreo comercial costuma ser acusado pelos ambientalistas de emitir uma quantidade massiva de gases que provocam o efeito estufa. Como o senhor responde a essa crítica?  Isso simplesmente não é verdade. A aviação civil contribui com 2% do aquecimento causado pelo homem, número pequeno se comparado à agricultura ou aos carros que trafegam pelas ruas, mas nós levamos esse assunto muito a sério. Como indústria, assumimos compromissos que são mais fortes do que em qualquer outro setor. Até 2050, a nossa emissão de CO2 cairá para a metade do valor de 2005, e apesar de a aviação comercial estar crescendo tremendamente, nós nos comprometemos a fazer com que as emissões parem de crescer até 2020. Na Boeing, melhoraremos a eficiência energética a cada ano em pelo menos 1,5%, e cada novo avião emitirá 15% menos CO2 do que o antecessor.

Qual a principal estratégia para atingir essas metas? Biocombustíveis, por exemplo, como o que vocês estão desenvolvendo em parceria com a Embraer, baseado na cana-de-açúcar?  Precisamos de biocombustíveis porque, além de poluírem menos, absorvem CO2 enquanto suas matrizes são cultivadas. No entanto, como a produção desses combustíveis ainda é pequena, os preços não são vantajosos. Hoje, já seria possível substituir 1% do combustível de cada aeronave pelos alternativos. Até 2030, essa taxa subirá até 30% e o preço se tornará equiparável ao dos combustíveis utilizados atualmente. Mesmo quem não se preocupa com o meio ambiente vai defender a sustentabilidade – é uma ótima oportunidade de negócios.

E quanto a outras alternativas tecnológicas, como os aviões elétricos?  Acreditamos na eletrificação, contudo grandes veículos comerciais movidos exclusivamente por energia elétrica não surgirão até vermos avanços na tecnologia de baterias. O próximo passo são aeronaves híbridas, que usarão querosene para decolar e eletricidade no ar.

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Nos seus 35 anos de Boeing, o senhor percebeu alguma outra mudança no mercado além da preocupação com o meio ambiente?  Os consumidores se tornaram mais acostumados a voar e o que cativava a imaginação de todos no começo da nossa indústria se tornou um lugar-comum. Quando eu tinha 6 anos, meu pai me levou para voar de avião e eu não conseguia acreditar que nós estávamos no ar, foi incrível. Hoje, as pessoas voam a 965 quilômetros por hora, mas se focam nos amendoins, “muito salgados”. O mesmo aconteceu com a exploração espacial: houve uma série de lançamentos para a Lua que ninguém assistiu pela TV. Entretanto, sinto que a maravilha de voar está voltando, assim como o entusiasmo pelo espaço.

Por que o senhor acha isso?  Novas companhias, como a Space X e a Blue Origine, entraram na exploração espacial, e as pessoas parecem animadas com os novos produtos das empresas aéreas, como o Boeing 787. Não sei se são as novidades ou se a nova geração está simplesmente redescobrindo esse interesse. Saiu na imprensa o caso de uma loja que vendia filmes para câmeras fotográficas, então um grupo de pessoas começou a comprá-los e virou moda de novo tirar fotos com filmes e câmeras de 5 dólares. Foi uma redescoberta para aquelas pessoas.

O senhor citou as novas empresas privadas que entraram no mercado de exploração espacial. A privatização do espaço é real?  A Boeing esteve envolvida com a exploração espacial desde as missões Apollo, em cada passo para o homem pisar na Lua. Planejamos continuar participando, mas acolhemos os competidores, porque acreditamos que a competição nos fará melhores. Nós temos até uma parceria com a Blue Origin no desenvolvimento de motores de foguetes.

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Até aonde vai o papel dessas companhias privadas e onde começa o das agências espaciais?  Nos Estados Unidos, em 1918, o governo concedeu contratos para que empresas privadas carregassem a correspondência de uma cidade para outra, e a partir daí a indústria de aviação comercial foi construída. O papel dos governos é ver o potencial em algo e fazer disso um negócio vantajoso para as companhias privadas, para que o investimento seja justificável aos acionistas.

O que está freando a exploração comercial do espaço?  Primeiro, o preço de lançamento. Atualmente, cada quilo que você leva para o espaço custa 20 000 dólares. É muito caro. Um segundo ponto é a segurança – e é preciso muito trabalho para garantir isso.

Mas quais são as possíveis soluções? Veículos reutilizáveis?  Essa é uma técnica-chave para reduzir o custo, e a tecnologia para isso já existe. Também podem contribuir os projetos que querem colocar centenas de satélites no espaço. Essa constelação de satélites irá diminuir o preço dos veículos de lançamento, e só o aumento do número e da escala de lançamentos já deve contribuir para o custo cair.

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As principais inovações hoje vão em que direção? As novidades em software superaram as de hardware?  Nós ainda estamos fazendo progresso no hardware. Trabalhamos nas áreas de sistemas avançados, de aerodinâmica, de materiais e motores, que, juntas, nos ajudam a conseguir um desempenho melhor a cada ano. São materiais mais leves, sistemas elétricos mais avançados e uma aerodinâmica que diminui o arrasto [força de resistência a uma aeronave exercida pelo meio no qual ela se desloca] do avião, nas asas, mas também dentro do motor, que se tornam 1% mais eficientes anualmente. No 787, fuselagem e asas são feitas de uma substância com base de grafite, um material que quase nada se desgasta, não se corrói e é insensível à umidade. É o maior avanço na aviação comercial dos últimos 50 anos.

E quanto às inovações decorrentes do desenvolvimento de softwares?  Geralmente as novidades de hardware captam maior atenção, mas há toda uma inovação em software e eletrônicos acontecendo por trás das cortinas. Se antes eram necessárias três pessoas na cabine, atualmente esse número já caiu para duas. Com big data, temos insights graças à análise de dados gerados por tudo que está conectado à internet. Melhoras também ocorrerão no gerenciamento do tráfego aéreo, ainda baseado na tecnologia dos anos 1950. Hoje, as aeronaves já têm tecnologia para voarem sem pilotos e descobrir outros aviões que estão ao seu redor, o que possibilitaria um aumento no número de naves no ar.

Mas as pessoas se sentiriam confortáveis em voar em um avião sem piloto?  A tecnologia para criar um avião autônomo já existe. As pessoas provavelmente não ficaram tranquilas quando o terceiro membro da cabine se tornou indispensável, entretanto, logo se acostumaram com isso. Cabe às empresas trabalhar com os órgãos reguladores para provar que os produtos são seguros. Isso deve acontecer primeiramente com aviões de carga, e algum dia as pessoas poderão se habituar a voar em aviões autônomos. Quem pode prever? Os consumidores decidirão com o que se sentem confortáveis.

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No início deste ano, uma startup conseguiu financiamento da Virgin Galactic ao apresentar a proposta de construir um avião supersônico. Essa tecnologia está pronta para ser aplicada?  Nós já construímos uma nave supersônica e poderíamos fazê-lo de novo. Não o fazemos porque quanto mais rápido o avião vai, maior é a resistência imposta a ele pelo ar, gastando-se assim mais combustível. Em segundo lugar, quando uma aeronave voa muito rapidamente, o ar não consegue sair de seu caminho, empilha-se à sua frente e cria um pulso de pressão, que as pessoas ouvem do chão, chamado de “boom sônico”, que incomoda aqueles que estão sob a região sobrevoada. Há pesquisas para solucionar tais empecilhos, e essa geração definitivamente verá jatos comerciais supersônicos, que devem aparecer primeiro entre os jatos executivos.

O que o senhor espera do futuro da aviação e da exploração espacial?  Espero que voemos de maneira supersônica, ou hipersônica, nos próximos 100 anos, e que pessoas “normais”, como nós, viajem ao espaço. Mas há coisas que eu sequer posso imaginar. Em 1816, um inglês chamado James Maxwell teorizou as ondas eletromagnéticas. Mais de 120 anos depois, esse fenômeno físico foi empregado em algo que literalmente mudou a vida de todos nós: os celulares. Haverá outras coisas que mudarão o mundo? A resposta é sim. Talvez sejam as ondas gravitacionais descritas por Einstein, que nós finalmente descobrimos alguns meses atrás. Algo grande vai acontecer, algo com que nenhum de nós sequer sonha agora.

E quais são os seus planos para o futuro?  Voltarei à cidade onde cresci, Los Angeles, para passar mais tempo com os meus netos. Tenho projetos em que quero trabalhar, alguns sem qualquer ligação com a engenharia. E há muitas coisas que desejo aprender – como usar as redes sociais, por exemplo. Abri uma conta no Twitter no mês passado, porém ainda não aprendi a mexer nela direito. Me dê mais alguns dias para eu pegar o jeito.

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