Vacinas – Os imunizantes e o combate ao coronavírus no Brasil
por Natalia Pasternak, Márjori Dulcine
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, Jorge Kalil, Mauricio Zuma, João Henrique Rafael JúniorAtualizado em 19 jan 2021, 14h51 - Publicado em
19 jan 2021
10h07
Apresentação
A eclosão da pandemia da Covid-19, no início do ano passado, deixou marcas profundas por todo o planeta, mas também produziu um feito histórico. Em questão de meses, cientistas encastelados em laboratórios de dezenas de países — tanto em centros de pesquisa públicos, universidades ou empresas privadas — desenvolveram uma fornada de imunizantes para bloquear a infecção pelo coronavírus.
Tal sucesso inquestionável e a rapidez com que foi alcançado vêm do desenvolvimento das tecnologias que permitiram o rápido sequenciamento do genoma do vírus e a posterior aplicação dos resultados dessas pesquisas na produção de antígenos. Mas há outro avanço nesse colossal esforço empreendido pela humanidade: o desenvolvimento das chamadas vacinas de terceira geração.
Essa categoria de imunizantes, como aponta a microbiologista Natalia Pasternak nesta edição de VEJA Insights, é constituída pelas vacinas genéticas. Tais imunizantes, diferentemente das vacinas tradicionais, não trabalham com os vírus agressores inteiros nem com seus pedaços. Utilizam apenas informação genética, na forma de uma sequência do DNA.
No caso da Covid-19, essa sequência vem por meio de uma molécula de RNA que compõe o genoma do coronavírus (Sars-CoV-2). Trata-se de um fragmento genético que as células do corpo humano vão ler e usar para produzir uma proteína típica do vírus, o que alerta o sistema imune contra ele. As primeiras vacinas de RNA aprovadas para uso humano foram criadas justamente para combater a Covid-19 pelas farmacêuticas Pfizer e Moderna.
Outro imunizante de terceira geração é a chamada vacina vetorizada, que também usa uma fração do RNA do vírus, mas embarcada dentro da carapaça de um vírus inócuo. No contexto do coronavírus, essa é a estratégia do modelo da AstraZeneca/Oxford e da russa Sputnik V.
Ao utilizar apenas informação genética, e não trabalhar mais com microrganismos em si, esse tipo de vacina pode ser especialmente versátil, fácil e rápido de produzir. É um processo que também permite, a partir da troca da informação genética utilizada, viabilizar rapidamente novos produtos para outras infecções — ou para uma nova versão da mesma doença provocada por mutações nos vírus. Com isso, tonou-se possível responder muito mais rapidamente a patógenos emergentes, o que reduzirá drasticamente a vulnerabilidade diante de futuras epidemias.
Além das novas vacinas genéticas, VEJA Insights #6 aborda discussões relevantes como o desafio científico para produzir uma versão totalmente nacional de vacina contra o coronavírus, o papel de instituições de pesquisa como a Fundação Oswaldo Cruz no desenvolvimento de fármacos e imunizantes e ainda o impacto que a desinformação e as fake news disseminadas pelos ativistas contra vacinas têm na prevenção e controle de doenças. São assuntos mais do que pertinentes em um momento em que as vacinas, seja contra a Covid-19 ou contra outras doenças infecciosas que venham a surgir, passarão a fazer parte de nossas vidas, de forma irreversível. Boa leitura.
A nova era da imunização
Vacinas genéticas à base de RNA ou DNA prometem revolucionar a luta contra a Covid-19 e outras doenças
Vacinas são consideradas uma das mais efetivas intervenções de saúde pública dos últimos séculos, juntamente com os antibióticos e o saneamento básico. Quando não contávamos com elas, duas em cada dez crianças morriam de alguma doença infecciosa antes de completar 5 anos. As vacinas aumentaram a expectativa de vida, diminuíram o sofrimento, minimizaram a dor e sequelas. Foram essenciais não somente para a saúde humana, mas para a medicina veterinária, tanto na criação animal como para nossos companheiros de estimação.
Nos últimos cinquenta anos, quando se falava em vacinas, os brasileiros nem piscavam os olhos, de tão acostumados que estavam com picadas e gotinhas: elas sempre estiveram ali, no posto de saúde mais perto… Só um compromisso a mais entre outros. Mas, com a pandemia de Covid-19, o que era algo mal notado por aí foi alçado à condição de estrela. Nunca houve tanto interesse por uma vacina. As pessoas despertaram para o assunto e querem entendê-lo.
Vacinas funcionam imitando a doença-alvo, fazendo com que o corpo acredite que está sendo atacado. É um treino. Quando chega a hora do combate verdadeiro, o sistema imune já reconhece o inimigo e monta uma defesa implacável.
Historicamente, dividimos as vacinas em gerações, de acordo com a tecnologia utilizada em sua fabricação.
1. Primeira geração: são as vacinas de microrganismos atenuados (enfraquecidos) ou inativados (“mortos”). Utiliza-se o agente infeccioso inteiro: é necessário cultivá-lo em laboratório para depois enfraquecê-lo até que fique incapaz de provocar a doença. Essa é uma tecnologia quase centenária. Vacinas de primeira geração são as mais comuns no nosso calendário vacinal: previnem, por exemplo, sarampo, rubéola, caxumba, gripe e raiva. No caso da Covid-19, um exemplo de vacina inativada é a CoronaVac, do Instituto Butantan, em São Paulo.
2. Segunda geração: são vacinas de subunidades. Já não precisamos utilizar o microrganismo inteiro, basta um pedaço dele que possa ser reconhecido pelo sistema imune. Em geral, usamos uma proteína ou um açúcar. A vantagem é não precisar mais cultivar o organismo em si. Para fazer esses “pedaços” de microrganismos, precisamos de técnicas de biologia molecular, aptas a produzir e purificar as proteínas em culturas de células. Exemplos de vacinas de subunidade em uso são a da hepatite B e a do HPV. Contra a Covid-19 estão em estudo imunizantes das empresas Novavax e Medicago.
3. Terceira geração: são as vacinas genéticas, de DNA e RNA, e as vacinas vetorizadas, em geral de adenovírus, mas que podem usar qualquer outro vírus benigno como vetor. Essas vacinas já não trabalham nem com o organismo inteiro nem com pedaços. Utilizam apenas informação na forma de uma sequência genética. No caso da Covid-19, essa sequência vem na forma de uma molécula de RNA, que compõe o genoma do coronavírus (Sars-CoV-2). Usamos apenas um recorte do genoma viral, que as células do corpo humano vão ler e usar para produzir uma proteína típica do vírus, o que deixa o sistema imune esperto contra ele. As primeiras vacinas de RNA aprovadas para uso humano foram criadas para combater a Covid-19 pelas farmacêuticas Pfizer e Moderna. As vacinas vetorizadas também usam uma fração do RNA do vírus, mas embarcada dentro da carapaça de um vírus “amigo”. No contexto do coronavírus, essa é a estratégia do modelo da AstraZeneca/Oxford e da russa Sputnik V.
A tecnologia de RNA em vacinas não surgiu agora. Vem sendo estudada há trinta anos por pesquisadores pioneiros como a bioquímica húngara Katalin Karikó. E abre caminho para uma nova era na história das vacinas e das doenças infecciosas.
Como utiliza apenas informação genética, e não trabalha mais com microrganismos, esse tipo de vacina pode ser especialmente versátil, fácil e rápido de produzir. Dá para trocar a sequência genética como quem troca de roupa e, em ritmo veloz, ter um produto para outra infecção — ou para uma nova versão da mesma doença.
Com essas vacinas, poderemos responder muito mais rapidamente a novos patógenos emergentes. E estaremos muito menos vulneráveis em uma próxima pandemia.
* Natalia Pasternak é microbiologista, pesquisadora do Instituto de Ciências Biomédicas da Universidade de São Paulo (USP) e fundadora e presidente do Instituto Questão de Ciência (IQC)
A vacina que veio do frio
Agilidade e alta tecnologia permitiram a criação de vacinas feitas de forma totalmente sintética e armazenadas a 75 graus negativos
Um vírus que parou o mundo e, ao mesmo tempo, nos desafiou e nos mobilizou em tempo recorde. Lados opostos mas semelhantes em um aspecto: a rapidez. Se a Covid-19 mostrou seu potencial destruidor, pesquisadores de todo o planeta provaram a relevância da ciência na área de tecnologias inovadoras, sobretudo no campo das vacinas. Entre elas se destaca a técnica do RNA mensageiro, ou mRNA.
Para entender como essas novas vacinas agem, precisamos partir de um ponto básico, que é o funcionamento das nossas células. Nelas temos o DNA que armazena as informações genéticas, o RNA, molécula que leva instruções dos genes para a síntese de proteínas e outros comandos biológicos, e os ribossomos, estruturas que efetivamente produzem as tais proteínas com as instruções trazidas pelo RNA mensageiro.
O coronavírus, por sua vez, é um vírus constituído apenas de RNA e depende das nossas células para se replicar.
Pois bem, as vacinas de mRNA carregam o código genético do vírus contendo as instruções para as células do corpo produzirem determinadas proteínas. Ou seja, elas introduzem no organismo a sequência de RNA mensageiro com a receita para que os ribossomos de nossas células sintetizem uma proteína específica do vírus.
Uma vez que essa proteína é processada e exposta ao sistema imunológico, as células de defesa podem identificá-la como algo estranho (um antígeno) e desenvolver imunidade contra o patógeno. Essa imunidade é representada pela produção de anticorpos e pela reação de linfócitos T, que são um tipo de célula de defesa. Desse modo, as vacinas ensinam nosso organismo a se proteger quando estiver em contato com o vírus em si.
E essa foi a ideia levada adiante contra a Covid-19. As vacinas de mRNA, totalmente desenvolvidas em laboratório, não exigem nenhum material biológico para sua produção, diferentemente de outros tipos, que dependem de vírus e células. Isso permite que esses imunizantes também possam ser fabricados mais rapidamente que as vacinas tradicionais, aquelas produzidas por meio do crescimento de formas inativadas do vírus e que estimulam o sistema imune a liberar anticorpos contra o agente infeccioso — um processo efetivo, porém mais demorado.
Diferentemente das vacinas convencionais, que levam meses para ser criadas e produzidas, as vacinas baseadas em RNA mensageiro são fabricadas de forma sintética, valendo-se apenas do código genético do patógeno.
A Pfizer, em parceria com a BioNTech, iniciou um estudo cujo desenho permitiu a avaliação de várias vacinas experimentais simultaneamente a fim de identificar a candidata mais segura e potencialmente mais eficaz no maior número de voluntários — e de modo a facilitar a apresentação dos dados obtidos para as autoridades regulatórias em tempo real. Em março de 2020, as empresas começaram esse trabalho de desenvolver, testar e fabricar uma vacina de mRNA contra o coronavírus.
O estudo clínico de fase 3, a última etapa antes da aprovação regulatória, envolveu cerca de 43 000 pessoas inscritas, em mais de 150 centros de pesquisa de diferentes países. O Brasil participou com 2 900 cidadãos, recrutados em São Paulo e na Bahia. Nesse contexto, a vacina foi e continua sendo testada em uma população diversa, contemplando inclusive adolescentes a partir de 12 anos nos Estados Unidos e de 16 anos em outras nações e indivíduos com HIV estável e crônico, hepatite C ou hepatite B, que deverão ser acompanhados por pelo menos dois anos.
No mês de novembro de 2020, conseguimos chegar a uma vacina cujo resultado da análise final de eficácia foi de 95% na prevenção da infecção, com início da proteção 28 dias após a primeira dose (são duas ao todo). Já a eficácia observada em adultos com mais de 65 anos foi superior a 94%.
No caso específico do combate ao vírus Sars-CoV-2, a vacina da Pfizer/BioNTech gera uma reação de anticorpos contra a espícula do coronavírus, proteína na superfície do patógeno que lembra uma coroa, impedindo que ele infecte nossas células.
Como estamos falando de uma vacina de mRNA, elaborada com um RNA mensageiro sintético, esse resultado foi possível em um prazo nunca antes imaginado. Os dados demonstraram também que a vacina é bem tolerada nas diferentes populações estudadas, sem nenhuma preocupação séria de segurança observada.
Um diferencial do novo imunizante é a necessidade de armazenamento recomendado a uma temperatura de 75 graus negativos (com variações de mais, ou menos, 15 graus). Isso se deve à sensibilidade da molécula de RNA, que só se mantém estável e efetiva em baixas temperaturas.
Atenta a essa característica e considerando questões geográficas e climáticas em diversos países, bem como possíveis desafios que alguns programas de vacinação poderiam enfrentar, a Pfizer desenvolveu também uma embalagem inovadora em caixas que permitem armazenar a vacina por trinta dias em gelo-seco e em refrigerador comum (entre 2 e 8 graus) por até cinco dias. A caixa possui ainda um dispositivo de controle de temperatura e localização por GPS.
Toda essa estrutura viabiliza a vacinação em massa, principalmente na situação atual, em que se pretende alcançar o maior número de pessoas em curto espaço de tempo.
Com os dados conclusivos em mãos e um plano de ação, iniciamos o processo de avaliação junto a órgãos de saúde de todo o mundo. O Reino Unido se tornou o primeiro país a aprovar uso emergencial de nossa vacina contra a Covid-19 e a iniciar a imunização de seus cidadãos. Ao longo desse processo, que durou menos de oito meses, o planeta registrou mais de 1,5 milhão de mortes pelo coronavírus.
Não há dúvida de quão rápido o Sars-CoV-2 atingiu todo o globo e alterou nossa realidade de uma forma nunca prevista. Mas também é inegável a rapidez com que a ciência respondeu e está respondendo a esse chamado para salvar o mundo. A batalha agora envolve criar uma ação mundial para levar a vacinação a todos, inclusive no Brasil, e combater tantas mazelas provocadas pela Covid-19.
O que mais queremos hoje é retomar nossa vida. E só a ciência é capaz de fazer isso.
*Márjori Dulcine é diretora médica da Pfizer Brasil
Um imunizante 100% brasileiro
O desenvolvimento de uma vacina totalmente nacional pode ajudar não apenas no controle da pandemia do coronavírus como também no combate de novas emergências sanitárias
A vacinação contra a Covid-19 vem produzindo discussões acaloradas, para dizer o mínimo: valores envolvidos na importação dos imunizantes, testes a que deverão ser submetidos, quantas doses precisam ser compradas, qual a real eficácia, entre tantas outras questões. Alguns temas, no entanto, têm ganhado pouco espaço, mínimo mesmo. Na urgente luta contra o coronavírus, nem sempre se fala por aí que o Brasil é referência internacional em vacinação. E poderá criar a própria fórmula contra a Covid-19.
Hoje, produzimos vacinas para proteger nossa população e exportamos imunobiológicos para mais de setenta países. No caso da Covid-19, temos pesquisas com novas soluções nessa área sendo realizadas na Universidade de São Paulo (USP), na Universidade Federal do Paraná (UFPR), na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e no Instituto Bio-Manguinhos/Fiocruz, por exemplo.
Para dar início à vacinação contra o coronavírus no país, os produtos importados serão fundamentais. Mas eles não são necessariamente os melhores — são apenas os primeiros a chegar. O que precisamos, na verdade, é de uma vacina descoberta, desenvolvida e produzida no Brasil, que possa ser usada futuramente para nos resguardar da doença ou reforçar a imunidade que as primeiras vacinas vão proporcionar. Com isso em mente, nós, da Faculdade de Medicina e outras unidades da USP, como o Instituto de Ciências Biomédicas (ICB) e a Faculdade de Ciências Farmacêuticas (FCF), ao lado da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), estamos desenvolvendo um modelo próprio e na forma de spray nasal.
Para compreender seus diferenciais, devemos lembrar que a Covid-19 é fundamentalmente uma doença das mucosas, os tecidos que revestem o interior das cavidades úmidas do corpo e ficam em contato com o meio externo — boca, intestino e o trato respiratório, por exemplo. A imunização por spray nasal entra em contato direto com a mucosa e, assim, promove a resposta imune local, com a produção dos anticorpos IgA (imunoglobulina A) e IgG (imunoglobulina G), que são mais abundantes.
A vacina nasal também estimula algumas células de defesa nas vias aéreas e nos pulmões, os chamados linfócitos T, importantes para a resposta imune. Há ainda um ganho para quem tem medo de injeção: ela é muito mais fácil de administrar e não tem o desconforto da picada da agulha.
As vacinas em fase avançada hoje são produzidas ou a partir do vírus inativado por meio de uma substância química (o que faz com que ele não se multiplique mais) ou a partir da espícula do vírus, a proteína de superfície que dá ao coronavírus aquele aspecto característico de coroa. Mas, antes que fossem feitos estudos detalhados desses antígenos, tais vacinas foram diretamente para a produção de protótipos e testagem em animais.
Sabendo disso, invertemos a equação: passamos a estudar a resposta imune de proteção primeiro. Para isso, coletamos o sangue de 220 convalescentes da doença e estudamos as reações dos anticorpos e dos linfócitos T. A partir daí, desenhamos nossa proteína usando partes diversas do vírus, e não só a espícula. O antígeno resultante é, então, encapsulado em nanopartículas para ser levado ao organismo.
Dessa forma, nossa vacina poderá produzir as duas respostas esperadas, produzindo anticorpos e reação celular. Além disso, do modo como a projetamos, desencadeará uma “memória” melhor — ou seja, seu efeito será mais duradouro. Estamos atualmente na fase de refino do protótipo e a próxima etapa englobará os testes em si. Apesar de as pesquisas seguirem na maior velocidade possível, ainda é arriscado fazer uma previsão mais específica sobre a data de conclusão do trabalho.
O fato é que o Brasil tem de produzir a própria vacina. A ciência que se pratica no país na área de imunologia é referência global: não há motivo algum para ficarmos para trás diante desta pandemia que avança sem freios. Mas não só isso: uma vacina desenvolvida aqui poderia ser fabricada na quantidade que quiséssemos, sem necessidade de pagar por uma tecnologia estrangeira. Também facilitaria enfrentar o desafio logístico que será fazer com que ela chegue a todos os mais de 210 milhões de habitantes do quinto maior país do mundo.
Com a própria vacina, o Brasil terá independência para planejar as próprias estratégias diante da maior crise global de saúde em mais de um século, e a ciência nacional poderá fazer história. O contínuo investimento em ciência é decisivo para superarmos a Covid-19 e nos prepararmos para encarar outras emergências sanitárias que poderão surgir.
*Jorge Kalil é imunologista, professor titular da Faculdade de Medicina da USP e diretor do Laboratório do Instituto do Coração (InCor)
Caminho para o futuro
Maior produtora de vacinas da América Latina e peça-chave no combate ao coronavírus, a Bio-Manguinhos/Fiocruz tem o desafio de se manter como referência no desenvolvimento tecnológico e acessibilidade à saúde no Brasil
A importância do domínio de tecnologias para a saúde no âmbito nacional não é um tema novo, mas o advento da pandemia do coronavírus fez o país deparar com a dependência e disponibilidade externas para adquirir uma série de insumos — respiradores, testes para diagnóstico e as tão esperadas vacinas —, dando um fôlego inédito ao tema.
A discussão perpassa diversos níveis da cadeia produtiva e traz questionamentos sobre a real autonomia da indústria nacional, quer seja a pública, quer seja a privada. Na área da biotecnologia, o assunto é ainda mais complexo, pois requer altíssimos níveis de capacitação de equipes técnicas e de investimentos em plantas industriais tanto para a sua construção quanto para a sua operação.
No terreno dos produtos imunobiológicos, hoje a fabricação de vacinas é suportada por um pequeno grupo de produtores públicos, dentro de uma política que reconhece a importância de o Estado ter autonomia na geração de insumos estratégicos para a saúde. Com essa produção nacional, milhões de doses são fornecidas gratuitamente à população todos os anos por meio do Sistema Único de Saúde (SUS), incluindo aí vacinas escassas para a população global e de pouco interesse econômico para a indústria privada, como a da febre amarela.
Ainda assim, boa parte das vacinas disponibilizadas ao SUS em 2019 foi importada. E três motivos estão por trás disso: ausência do domínio da tecnologia, falta de capacidade produtiva para incorporar novos imunizantes ou, ainda, a inviabilidade de produzir mais doses para atender a demandas ampliadas ante surtos e epidemias.
Diante do novo cenário e da ameaça do vírus Sars-CoV-2, fez-se premente a busca de alternativas para ofertar uma vacina à população brasileira, e o Instituto de Tecnologia em Imunobiológicos, unidade de pesquisa, desenvolvimento e produção da Fundação Oswaldo Cruz (Bio-Manguinhos/Fiocruz), foi designado pelo Ministério da Saúde como a instituição capaz de avaliar tecnologias e estabelecer essa produção no Brasil.
A decisão se deu não somente pelo fato de Bio-Manguinhos/Fiocruz ser um laboratório oficial e o maior produtor de vacinas do país e da América Latina, mas também pela sua vasta experiência em pesquisa, desenvolvimento e incorporação de tecnologias para produzir e disponibilizar vacinas, kits para diagnóstico e biofármacos para a população, por meio dos programas públicos de saúde.
A experiência de 120 anos da Fiocruz na produção de soros e vacinas foi, de fato, impulsionada pela criação de Bio-Manguinhos, em 1976, com o objetivo de dar caráter industrial à produção das vacinas e kits diagnósticos da Fiocruz. Como primeira tarefa, coube ao recém-criado instituto incorporar a tecnologia da vacina meningocócica AC, transferida pelo Instituto Mèrieux (França), em resposta à epidemia de meningite que teve seu epicentro em São Paulo e foco em mais seis grandes capitais brasileiras. Desde então, Bio-Manguinhos/Fiocruz vem estabelecendo parcerias não somente de transferência de tecnologia, mas também de desenvolvimento conjunto, visando a ampliar a cesta de produtos imunobiológicos oferecidos ao SUS.
Atualmente, o instituto possui um portfólio de mais de quarenta produtos, tendo dez vacinas e dez biofármacos registrados, além de uma gama de kits para diagnóstico — incluindo testes rápidos e exames moleculares para detecção do novo coronavírus desenvolvidos em tempo recorde. Dos imunizantes registrados atualmente no Brasil, fornece rotineiramente ao Programa Nacional de Imunização (PNI): vacina contra febre amarela; pneumocócica 10-valente conjugada; poliomielite 1 e 3 atenuada; poliomielite 1, 2 e 3 inativada; rotavírus humano; tetravalente viral (sarampo, caxumba, rubéola e varicela); e tríplice viral (sarampo, caxumba e rubéola). Também possui em seu portfólio a vacina Haemophilus influenzae tipo B, destinada aos Centros de Referência para Imunobiológicos Especiais (Cries).
A designação pelo Ministério da Saúde para que Bio-Manguinhos/Fiocruz avaliasse as vacinas candidatas a conter a Covid-19 mobilizou uma intensa pesquisa de fórmulas e soluções técnicas desde o início da pandemia. As análises foram feitas a partir de critérios tecnológicos, científicos, econômicos e clínicos, contemplando o estágio avançado de desenvolvimento das vacinas e a possibilidade de incorporação rápida da tecnologia e do processo de produção no Brasil, e submetidas à Secretaria de Ciência, Tecnologia e Insumos Estratégicos do ministério.
Com base nessas avaliações, a vacina desenvolvida pela Universidade de Oxford (Inglaterra) com a tecnologia de vetor viral não replicante (adenovírus de chimpanzé) foi identificada como a mais promissora e aderente às competências e à estrutura fabril de Bio-Manguinhos/Fiocruz. Então, em junho de 2020, o governo federal manifestou seu interesse junto à embaixada britânica e ao laboratório AstraZeneca, detentor dos direitos de produção e comercialização do imunizante.
Na corrida por uma vacina, em que diversos países — em especial os mais ricos — garantiram um grande número de doses de produtos ainda em desenvolvimento para as suas populações, esse acordo foi fundamental para garantir o acesso à população brasileira imediatamente após o registro sanitário.
Em seguida, a Fiocruz e a AstraZeneca assinaram o Memorando de Entendimento, contendo as bases para a Encomenda Tecnológica, firmada em agosto. Esse contrato estabeleceu o acesso a 100,4 milhões de doses do ingrediente farmacêutico ativo (IFA), que é o substrato vacinal, para processamento final (formulação, envase, rotulagem e embalagem), bem como as bases para a transferência da tecnologia que, além de garantir a autossuficiência na produção desse imunobiológico, possibilitará a utilização da plataforma para produção futura de outras vacinas.
Devido aos investimentos feitos ao longo de mais de quarenta anos, o instituto está em plena atividade para fornecer a vacina da Covid-19 ainda no primeiro trimestre de 2021 a partir do IFA importado e garantir a produção 100% nacional, em larga escala, no segundo semestre, o que seria inviável se não houvesse uma política forte de Estado para garantir a competência pública em prol da sociedade.
Para essa primeira etapa, a de processamento final, a estrutura fabril instalada necessitou apenas de alguns ajustes, por dispor de processo adequado ao da vacina da Covid-19 em plena operação. Para a segunda etapa, a de absorção da tecnologia de produção do IFA, que envolve maior complexidade, a Bio-Manguinhos/Fiocruz já conta com as competências necessárias para incorporação do processo produtivo.
É graças a essa política e infraestrutura que, desde 1973, o Brasil tem um dos programas de imunizações mais fortes do mundo, com amplo potencial de execução de vacinações de rotina e campanhas. Assim, a partir da disponibilização da vacina da Covid-19 por Bio-Manguinhos/Fiocruz ao PNI, será possível realizar a distribuição por todo o país, viabilizando o início da vacinação dos grupos prioritários e estendendo-a posteriormente às demais parcelas da população.
Diante da pandemia, mais do que nunca a autossuficiência na produção de imunobiológicos se mostra estratégica e essencial para garantir a saúde dos brasileiros. Por outro lado, vê-se a necessidade de um novo impulso na capacitação nacional, para que o país possa vir a receber novas tecnologias não somente para atender a futuras situações emergenciais, mas também para incorporar novos produtos de relevância para o SUS.
Nesse sentido, Bio-Manguinhos/Fiocruz está em vias de receber autorização governamental para seguir com a próxima etapa da construção do Complexo Industrial de Biotecnologia em Saúde (Cibs), no Distrito Industrial de Santa Cruz, Zona Oeste do Rio de Janeiro, o qual já recebeu investimentos do Ministério da Saúde para as etapas de terraplenagem, estaqueamento dos prédios, construções dos blocos e cintas, compensação ambiental e aquisição dos principais equipamentos de produção. O empreendimento será o maior centro de produção de produtos biológicos da América Latina e um dos mais modernos do mundo, e possibilitará ao instituto aumentar em até quatro vezes a capacidade de produção de vacinas e biofármacos.
Além de garantir o abastecimento de mais produtos para o Ministério da Saúde, o Cibs representa o potencial de expandir a atuação da instituição no cenário público internacional por meio de exportações, contribuindo ainda mais com o fortalecimento do Complexo Econômico e Industrial da Saúde (Ceis) do país, fortalecendo a cadeia produtiva e a balança comercial, gerando empregos e trazendo economia aos cofres públicos.
Em paralelo, na busca de alternativas para combater a pandemia da Covid-19, Bio-Manguinhos/Fiocruz segue com dois projetos próprios de desenvolvimento de vacinas contra o coronavírus — uma sintética e outra de subunidade, ambas em estudos pré-clínicos, além de dois projetos em parceria, reforçando a importância de investir em inovação tecnológica como forma de contribuir para a soberania nacional.
*Mauricio Zuma é doutor em gestão de tecnologia e inovação pela Universidade de Sussex, na Inglaterra, e diretor do Instituto de Tecnologia em Imunobiológicos da Fundação Oswaldo Cruz (Bio-Manguinhos/Fiocruz) desde 2017
O ataque dos fundamentalistas
Grupos contrários à vacinação já vinham atuando à base de muita 'fake news' antes da Covid-19, provocando queda na imunização pelo país
As vacinas estão entre as tecnologias voltadas à saúde mais importantes já desenvolvidas pela humanidade. Salvam, por ano, mais de 2 milhões de vidas. Contudo, desde sua origem, elas sofrem ataques infundados de grupos contrários à sua aplicação.
Atualmente, o chamado movimento antivacina ganhou força com as redes sociais e plataformas de conteúdo, encontrando nesses meios digitais novos recursos e oportunidades para disseminar em larga escala suas campanhas de desinformação.
Apesar de o movimento ainda não ser tão expressivo e organizado no Brasil quanto em outros países, como os Estados Unidos, suas ações por aqui já começaram a surtir efeito. Em 2019, 67% dos brasileiros acreditavam em alguma informação falsa sobre vacinas, segundo pesquisa feita pelo Ibope a pedido da Avaaz e da Sociedade Brasileira de Imunizações (Sbim). O número era maior justamente entre aquelas pessoas que se informavam pelas redes sociais.
Esse cenário ajuda a entender a queda acentuada da confiança do brasileiro nas vacinas, como revela estudo global publicado no periódico médico The Lancet. Em 2015, 75% da nossa população acreditava na eficácia dos imunizantes; em 2019, o índice despencou para 56%. A parcela dos que confiavam na segurança das vacinas também diminuiu no período: de 73% para 63%.
Associada a outros fatores, essa percepção contribuiu para que o Brasil não atingisse nenhuma meta do calendário vacinal em 2019.
Ao analisarmos o ecossistema de desinformação sobre vacinas no país, encontramos dois eixos de produção e distribuição de conteúdos falsos. Há o núcleo ideológico, constituído por indivíduos que se reúnem em grupos do Facebook e acreditam (e compartilham) que as vacinas são extremamente perigosas. E há o núcleo comercial, composto de diversos canais de desinformação genérica no YouTube e que, eventualmente, dissemina conteúdos falsos sobre vacinas visando à monetização por visualização ou à venda de produtos alternativos.
Tais núcleos já vinham se estabelecendo nas plataformas fazia anos e possuíam um amplo repositório quando a pandemia do coronavírus começou. Diante da intensa demanda por informações nesse contexto, eles aproveitaram seus conteúdos para espalhar desinformação sobre a Covid-19 como estratégia para atingir novos públicos.
Eis um objetivo que, de fato, foi alcançado. Entre março e dezembro de 2020, os grupos antivacina no Facebook cresceram 18%, totalizando mais de 23 000 usuários.
À medida que as pesquisas voltadas para as vacinas contra o coronavírus eram desenvolvidas, as campanhas de desinformação se intensificaram: entre maio e julho, o volume de conteúdo falso propagado por esses grupos quase quintuplicou. Apesar de a quantidade de publicações ser grande, os temas se concentravam em poucas categorias, como teorias da conspiração, supostos riscos à saúde, alterações no DNA, histórias envolvendo o empresário Bill Gates e componentes adicionados a vacinas, como células de fetos abortados e chips eletrônicos para monitorar pessoas.
Devido à polarização que atingiu praticamente todos os aspectos relacionados à pandemia no Brasil e no mundo, surgiu um novo eixo do movimento antivacina, o político. Dentro dele, grupos com histórico de espalhar desinformação política começaram também a atacar as vacinas, inflamados por declarações de influenciadores, autoridades e até mesmo do chefe do Poder Executivo brasileiro.
Com o avanço da pandemia, o conteúdo compartilhado no ecossistema antivacina foi se adaptando e se tornando cada vez mais radical e extremo, mesclando-se inclusive com teorias conspiratórias associadas ao movimento QAnon, grupo classificado como ameaça terrorista nos EUA.
As consequências dessas campanhas já ecoam nas pesquisas sobre a intenção do brasileiro se vacinar contra a Covid-19. Em agosto de 2020, de acordo com o Datafolha, 89% do público pretendia se imunizar. Já em dezembro, 73% disseram que tomariam a vacina. Infelizmente, esse número pode cair ainda mais, pois, com a proximidade da vacinação, a tendência é que o volume de desinformação por aí aumente consideravelmente.
Reverter esse cenário se torna cada dia mais difícil. É vital, portanto, que todos os agentes envolvidos, a despeito dos meios e plataformas, não poupem esforços e comecem a agir imediatamente.
As instituições responsáveis devem estabelecer um plano de comunicação integrado, claro e abrangente, que ajude a equilibrar a oferta de informações corretas e baseadas em evidência, principalmente nas plataformas digitais. Os políticos, por sua vez, precisam rever e abandonar os discursos e narrativas desprovidos de base científica para desarmar esse novo eixo antivacina que se formou.
Por fim, é fundamental que as plataformas digitais repensem suas políticas de conteúdo e façam o mínimo que é esperado, ou seja, cumpram aquilo que se comprometeram a fazer para mitigar a livre circulação de desinformação. É inaceitável que o sucesso da vacinação contra a Covid-19 esteja à mercê de algoritmos e pessoas que privilegiam o lucro em vez da ética.
*João Henrique Rafael Júnior é analista do Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo (USP) — Polo Ribeirão Preto e idealizador da União Pró-Vacina
As mutações do coronavírus
Novas variantes do vírus assustam o planeta. Como isso acontece e até que ponto pode atrapalhar o efeito dos imunizantes?
A recente identificação de uma variante do vírus Sars-CoV-2 no Reino Unido tem preocupado as autoridades de saúde de todo o mundo, inclusive porque ela acaba de ser rastreada em dezenas de outros países, incluindo o Brasil. A emergência de uma variante viral durante uma pandemia nada tem de surpreendente: já existem centenas de variantes descritas do coronavírus e faz parte do ciclo de vida de qualquer vírus gerar cópias com poucas modificações em seu genoma (mutações).
O vírus Sars-CoV-2 não é dos mais mutantes. Cada mutação significa uma alteração nas “letrinhas” que compõem o alfabeto do RNA do coronavírus, que tem um genoma com ao redor de 30 000 nucleotídeos (o nome científico dessas “letras”). Só para se ter uma ideia, o patógeno original de Wuhan, na China, e outro que circula aqui no Brasil apresentam entre si cerca de dez letras diferentes. A nova variante britânica apresenta 29 mutações em relação ao primeiro isolado viral sequenciado, justamente um dos primeiros casos de Wuhan.
Além do número mais elevado de mutações que o esperado, a variante anunciada pelo Reino Unido tem oito mutações em uma região muito importante para a biologia do vírus, que é a proteína da espícula (ou proteína S, do inglês spike). Essa proteína confere a aparência de uma coroa à partícula viral — daí o termo “coronavírus”. E é ela que faz o contato inicial do vírus com as células da mucosa respiratória humana, desencadeando o processo de infecção. Mudanças nessa proteína podem levar a uma maior afinidade do vírus mutante por nossas células, facilitando a infeção e, consequentemente, a transmissão.
A variante foi denominada pela autoridade de saúde britânica como VOC-202012/01, sendo que VOC significa variant of concern (“variante preocupante”). Após o anúncio do aumento da frequência dessa versão nos novos casos de Covid-19 e da suspeita de maior transmissibilidade, quarenta países, incluindo o Brasil, fecharam a entrada de voos e passageiros originários do Reino Unido. A própria Escócia, integrante da nação britânica, instalou um bloqueio temporário à entrada de cidadãos ingleses.
No Brasil, a equipe de pesquisa e desenvolvimento da Dasa identificou os dois primeiros casos da América Latina logo antes do Natal, com claro vínculo epidemiológico com pessoas provenientes do Reino Unido. Prontamente avisou as autoridades, que se responsabilizam pelo monitoramento dessa versão mutante no país e acompanham sua possível expansão.
Felizmente, o Reino Unido não encontrou uma maior patogenicidade dessa variante quando comparada às outras. Ou seja, ela não seria pior do que as anteriores quando provoca a doença em si. Mas há um risco indireto: por causar um aumento no número de casos, a VOC pode ocasionar um número maior de hospitalizações e óbitos.
Existe naturalmente uma expectativa quanto às taxas de proteção contra essa variante do coronavírus conferidas pelas vacinas que começaram a ser aplicadas em massa e as que estão em fase final de avaliação. A maior parte dos imunizantes, tanto os de mRNA (Pfizer/BioNTech e Moderna) quanto os de vetor viral (Oxford/AstraZeneca e Instituto de Pesquisa Gamaleya) têm como elemento imunizante a proteína S.
É evidente que variantes virais com mutações nessa proteína poderão reduzir a eficácia da vacina, mas, neste momento, isso é apenas um risco teórico, sem evidência científica alguma. Há que considerar que a proteína S é composta de 1 273 aminoácidos, que são os “tijolinhos” dos quais são feitas as proteínas. A variante VOC-202012/01 tem oito mutações na proteína S — isto é, apenas 0,6% da proteína está alterada. No entanto, a virologia coleciona exemplos de mutações pontuais capazes de promover alterações biológicas impactantes.
Foi o caso do vírus do oeste do Nilo, que, ao chegar aos Estados Unidos, em 1999, sofreu uma única mutação que o tornou muito mais agressivo e transmissível para os corvos. O vírus chikungunya, por sua vez, ao desembarcar na Itália sofreu uma mutação pontual que o adaptou ao Aedes albopictus, parente do Aedes aegypti presente na Europa — sim, falamos daquele vírus transmitido pelo mosquito da dengue. Mas talvez o exemplo mais pertinente à atual questão seja o da hepatite B, cuja vacina também é baseada apenas na proteína de superfície, também denominada “S”: apareceram linhagens virais que são capazes de infectar indivíduos vacinados. Elas são conhecidas justamente como mutações de escape.
Convém ressaltar que a variante VOC-202012/01 ainda é minoritária em todo o planeta. Portanto, ao mesmo tempo que estão justificadas as medidas restritivas para evitar sua disseminação, deve-se seguir com os programas de imunização com as taxas de efetividade já comprovadas para as linhagens que foram alvo das fases 2 e 3 das pesquisas clínicas com as vacinas. São elas as versões predominantes mundo afora.
Por outro lado, vacinas que contenham peptídeos — pedaços de proteína com alguns poucos aminoácidos — que representam diferentes proteínas do vírus (não só a proteína S) e com capacidade de desencadear tanto a produção de anticorpos quanto uma resposta celular poderão ser as vacinas de segunda geração para a Covid-19. Estaríamos mais aptos a cobrir com elas as variantes que podem surgir pelo caminho.
Nessa conjuntura, também é urgente investir no desenvolvimento de antivirais. Uma medicação que seja capaz de tratar a infecção pelos coronavírus em geral, com baixa toxicidade e acessível, é imprescindível, já que o risco de novas emergências é real. Sim, ainda há muitos trabalhos e desafios pela frente.
*José Eduardo Levi é biólogo, pesquisador do Instituto de Medicina Tropical da Faculdade de Medicina da USP e coordenador de pesquisa e desenvolvimento da Dasa; Gustavo Campana é patologista e diretor médico do grupo
A guerra à Covid-19 continua
A vacinação será decisiva para deter o coronavírus, mas é necessário persistir com outras medidas preventivas até o melhor controle da situação
Desde o primeiro caso confirmado no país, no dia 26 de fevereiro de 2020, o Brasil iniciou 2021 com quase 7,7 milhões de pessoas infectadas pelo vírus Sars-CoV-2, o causador da Covid-19, e hoje já supera as 200 000 mortes. Mesmo se considerarmos o fato de o país ser populoso e de dimensões continentais, os números são altos e alarmantes.
Alguns erros podem ser apontados como propulsores desse cenário, com destaque para o desprezo à ciência, especialmente em relação às medidas preventivas. Falamos aqui do uso obrigatório de máscara; do distanciamento físico de pelo menos 1,5 metro; da higienização frequente das mãos com água e sabão ou álcool 70%; de se evitar aglomerações e manter ambientes ventilados; e de permanecer em isolamento domiciliar desde o primeiro dia de sintomas suspeitos.
A negação ao tamanho da tragédia, a falta de comunicação harmônica, clara e efetiva entre os três níveis de governo (federal, estadual e municipal), bem como a precária infraestrutura hospitalar pública em algumas cidades brasileiras, completam os principais motivos que fizeram a pior crise sanitária mundial dos últimos 100 anos ser tão devastadora no Brasil.
Com o passar dos meses, ficou cada vez mais evidente que a redução da velocidade de propagação do vírus e o fim da transmissão não poderiam ser alcançados somente com a imunidade coletiva — isto é, com grande parte da população infectada —, mas dependeriam de vacinas. Em todo o mundo, pesquisadores estão testando mais de sessenta imunizantes contra a Covid-19 em humanos, e vinte já chegaram aos estágios finais de estudo. Pelo menos 220 estão sob investigação em animais.
Ainda que se questione a rapidez com que foram criadas as novas vacinas, é inegável que esse avanço só foi possível graças ao árduo trabalho de cientistas e ao uso de tecnologias avançadas e estudadas há anos. Em nosso país, destaca-se nesse contexto o importante papel das instituições públicas de pesquisa, como a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) e o Instituto Butantan, que participam do desenvolvimento e da fabricação de dois imunizantes testados internacionalmente.
Uma das principais dúvidas na cabeça da população é qual seria a melhor vacina contra a Covid-19. O fato é que ainda não temos uma resposta exata. Qualquer produto só poderá ser autorizado e aprovado para uso entre nós após avaliação rigorosa da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), atestando eficácia e segurança observadas nos estudos clínicos.
Quase todas as vacinas são administradas em duas doses, com intervalo entre catorze e 28 dias. Para os que já se infectaram, a vacina também é recomendada pelo risco de nova infecção. Ainda não é possível saber qual será o tempo de proteção dos imunizantes, se serão duradouros ou se necessitaremos de doses de reforço no futuro.
Outra grande questão é se haverá vacinas para toda a população. No momento inicial, quando elas começarem a estar disponíveis por aqui, certamente aparecerão em número limitado e precisarão ser utilizadas em etapas. A ideia é priorizar os profissionais de saúde, para que possamos continuar atendendo pacientes acometidos pelo coronavírus, e pessoas com maior risco de desenvolver a forma grave da Covid-19, com destaque para os idosos. Também devem ser privilegiados na fila da vacina indivíduos com doenças crônicas (diabetes, obesidade, hipertensão…), que são fatores de risco para a infecção em sua forma mais severa.
É no momento seguinte que serão imunizados os adultos saudáveis. Crianças e adolescentes com menos de 18 anos e gestantes não seriam contemplados inicialmente, uma vez que esses grupos fazem parte dos estudos clínicos que atestarão segurança e eficácia nessas populações e serão concluídos em 2021.
A melhor e mais importante informação que temos ao divulgar os resultados das vacinas desenvolvidas contra a Covid-19 até o momento é que todas as candidatas são seguras e apresentam uma proteção robusta, próxima a 100%, para evitar a forma grave da doença e a internação hospitalar.
Mas não podemos esquecer que nenhuma medida isolada fornece proteção total. Assim, devemos aliar à vacinação as medidas de prevenção hoje clássicas e já mencionadas. Tais medidas precisarão ser mantidas, pelo menos até que seja alcançada a imunidade coletiva (popularmente chamada de “imunidade de rebanho”) e a pandemia esteja controlada.
Também não podemos negligenciar as demais vacinas recomendadas e disponíveis para a prevenção de outras doenças infecciosas. Infelizmente, os índices de imunização estão menores a cada ano, ou seja, temos menos pessoas protegidas e criando condições para o retorno de outros problemas, como a poliomielite. O sarampo, por exemplo, voltou pouco depois de recebermos o certificado de eliminação da doença.
As vacinas são reconhecidamente um marco na história da humanidade. Dependemos delas para controlar a devastadora pandemia de Covid-19 e, consequentemente, retomar o crescimento econômico e enfrentar suas consequências sociais. É urgente vacinar os brasileiros! Mais de cinquenta países já deram início à vacinação com segurança. Está na hora de o Brasil também entrar em campo.
*Leonardo Weissmann é infectologista, médico do Instituto Emílio Ribas, em São Paulo, e consultor da Sociedade Brasileira de Infectologia (SBI); Clóvis Arns da Cunha é infectologista, professor da Universidade Federal do Paraná e presidente da SBI
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