Segurança Jurídica – Pilar fundamental do desenvolvimento
por Da RedaçãoAtualizado em 6 jul 2023, 09h59 - Publicado em
29 jun 2023
10h00
Apresentação
Em recente discurso sobre as dificuldades que a indústria encontra para prosperar no país, o ministro recém-aposentado do STF Ricardo Lewandowski citou o livro Leviatã, publicado em 1651 pelo filósofo Thomas Hobbes, para explicar como a falta de segurança é a maior inimiga de qualquer organização social. Sem ela, escrevia o pensador inglês: “não há lugar para a indústria, pois seu fruto é incerto; consequentemente não há cultivo da terra, nem navegação, nem uso das mercadorias que podem ser importadas pelo mar; não há construções confortáveis, nem instrumentos para mover e remover as coisas que precisam de grande força; não há conhecimento da face da Terra, nem cômputo do tempo, nem artes, nem letras; não há sociedade; e o que é pior de tudo, um constante temor de morte violenta”.
A primeira ideia que se tem ao ler o clássico é sobre segurança física, em seguida a garantia da propriedade privada. Uma reflexão menos instintiva, porém, leva à conclusão de que a passagem também é verdadeira quanto à imprevisibilidade jurídica, afinal, suas consequências são estritamente as mesmas. Quase 400 depois da publicação de Hobbes, a insegurança quanto às leis e sua aplicação levam as empresas brasileiras a hesitar para tomar decisões de longo prazo, como contratações, financiamentos, investimentos e inovações. Tudo por medo do que pode vir a acontecer. Além de dificultar o processo decisório, cria-se um ambiente de eterna litigância que eleva os custos das pessoas, das companhias e do governo.
A insegurança jurídica abala a certeza sobre o passado consolidado, a confiança no presente, a legítima expectativa quanto ao futuro e – o que é mais grave – corrói valores indispensáveis à existência e à estabilidade da sociedade. As ações para a redução da insegurança jurídica devem iniciar pelo reconhecimento dos custos que ela representa para o país e para a sociedade.
Uma pesquisa publicada no Mapa Estratégico da Indústria 2018-2022, da Confederação Nacional da Indústria (CNI), colocou o Brasil em último lugar no ranking de segurança jurídica, burocracia e relações de trabalho na comparação com outros 18 países. O país sai prejudicada na avaliação dos três principais pilares da previsibilidade de regras e sua aplicação: clareza e publicidade das normas; estabilidade do direito; e respeito às decisões anteriores.
De acordo com um estudo encomendado pelo Ministério do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços sobre o Custo Brasil, a ineficácia da regulação e morosidade da Justiça tiram 210 bilhões de reais da economia por ano – sem contar os problemas com o sistema tributário e legislação ambiental, entre outros. “Chegamos à conclusão de que a insegurança jurídica é um elemento transversal do custo Brasil, porque a imprevisibilidade quanto às regras, que mudam toda hora, e sua aplicação, que não é constante nem confiável, são uma ameaça em todas as etapas de um empreendimento”, explica Cassio Borges, diretor jurídico da CNI.
Nas próximas páginas, VEJA INSIGHTS, em parceria com a Confederação Nacional da Indústria, faz um diagnóstico de onde estão os principais obstáculos à segurança jurídica no Brasil: o Sistema Tributário, a Regulação Ambiental, as Relações Trabalhistas, e os 3 poderes e seus órgãos de controle. O leitor poderá entender como a indústria nacional e o espírito empreendedor do brasileiro são minados dia a dia. E o que pode ser feito a respeito. Boa leitura!
Redução da insegurança jurídica é crucial para os negócios
ROBSON BRAGA DE ANDRADE
Há muito tempo, a CNI tem alertado que, para voltar a crescer de forma sustentada, o Brasil precisa reverter o acelerado processo de desindustrialização ocorrido nas últimas décadas. Em todo o mundo, parece não mais haver dúvidas de que ter uma indústria forte e inovadora é fundamental para a superação dos desafios impostos pelas mudanças climáticas, pelo avanço da digitalização e pela reorganização das cadeias globais de valor.
O Plano de Retomada da Indústria, lançado recentemente pela CNI, apresenta um conjunto consistente de propostas que visam criar condições para o fortalecimento do setor. O documento apresenta proposições sobre tributação, financiamento, comércio exterior, infraestrutura, inovação, educação, relações do trabalho e desenvolvimento regional, temas que devem, necessariamente, pautar as ações que buscam o aumento da produtividade e da competitividade brasileira.
“O empresário precisa ter normas claras e previsibilidade para planejar a médio e a longo prazo e para fazer investimentos”
Entretanto, o empenho da classe empresarial pode não alcançar os resultados esperados se não tivermos um ambiente institucional estável. É indispensável termos regras construídas em bases sólidas, com previsibilidade e racionalidade jurídica, que estimulem os investimentos e a geração de emprego e de renda. O empresário precisa ter normas claras e previsibilidade para planejar a médio e a longo prazo e para fazer investimentos. Necessita, também, ter certeza de que as situações anteriormente constituídas serão respeitadas e mantidas. Sem segurança jurídica, o processo decisório das empresas fica comprometido e, sem novos investimentos, todos nós perdemos.
Na visão da CNI, o país terá mais segurança jurídica quando o Direito servir de instrumento de orientação, de proteção e de tranquilidade para todos. A partir da atuação dos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, do Ministério Público e dos tribunais de contas, o Estado tem o dever de ser a principal fonte da segurança jurídica, pois a ele cabe elaborar, alterar, executar, interpretar e aplicar o Direito, além de decidir eventuais conflitos.
Por ser o detentor do Poder e o garantidor da ordem pública, o Estado, quando disfuncional, passa a ser fonte de insegurança jurídica. E os motivos para isso são diversos, entrelaçados, cumulativos e, infelizmente, habituais. Entre os fatores que contribuem para a insegurança jurídica está o desequilíbrio na relação entre os Poderes da República. Outro problema é que o Estado figura entre os maiores litigantes e sua baixa eficiência política e administrativa é uma das causas do permanente déficit fiscal, o que aumenta as incertezas.
“Romper com essa situação permanente de incertezas e promover um ambiente favorável aos negócios deve ser uma prioridade do Estado.”
As soluções para esses problemas são complexas e requerem medidas que devem ser elaboradas a partir do reconhecimento dos custos que a falta de segurança jurídica representa para o país. Estudo realizado pelo Movimento Brasil Competitivo, em parceria com o Ministério do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços, mostra que a insegurança jurídica tem um peso significativo no Custo Brasil, o conjunto de disfunções que retira das empresas 1,7 trilhão de reais ao ano.
Romper com essa situação permanente de incertezas e promover um ambiente favorável aos negócios deve ser uma prioridade do Estado. Para isso, precisamos de análises e de soluções jurídicas complexas e estratégicas.
Com o objetivo de contribuir para o debate sobre a necessidade e a urgência da redução da insegurança jurídica do Brasil, a CNI criou recentemente um Conselho de Assuntos Jurídicos. O colegiado é presidido pelo ex-Presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), Ricardo Lewandowski e composto por outros nove renomados juristas, que, com certeza, contribuirão, com suas ideias, para auxiliar a indústria e o país a buscarem soluções para os diversos entraves existentes nesse campo. Partimos da premissa que a redução da insegurança jurídica é fundamental para melhorar o ambiente de negócios, condição sine qua non para a atração de investimentos e o desenvolvimento econômico e social do nosso país.
Conselho Temático de Assuntos Jurídicos
Foi John Dewey, filósofo e pedagogo americano nascido em meados do século XIX, considerado um dos pais do Pragmatismo, que cunhou a frase “Um problema bem definido é meio caminho para ser resolvido”. De fato, o desafio da insegurança jurídica no Brasil é tão grande e tem tantas faces que é dificílimo saber por onde começar a dirimi-lo. Pois foi justamente para diagnosticar com mais precisão, e a partir daí buscar soluções para os obstáculos, que a imprevisibilidade legal impõe à indústria nacional que a CNI criou o Conselho Temático de Assuntos Jurídicos (CAJ). A primeira reunião do grupo aconteceu em 16 de junho de 2023.
O Conselho é presidido pelo ministro aposentado do Supremo Tribunal Federal (STF) Ricardo Lewandowski, e será um órgão de natureza consultiva integrante da estrutura da CNI, ao lado de outros 10 outros conselhos temáticos que já discutem e orientam o agir da instituição em temas como infraestrutura, relações do trabalho, meio ambiente e sustentabilidade. “A indústria deseja que a Constituição e que as leis do país sejam fielmente cumpridas para garantir a segurança jurídica e a legítima confiança daqueles que atuam nesse importante setor da economia, de maneira a que possa levar a cabo as suas relevantíssimas atividades”, destacou o ministro ao tomar posse, em maio.
Entre as atribuições do CAJ estarão a de apresentar estudos sobre tendências dos tribunais superiores; opinar sobre assuntos jurídicos, legislativos e normativos; propor medidas para o aprimoramento da atuação da CNI nas ações de representação e de interlocução com o Poder Judiciário; sugerir ações de interesse da indústria nos tribunais superiores; e contribuir com subsídios para o aumento da segurança jurídica. “A criação do Conselho de Assuntos Jurídicos da CNI é resultado da percepção de que a defesa de interesses da indústria poderia ser aprimorada e potencializada, com a agregação de uma visão jurídica aos temas relevantes para o país e prioritários para nossa base industrial”, explica Robson Andrade, presidente da CNI. “O empresário precisa ter normas claras e previsibilidade para planejar a médio e a longo prazo e para fazer investimentos”.
Completam o CAJ os advogados Floriano de Azevedo Marques, Arnoldo Wald Filho, Carolina Tupinambá, Fredie Diddier, Grace Mendonça, Heleno Torres, Helio Rocha, Marcus Vinicius Furtado Coêlho, Pierpaolo Bottini e Sérgio Campinho. O secretário-executivo do CAJ será o diretor jurídico da CNI, Cassio Borges.
O Conselho deve realizar quatro reuniões ordinárias por ano.
Entrevista: Ministro Ricardo Lewandowski
O ministro recém-aposentado do STF Ricardo Lewandowski foi protagonista de alguns dos mais marcantes eventos políticos da história recente do Brasil. Foi figura de destaque nos julgamentos do Mensalão e da Lava-Jato, tendo ascendido à mais alta Corte do país em 2006, e a presidido entre 2014 e 2016. E foi justamente por ocupar esta cadeira que se viu na função de presidente do Senado Federal para fins do processo de impeachment da presidente Dilma Rousseff.
Lewandowski não se tornou juiz por concurso, mas pelo quinto constitucional. Advogou por 16 anos antes de entrar no Poder Judiciário, em 1990, após indicação pela Ordem dos Advogados do Brasil para compor o Tribunal de Alçada Criminal de São Paulo. Conhece as agruras e os dilemas, portanto, do lado do julgado e do julgador, o que lhe dá uma perspectiva privilegiada sobre as causas e consequências da insegurança jurídica no país.
Aposentou-se no início do ano para se dedicar à advocacia, a projetos pessoais e, desde 30 de maio, a compor o Conselho Temático de Assuntos Jurídicos da CNI. Também leciona como Professor Titular do Departamento de Direito do Estado da USP (onde se formou em 1973) as disciplinas Teoria Geral do Estado e Garantias Processuais do Cidadão em Juízo.
Às vésperas de presidir a primeira sessão do CAJ, o ministro concedeu uma entrevista por email ao VEJA INSIGHTS:
Quais as consequências da falta de segurança jurídica para a sociedade de uma forma geral? Sem segurança não existe vida social organizada. Nos bolsões onde o Estado não penetra, seja aqui, seja em outros países, como ocorre nas áreas dominadas por bandos armados, narcotraficantes ou milicianos, as pessoas são reféns de criminosos, que determinam o que elas podem ou não fazer.
Como a segurança jurídica é equivalente à segurança física e à segurança da propriedade privada? O primeiro sentido da expressão “segurança” que nos vem à mente é justamente aquele que diz respeito à garantia da vida e da integridade física, bem como ao livre usufruto da propriedade privada. Foi nessa acepção que Thomas Hobbes empregou a palavra, em seu Leviatã, datado de 1651, no qual ele defendia a ideia de que as pessoas, por meio de um contrato social, elegeriam uma autoridade comum, para garantir a segurança de todos, mesmo que às custas da restrição de alguns direitos e liberdades. Assim surgiu o Estado Moderno, exclusivo detentor da competência de legislar, julgar, tributar, estabelecer a moeda, decretar a guerra, celebrar a paz, fixar pesos e medidas, etc.
E quais as consequências desta visão para a indústria e para o empreendedorismo? A consequência dessa concepção é que o Estado tem o dever de garantir a segurança da coletividade, nela compreendida a segurança jurídica, para que os negócios lícitos possam fluir sem sobressaltos, produzindo bens e serviços, além de gerar empregos, rendas e tributos.
Quais as causas da falta de segurança jurídica no Brasil? Uma das maiores causas da insegurança no Brasil é o imenso número de leis em vigor que, além de não serem corretamente cumpridas por seus destinatários, em especial pelo Poder Público, passam por uma constante alteração no Congresso Nacional. É comum que as pessoas, em função dessa permanente mudança, nem sempre saibam claramente o que está ou não valendo, sobretudo no campo tributário. Outra causa de insegurança jurídica é a constante modificação da jurisprudência dos tribunais, não raro com efeitos retroativos.
Faltam instituições para garantir segurança jurídica? As instituições são falhas? Ou o problema é cultural? Creio que insegurança jurídica que sentimos é em grande parte cultural, pois são muitas – e suficientes – as instituições que supostamente a garantem: Judiciário, Ministério Público, Polícia, etc.. É claro que sempre podem melhorar a respectiva atuação. Interessantemente, um conceito que vem tendo uma aceitação crescente em países cultural e economicamente mais desenvolvidos corresponde à “legítima confiança”, cuja essência é a previsibilidade quanto ao comportamento alheio, tanto com relação aos particulares, quanto aos agentes públicos. Isso significa, em essência, que é preciso saber, com uma boa margem de certeza, como as outras pessoas vão se comportar numa dada situação.
Quais os caminhos para aumentar a segurança jurídica no país? Um dos primeiros caminhos é fazer com que as garantias constitucionais que asseguram o ato jurídico perfeito, a coisa julgada e o direito adquirido sejam rigorosamente respeitadas por todos.
A CNI criou o Conselho Temático de Assuntos Jurídicos (CAJ), cujo objetivo é justamente buscar o aumento da segurança jurídica no país. Na prática, o que vai ser feito pelo CAJ? Nós vamos procurar identificar os obstáculos que impedem que segurança jurídica possa gradualmente ser implementada entre nós de modo a incrementar a confiança dos investidores. Pretendemos apresentando sugestões para superar tais empecilhos.
No Brasil é comum ouvir a expressão “essa lei não pegou”. O que faz uma lei pegar ou não? As leis que não correspondem à realidade dos fatos ou aos valores predominantes de uma dada sociedade “não pegam”, porque são artificiais e, por isso mesmo, não são acatadas pelas pessoas. Também “não pegam” as leis casuísticas, aprovadas apenas para atender a determinados interesses particulares.
O empresariado reclama especialmente de como a Justiça do Trabalho ignora a legislação trabalhista aprovada no Congresso e sancionada pelo Executivo. É o caso de uma legislação malfeita? A acelerada mudança tecnológica nos tempos atuais vem introduzindo a cada dia novas variáveis que precisam ser considerados pelo mercado, a exemplo do uso de robôs e da inteligência artificial, que alteram as relações de trabalho e exigem uma uma constante requalificação da mão-de obra. Isso faz com que as leis trabalhistas fiquem rapidamente desatualizadas, pois muitas delas foram concebidas ainda no auge da Revolução Industrial do século XIX.
É comum jogar a culpa da falta de segurança jurídica do Judiciário e no Legislativo. O cidadão/contribuinte/empresário também tem sua parcela de culpa? As pessoas de um modo geral precisam desenvolver um sentimento cívico mais aguçado, começando por ajudar um pouco mais os necessitados. Seria interessante também que deixassem, por exemplo, de furar filas, dirigir no acostamento ou estacionar em vagas reservadas para idosos e deficientes físicos. Isso ajudaria muito.
O brasileiro abusa do direito de buscar a Justiça por qualquer motivo? Nos países que adotam constituições democráticas, como a nossa, com um alentado catálogo de direitos e garantias, ocorre o fenômeno que o sociólogo português Boaventura Souza Santos chama de “explosão de litigiosidade”, em que as pessoas acorrem em massa aos foros e tribunais para defenderem os seus interesses.
A morosidade da Justiça é outra causa importante da falta de segurança. Há solução para esse problema? Uma das soluções consiste em prestigiar os meios alternativos de solução de litígios, como a conciliação, a mediação e a arbitragem. São institutos regulados por lei e que estão em pleno funcionamento.
A CNI defende a reforma tributária como uma maneira de diminuir a insegurança jurídica. De que forma a reforma traria segurança? Uma das melhores contribuições que uma reforma tributária poderia aportar seria a diminuição do número de impostos, reduzindo simultaneamente a complexidade da legislação fiscal. Isso contribuiria sobremaneira para reduzir a insegurança jurídica nessa área.
Sistema tributário
Há muitas razões para se classificar o sistema tributário brasileiro como péssimo. Ele cobra proporcionalmente mais dos pobres do que dos ricos; é cumulativo (paga-se imposto sobre o valor de imposto cobrado anteriormente); onera exportações e investimentos (quando deveria incentiva-los). O que causa mais problemas para a indústria, porém, é o quanto ele é confuso e obscuro, baseado em uma infinidade de regras que ativamente atrapalham o crescimento econômico ao induzir firmas a escolherem tecnologias ineficientes para gastar menos. Para lidar com tamanha insegurança jurídica, há empresas que contam com mais advogados do que engenheiros. E o sinal mais concreto disso é o tamanho do contencioso tributário no país: quando se soma o que está no nível administrativo com o que está na esfera judicial, são mais de 5,44 trilhões de reais em disputa, o equivalente a 75% do PIB (55 pontos percentuais se referem ao contencioso judicial, e 20p.p., ao administrativo). Nos países da OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico), esse número é 0,28% do PIB, e na América Latina (excluindo o Brasil) é ainda menor, de 0,19% do PIB.
Nem mesmo a resolução dos conflitos pelos tribunais traz confiabilidade aos atores econômicos. Dois casos recentes ilustram a total falta de segurança jurídica no país. Em dezembro de 2021, o Supremo Tribunal Federal decidiu que a cobrança de alíquota do ICMS superior a 17% sobre as operações de fornecimento de energia elétrica e serviços de telecomunicação – algumas unidades federativas estabeleciam o imposto em 25% – é inconstitucional por se traterem de serviços essenciais. Apesar de concluir que os estados estavam afrontando a Lei Maior do país em detrimento do contribuinte, os ministros permitiram que a cobrança indevida continuasse por mais dois anos, até o fim de 2023.
Ainda mais espantosa foi a decisão de 8 de fevereiro deste ano, em que os ministros foram unânimes na votação para considerar que uma decisão definitiva, a chamada “coisa julgada”, sobre tributos recolhidos de forma continuada, perde seus efeitos caso a Corte se pronuncie em sentido contrário. O caso tratava da Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL), criado pelo governo federal em 1988, e que algumas empresas conseguiram na Justiça o direito de não pagar, com todos os recursos esgotados. Ou seja, o caso transitou em julgado. Porém, em 2007, no julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 15, o STF mudou de posição e decidiu que a contribuição está de acordo com a Carta Magna e deveria ser paga. As empresas recorreram ao próprio STF, e agora perderam: precisam pagar retroativamente o CSLL acumulado de todos esses anos.
O Brasil convive, atualmente, com 27 legislações distintas de ICMS, uma para cada UF, inclusive no que se refere a conceitos fundamentais de apuração do tributo. Além disso, a falta de coordenação se torna um problema ainda maior quando se avalia o âmbito municipal, uma vez que existem mais de 5 mil municípios no País, com legislações distintas para o ISS. Essa falta de coordenação entre as legislações traz ainda mais complexidade para o sistema tributário, o que se traduz em maiores custos para as empresas que atuam em diversos estados.
É unânime o entendimento de que esse sistema precisa ser alterado – e com urgência. O Brasil já discute a reforma da tributação do consumo há 30 anos e, de 2018 para cá, é possível observar que todos os segmentos da sociedade e do setor público têm convergido na construção de um debate maduro do ponto de vista técnico e político.
O modelo tributário adotado pelo Brasil deve ser reformulado de forma a respeitar os princípios de um sistema eficiente, marcado pela simplicidade, neutralidade, transparência, isonomia e progressividade. Esses princípios estão presentes nos melhores sistemas tributários do mundo e estão consolidados na literatura econômica.
A maior vantagem para a indústria de uma reforma vai ser o ganho de tempo e recursos com a substancial diminuição da litigiosidade. Entre incontáveis casos levados ao CARF para decidir em qual alíquota se encaixa um determinado produto, a Receita Federal e empresas já debateram para decidir se Leite de Rosas é loção embelezadora ou desodorante, se sabão antiacne é cosmético ou remédio, se Crocs são sapatos impermeáveis ou sandálias de borracha. Quanto tempo, energia e dinheiro não se perde com esse tipo de minúcia? De acordo com a pesquisa Doing Business, as empresas brasileiras gastam, em média, 1.501 horas de trabalho por ano lidando com tributos – mais de 500 horas a mais do que o despendido pela Bolívia, penúltima colocada no ranking. Um levantamento mais detalhado da consultoria Deloitte, porém, revelou que uma empresa com faturamento superior a 7 bilhões de reais chega a dedicar 34 mil horas no ano para apurar e pagar tributos, preencher e entregar obrigações acessórias e acompanhar fiscalizações. Tudo isso para evitar problemas com o fisco ou, em outras palavras, para operar em meio a uma insegurança jurídica descomunal.
O projeto ora em discussão na Câmara, que prevê a substituição dos principais tributos incidentes sobre o consumo por um Imposto sobre o Valor Adicionado (IVA), modelo de tributação utilizado em mais de 170 países, é apoiado maciçamente pelos líderes da indústria. Do ponto de vista da segurança jurídica, o fim das inúmeras alíquotas para o estabelecimento de apenas três – uma alíquota para produtos e serviços em geral; uma reduzida em 50% para grupos de exceção, como transporte público, Saúde, Agropecuária e Educação; e isenção para medicamentos que atendem a doenças graves – já traz um avanço incalculável.
Um sistema simples permite que o contribuinte pague seus tributos e cumpra suas obrigações acessórias com facilidade e segurança jurídica. Isso reduz os custos de conformidade e os conflitos na interpretação da legislação, que são, atualmente, a principal causa de litigiosidade no âmbito tributário. A simplicidade também traz transparência, permite que o contribuinte – seja empresa ou consumidor – saiba o quanto está pagando efetivamente de imposto, e assim a a sociedade passa a ter uma melhor condição para posicionar-se frente às decisões do governo com relação às questões tributárias.
Regulação ambiental
A ideia de que a proteção do meio-ambiente é um entrave ao crescimento econômico brasileiro é um entulho do passado que não corresponde às evidências. Já faz tempo que tanto industriais como agricultores já encamparam a agenda verde – não por ideologia, mas por acúmen empresarial. E é por meio do licenciamento ambiental que são avaliados os potenciais danos ao ecossistema dos empreendimentos e atividades econômicas, com base em análise de estudos prévios. Eles precisam existir.
Mas a Política Nacional do Meio Ambiente (PNMA) foi instituída há mais de quarenta anos, e nesse meio tempo muitos problemas surgiram ou ficaram claros. Há uma falta de clareza das etapas e critérios que não é boa para ninguém, e todo o processo é caro e longo. Pior: depois de concluído o trâmite e aprovada a licença, não raro o Judiciário é acionado e embarga o empreendimento sob as mais diversas alegações. É a insegurança jurídica em estado puro.
Em 2019, a Confederação Nacional da Indústria realizou uma pesquisa com 583 empresas do setor industrial e os resultados confirmam essa percepção. Mais de 95% consideraram o licenciamento ambiental fundamental para a conservação do meio ambiente, porém 55,2% acreditam que o atual modelo não atinja esse objetivo. As razões são várias. Não há coordenação entre o licenciamento e os instrumentos gerenciais de outras políticas públicas, o que gera discussões entre diferentes setores de um mesmo governo enquanto o empresário espera sem saber o que fazer. A tramitação envolve inúmeras instituições, cada uma com sua burocracia, exigência de enorme quantidade de documentos, etapas, prazos e alto custo, além de pouca valorização e organização das informações produzidas. Há também conflitos de competências entre União, estados e municípios, que demandam muito tempo para sua resolução. E ainda a falta de recursos dos órgãos ambientais, que podem demorar anos para responder às demandas por falta de recursos humanos, financeiros ou tecnológicos.
O modelo de licenciamento ambiental do país é estruturado em três fases: Licença Prévia (LP), Licença de Instalação (LI) e Licença de Operação (LO), que examinam, respectivamente, a viabilidade ambiental, a instalação e a operação do empreendimento – e esta última precisa ser renovada periodicamente.
Um caminho para desburocratizar o processo de licenciamento sem perda da qualidade ambiental é promover sua integração aos instrumentos de planejamento ambiental. Tais instrumentos, muito adotados internacionalmente, são pouco utilizados no Brasil, e se destinam à avaliação do território do ponto de vista de desenvolvimento econômico e restrições ambientais. Assim, estudos já realizados permitem o aproveitamento de informações, que conferem maior agilidade ao processo de licenciamento de atividades específicas, sendo possível, inclusive, já liberar de licenciamento as atividades já previstas para aquele território.
São exemplos desses instrumentos o Zoneamento Ecológico-Econômico (ZEE), a Avaliação Ambiental Estratégica (AAE) e a Avaliação Ambiental Integrada (AAI). Contudo, esses dois últimos sequer contam com disciplinamento específico na legislação ambiental brasileira. A ideia é bastante simples: se houver de antemão uma estrutura que explicite o que pode e o que não pode em uma determinada área, economiza-se tempo e capital em projetos que jamais seriam autorizados, ou adequa-se com antecedência o empreendimento às regras, tornando o licenciamento muito mais expedito.
Por exemplo, uma região com um rio deve ter um mapeamento da quantidade de água que pode ser retirada, sem prejudicar a vida aquática e o fornecimento de água para a população local. Deve ter também realizado um estudo que determine a região de vegetação nativa que deve ser protegida, em função da proximidade de área com especial interesse ecológico ou da ocorrência de espécies ameaçadas de extinção. Outro levantamento deve ainda listar as atividades econômicas que podem se beneficiar dos recursos naturais daquela região, sem comprometer a qualidade ambiental.
A combinação dessas informações pode gerar um perfil de risco específico para aquela região, que determine o nível de escrutínio a que um empreendimento deve ser submetido. Atividades consideradas de baixo risco podem ser dispensadas completamente do processo de licenciamento ou ter um processo simplificado. É possível, inclusive, determinar os procedimentos necessários para cada nível de risco, associado a cada atividade econômica.
Caso seja necessária alguma informação adicional, o tempo de elaboração dos estudos e o custo devem ser muito inferiores, dado que boa parte do trabalho já foi feito.
No quadro abaixo, é possível verificar como é moroso o processo de licenciamento:
Os prazos legais já são por demais extensos, e estudos da CNI mostram que eles ainda são constantemente desrespeitados. Nos empreendimentos hidrelétricos, por exemplo, 34 meses é a média de tempo que o Ibama leva para deferir uma licença. Muitos estados têm feitos esforços para acelerar o processo, como mostra o quadro a seguir:
A falta de amparo legal explícito, porém, acaba muitas vezes na judicialização do processo – e mais insegurança jurídica, e mais demora. A experiência internacional mostra que é possível tornar o licenciamento ambiental mais racional, barato e previsível, sem prejuízo para o meio-ambiente.
O Projeto de Lei 2159/2021, que tem por objetivo atualizar a PNMA, ataca a maioria dos problemas citados. Ele orienta a coordenação entre os entes federativos na aprovação de licenças, permite a utilização de partes de um mesmo estudo ambiental para diferentes empreendimentos onde for possível, obriga o Poder Público a manter um banco de dados de fácil acesso na internet com documentos de interesse para o licenciamento das diversas esferas administrativas, e simplificam o processo de autorização a empreendimentos situados na mesma área de influência direta de empresas similares.
O PL prevê ainda uma redução dos prazos máximos de análise para emissão das diversas licenças, o que é desejável, mas falta ao texto referência à integração do licenciamento ambiental com os instrumentos de planejamento, a exemplo do Zoneamento Ambiental, em suas diversas modalidades (Zoneamento Ecológico-Econômico e outros) e da Avaliação Ambiental Estratégica (AAE). Desta forma, fica difícil vislumbrar como esses prazos mais curtos seriam cumpridos.
Na falta de segurança jurídica, os empresários que se esforçam para proteger o meio-ambiente e respeitar as regras em suas atividades acabam sendo prejudicados, enquanto os maus agentes que ignoram a legislação, destroem os ecossistemas e a reputação brasileira enriquecem à margem das boas práticas.
Judicialização e risco trabalhista
A mentira de que a Justiça do Trabalho não existe em nenhum outro país do mundo já foi repetida muito mais de mil vezes, mas não virou verdade. Por mais comum que seja ouvi-la da boca de empresários ou esbarrar com a afirmação nas redes sociais, tribunais dedicados às relações trabalhistas existem desde o século XIX na Alemanha e Nova Zelândia, e hoje são parte do cotidiano da Inglaterra, Bélgica, México, Israel, Chile, entre muitos outros. Mas a quantidade de processos trabalhistas no Brasil é, de fato,: em 2016, quase 7 milhões de ações trabalhistas tramitavam na Justiça do Trabalho entre processos novos e remanescentes dos anos anteriores.
A Modernização Trabalhista e a Lei de Terceirização, ambas sancionadas em 2017, simplificaram e trouxeram maior clareza para a área, o que contribuiu para a pacificação da interpretação de temas controversos e a diminuição da litigiosidade. O número de novos casos nas varas do trabalho caiu mais de 45%, de acordo com a Coordenação de Estatística do TST. Na esteira dessa legislação, outras ações importantes foram tomadas, como o Programa Permanente de Consolidação, Simplificação e Desburocratização de Normas Trabalhistas Infralegais.
As medidas são fundamentais para aumentar a segurança do empreendedor e do investidor na criação de postos de trabalho, uma vez que é grande o receio que a empresa busque observar detalhadamente os textos legais e as jurisprudências sobre determinado tema, pois as interpretações da legislação podem ser dissonantes entre os juízes e tribunais – e até mesmo mudar repentinamente em um mesmo tribunal. Segundo estimativa de Armando Castelar, professor da Fundação Getúlio Vargas (FGV – 2018), a insegurança jurídica reduz o potencial de crescimento anual do Brasil entre 0,2% e 0,5%.
Mas se há motivos para comemorar, também é preciso avançar em algumas frentes. A começar pelas divergências entre a legislação previdenciária e a trabalhista. Por exemplo, a CLT prevê, em seu art. 169, a notificação de doenças profissionais, ou de doenças produzidas (ou suspeitas de terem sido produzidas) em decorrência de condições especiais do trabalho, conforme instruções do Ministério do Trabalho e Previdência. No entanto, esse artigo, além de vago, não se harmoniza com os prazos estabelecidos no artigo 22 da Lei 8.213/91, que trata de prazos para notificação, pelas empresas à Previdência, de acidente do trabalho. Esse descompasso entre as legislações trabalhista e previdenciária gera uma série de dúvidas nas empresas, sujeitando-as a autuações tanto da esfera trabalhista como da previdenciária, ainda que ajam de boa-fé, tentando cumprir todas as obrigações diligentemente.
É possível identificar esse desalinhamento também, por exemplo, no que importa à elaboração de programas, laudos, perícias e ao preenchimento do perfil profissiográfico previdenciário (PPP), porque a legislação não é clara em estabelecer exatamente e de maneira padronizada, por exemplo, o tipo da informação necessária nos documentos pertinentes, o que revela mais um problema, fruto do descompasso das legislações previdenciária e trabalhista.
Com isso, cria-se um palco propício aos conflitos no sistema de concessão dos benefícios. Outro problema, esse vinculado tanto à falta de harmonia, quanto à lacuna entre os sistemas trabalhista e previdenciário, é o chamado “limbo previdenciário”, relativa a empregados afastados. O “limbo” ocorre quando o INSS determina o retorno de empregado afastado ao trabalho, mas a perícia médica da empresa constata que ele não tem condições de retornar, inclusive pelo risco de agravar a própria situação. Nesse caso, é comum que o trabalhador não receba os benefícios previdenciários (pois o INSS não reconhece a continuidade dos motivos que o levaram ao afastamento ou a existência de novos motivos) e, como não está trabalhando (pois não pode trabalhar por atenção da empresa a sua aptidão física), não receba salário. Com isso, inicia-se batalha judicial em que, por vezes, as empresas são obrigadas a não só pagar salários (embora tenham que manter o trabalhador afastado), como até a indenizá-lo por danos morais, o que caracteriza tal situação como inteiramente paradoxal.
A prioridade para seguir melhorando o índice de segurança jurídica esta área é modernizar a legislação previdenciária de modo a torná-la harmônica com a trabalhista, especialmente no que importa a afastamentos previdenciários, o que gera altos custos para a sociedade e, de maneira particular, para as empresas. Já seria um grande avanço organizar um portal nacional eletrônico, com caráter oficial, a exemplo do planalto.gov.br, com um grande compilado de normas infralegais trabalhistas e previdenciárias, de modo que se saiba, com facilidade, exatamente quais normas estão e quais não estão em vigor.
Outra forma de se reduzir a litigiosidade é achar outros fóruns para a solução de conflitos extrajudiciais e consensuais. A modernização de 2017 deu ótimo resultado, dando mais alternativas para empresas e trabalhadores resolverem eventuais desacordos. Ainda mais importante é dar fim à possibilidade de diferentes órgãos públicos de fiscalização buscar a aplicação de sanções cumulativas contra a empresa por um mesmo fato, causando-lhe ônus duplicados. Isso ocorre, por exemplo, com o Termo de Ajustamento de Conduta (TAC), firmado com o Ministério Público do Trabalho, e o Termo de Compromisso, celebrado com a Secretaria de Trabalho do Ministério do Trabalho e Previdência.
Em resumo, é preciso, na esteira da Modernização Trabalhista de 2017, assegurar a melhora na segurança jurídica no Brasil em relações de trabalho, o que trará melhorias para o ambiente de negócios. Dessa forma, aumenta-se o potencial para a geração de empregos, renda e produtividade, com efeitos positivos para a indústria e para o país.
Os 3 poderes e órgãos de controle
A falta de segurança jurídica não é um problema, mas um termo guarda-chuva que abarca inúmeras instabilidades na criação e aplicação de regras de toda a natureza que dificultam a tomada de decisões de longo prazo por parte de empresários e investidores. É papel do Poder Público garantir o cumprimento do Direito pela sociedade, mas ele só pode realizar a tarefa se tiver legitimidade e dê o exemplo, exigindo e oferecendo segurança jurídica. Cabe ao Estado, portanto, evitar ser um agente de insegurança.
O assunto é de suma importância e não pode ser deixado ao sabor dos ventos eleitorais. A promoção da segurança jurídica é uma pauta suprapartidária que envolve o funcionamento do Estado, a boa atuação dos agentes econômicos e principalmente a própria subsistência das famílias.
O Poder Público nem sempre atua de acordo com esse princípio básico. Só há segurança quando os efeitos jurídicos dos atos podem ser minimamente previsíveis – i.e., quando se pode saber de antemão o que poderá acontecer. Se as normas são multiplicadas e pulverizadas, ou se seu conteúdo varia no momento de sua aplicação – por parte do Executivo, do Judiciário ou de órgãos de controle, como os Tribunais de Contas e o Ministério Público –,o próprio núcleo do princípio do Estado de Direito é atingido, expresso no ideal do primado do Direito (rule of law).
A complexidade do sistema normativo também contribui para uma sensação de insegurança. Quando até abrir empresas e pagar tributos é algo difícil, verifica-se uma prejudicial inversão: a atividade-fim dos agentes econômicos fica em segundo plano, porque as preocupações burocráticas exigem muito de sua atenção. A palavra de ordem deve ser a simplificação de procedimentos e exigências – não para dispensar cautelas necessárias e relevantes, mas para garantir que as finalidades pertinentes sejam atingidas da melhor forma possível, sem impor sacrifícios dispensáveis aos agentes econômicos. E cada braço do Estado tem a sua parcela de responsabilidade em melhorar a segurança jurídica – e o ambiente de negócios – no Brasil.
PODER EXECUTIVO
Para quem não presta muita atenção ao assunto, a percepção prevalecente é a de que a insegurança jurídica é oriunda principalmente dos tribunais, seja pela morosidade, seja pela falta de consistência nas decisões país afora. Nada mais falso. A ideia de que o Executivo apenas executa o que vem do Legislativo não resiste mesmo a uma análise superficial.
O Poder Executivo tem inúmeras maneiras de assegurar, ou jogar por terra, a segurança jurídica no país. Afinal de contas, passam por ele desde a realização de licitações e privatizações até a edição de normas por meio de agências reguladoras, passando pela execução de políticas públicas e pela sanção de leis oriundas do Legislativo. E, em meio a isso tudo, há sempre a possibilidade de casos de corrupção.
Nessas esferas de competências, há diversos gargalos causadores de insegurança jurídica oriundos do Executivo, que podem ser reunidos em cinco grupos:
Incerteza na edição de normas
Na linguagem política, diz-se que prefeitos, governadores e presidentes detêm o poder da caneta. Mais do que sancionar ou não as leis aprovadas pelo Legislativo, os detentores de mandato majoritário (e a máquina administrativa que comandam) também atuam no plano da criação normativa ao editar decretos e atos administrativos, regulamentar a aplicação de uma lei, ou mesmo regular diretamente determinados temas de envergadura constitucional (isto é, sem lei anterior) . Nomeiam as lideranças das agências reguladoras, e ainda estão à frente de toda uma atividade burocrática se desenvolve conforme atos normativos secundários, como portarias e ordens de serviço.
A principal reclamação por parte do empresariado diz respeito à falta de transparência das normas editadas. Se as regras não são de fácil conhecimento e consulta de todos os agentes afetados por ela, cria-se um problema de insegurança jurídica. E, em pleno 2023, ainda é comum que braços do poder Executivo criem ou alterem normas sem dar ao ato a devida publicidade, considerando suficiente a simples publicação em diário oficial ou jornais locais.
É preciso, portanto, dar divulgação a esses atos que impactam na esfera dos cidadãos também pela internet, de forma completa e mais facilmente acessível. Ademais, as inúmeras normas administrativas devem passar por um processo de consolidação e atualização, para que fique claro para as pessoas o conjunto de obrigações e direitos que elas têm. Todas essas dificuldades – que integram o “Custo Brasil” – tornam mais caro e complexo empreender no país. Se o objetivo é a clareza, soterrar os agentes econômicos em normas inacessíveis, cujo teor não se conhece de antemão, é seguramente algo a ser evitado.
Tampouco ajuda a avalanche de regras que são criadas todos os dias no país. Um levantamento feito pelo Instituto Brasileiro de Planejamento e Tributação (IBPT) revela que a quantidade de normas editadas no Brasil aumentou de 3,3 milhões em 2003 para 5,7 milhões em 2017 – um acréscimo de 73%. Ninguém consegue acompanhar tanta mudança.
Em 2019, o presidente Jair Bolsonaro assinou o decreto 10.139/2019 que determinou a revisão dos atos normativos de todos os órgãos e entidades da Administração Pública Federal direta, além de autarquias e fundações. Também ordenou uma ampla revisão de todas as normas hierarquicamente inferiores a decretos, com o objetivo de atualizar, simplificar e consolidar os atos infralegais. Ainda mais importante, o decreto proibiu a revogação tácita de regras, ou seja, exigiu que sejam expressamente listadas as normas extintas ou tornadas sem valor. Foi o fim da expressão “revogam-se as disposições em contrário”, que deixam os agentes sem saber quais as disposições foram de fato revogadas e dá margem a uma enormidade de processos administrativos e judiciais.
Por fim, o decreto determinou a revogação de normas cujos efeitos tenham-se exaurido no tempo, que foi apelidado de “revisaço”. Graças a isso, desde março de 2022 a Administração Pública não pode aplicar multa ou indeferir requerimentos com base em norma não consolidada. Nesse processo, foram identificados 67.250 atos normativos, e quase 14 mil deles foram revogados/extintos. Foi um passo importante para a simplificação das regras no país, o que diminui o litígio e aumenta a segurança jurídica.
Também em 2019, foram incluídos 10 artigos à Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (LINDB), com o intuito de aumentar a segurança jurídica. Ficou determinado que nas esferas administrativa, controladora e judicial, não se decidirá com base em valores jurídicos abstratos, sem que sejam consideradas as consequências práticas da decisão; que a decisão que, nas esferas administrativa, controladora ou judicial, decretar a invalidação de ato, contrato, ajuste, processo ou norma administrativa deverá indicar, de modo expresso, suas consequências jurídicas e administrativas; e que a decisão administrativa, controladora ou judicial que estabelecer interpretação ou orientação nova sobre norma de conteúdo indeterminado, impondo novo dever ou novo condicionamento de direito, deverá prever regime de transição, quando indispensável para que o novo dever ou condicionamento de direito seja cumprido de modo proporcional, equânime e eficiente e sem prejuízo aos interesses gerais.
O difícil é transformar a intenção positiva das leis em uma cultura consolidada na Administração Pública.
Além disso, como o Executivo também aplica a lei, é fundamental que o faça com uma certa uniformidade com as demais interpretações sobre a mesma norma, para garantir previsibilidade e capacidade de antecipação das consequências resultantes da prática de determinados atos. Em alguma medida, a LINDB tenta enfrentar esse ponto, ao estabelecer que a revisão quanto à validade de ato, contrato, ajuste, processo ou norma administrativa, cuja produção já houver sido completada, levará em conta as orientações gerais da época, sendo vedado que, com base em mudança posterior de orientação geral, declarem-se inválidas situações plenamente constituídas.
Essa cautela também é objeto de explícita menção pela legislação federal. A interpretação oficial, portanto, torna-se obrigatória para o próprio Poder Público, sendo vedado aos órgãos que compõem a Administração Pública conferir, com base em novas interpretações, efeitos retroativos a situações consolidadas.
Como aprimoramento, pode-se apontar a necessidade de expressa incorporação dessa exigência pelos estados e municípios.
No que diz respeito aos procedimentos licitatórios, é urgente que o Poder Público, nos casos em que se exija licenciamento ambiental, providencie a licença ambiental prévia, com aprovação da viabilidade do empreendimento, antes do início do processo de seleção de licitantes. A nova lei de licitações estabelece que o edital poderá prever como responsabilidade do contratado a obtenção do licenciamento ambiental. O Executivo pode converter essa faculdade em obrigação para os órgãos da Administração Pública federal. Com essas medidas simples, que podem ser adotadas diretamente pelo Poder Executivo, reduzem-se os riscos de que obras fiquem paradas por anos, até que haja a emissão das licenças necessárias.
Descontinuidade das políticas públicas
Quando o eleitorado promove uma mudança no poder, é porque entende que o país precisa de uma correção de rumo. Nada mais natural. É muito importante, no entanto, que políticas de longo prazo sejam preservadas, ou ao menos que passem por uma transição bem estudada para uma nova programa que busque resolver aquele mesmo problema. O que vemos no Brasil é a interrupção de projetos e mesmo de obras o tempo todo, o que desperdiça dinheiro público, diminui a eficácia de bons programas, e causa uma enorme insegurança jurídica.
O problema pode ser remediado, mediante a inclusão de análise de impacto e custo – benefício em qualquer processo que envolva a criação, modificação ou a interrupção de políticas públicas.
A Lei de Liberdade Econômica, aprovada em 2019, buscou dar uma solução ao transtorno ao exigir que qualquer proposta de edição e de alteração de atos normativos de interesse geral passe por uma análise de impacto regulatório.
Para que o mecanismo seja eficaz, no entanto, é preciso que esses estudos sejam baseados em dados objetivos e mensuráveis. Análises de Impacto Regulatório (AIRs) feitas em cima em especulações ou intuições perdem o seu propósito. Mas o que mais atrapalha é que a regulamentação das AIRs não as torna obrigatórias, na medida em que não há qualquer consequência ou sanção caso elas sejam ignoradas, ou nem mesmo feitas.
Protelação para cumprimento da orientação dos tribunais
Um estudo realizado pelo Conselho Nacional de Justiça em 2012 mostrou que o setor público federal ocupa a primeira posição no ranking de maiores litigantes do país. Seus semelhantes nas esferas estadual e municipal estão logo em seguida, respectivamente em terceiro e quarto lugares (os bancos ficaram em segundo). A Administração Pública respondeu por 22,77% de todos os processos do país. É legítimo que qualquer um procure a Justiça para defender seus direitos e recorra de decisões contrárias a si, mas fica evidente em muitos casos que a busca pelos tribunais é uma estratégia para protelar o cumprimento de suas obrigações determinadas em instâncias inferiores.
Enquanto o servidor público adia os seus compromissos, o cidadão e os empresários arcam com os custos pecuniários e econômicos de esperar ou, muitas vezes, rediscutir o que já fora resolvido.
Um caso clássico dessa situação é a recorrência do calote aos precatórios, decorrente da sucessão de emendas constitucionais de parcelamento. De nada valem as limitações ao poder do Estado, se as sentenças judiciais não forem cumpridas. Dessa forma, é preciso que se priorize a regularização do regime de precatórios e que se cumpra o regime definido em lei.
Redução da discricionariedade
As leis e normas nem sempre entram na minúcia de como devem ser aplicadas. É natural que seja assim, para permitir que a autoridade competente tenha flexibilidade para lidar com os problemas do dia-a-dia, impossíveis de serem previstos de antemão. A esse poder do agente público se dá o nome de discricionariedade.
O lado ruim da discricionariedade, porém, é a margem que ela dá à inconsistência na regulação e fiscalização da atividade econômica, já que a decisão de um agente pode ser oposta à de outro. Pior ainda, é nesse vácuo de regulamentação que graceja a corrupção.
O poder do Executivo é limitado pela lei. Quanto maior a limitação descrita na legislação, portanto, mais espaço tem o Judiciário para controlar a atuação das autoridades, ou seja, mais forte a segurança jurídica.
O escopo da discricionariedade é mais sensível nas agências reguladoras, que têm um enorme poder de edição de normas e fiscalização. A atribuição dessas competências se justifica por razões técnicas e institucionais, mas não raro se vê as autoridades usarem dessa legitimidade para contrariar ou refazer as decisões que constam das leis. E o empresário fica sem saber a que regra obedecer.
E há ainda o problema do tempo. Muitas vezes o Executivo não age, ou não responde quando provocado pelos agentes econômicos, seja em matéria de concessão de permissões e autorizações, seja em casos de regulamentação de leis. É o que se chama “silêncio administrativo”.
A Lei 13.874/2019 passou a estabelecer que o silêncio administrativo, após determinado prazo, significa a aprovação tácita para todos os efeitos nas solicitações de atos públicos de liberação da atividade econômica. No entanto, por força do art. 1º, §5º da Lei, a regra do silêncio administrativo positivo não se aplica aos Estados, Distrito Federal e Municípios, o que pode prejudicar a eficácia da previsão.
Proteção das agências reguladoras
As agências reguladoras são órgãos fundamentais para blindar decisões técnicas de pressões políticas. É fundamental que sua independência seja protegida e fortalecida. O caminho é preencher vagas abertas em períodos razoáveis de tempo, notadamente nos cargos de liderança, e evitar que as agências fiquem sem quórum para decidir; nomear dirigentes com expertise no campo de atuação das agências; e respeitar relatórios técnicos.
PODER LEGISLATIVO
É função primordial das Casas Legislativas criar e alterar normas, portanto é fundamental que tenham um especial cuidado com a segurança jurídica, o que significa fazer alterações de forma transparente, previsível e com transições suaves.
Um grande inimigo da segurança jurídica é o desrespeito às etapas de tramitação de projetos de lei. O uso estratégico do elemento-surpresa não pode ser tratado como normal na política. A eliminação de incertezas no processo legislativo, além de aumentar a percepção de segurança jurídica, ao permitir que a sociedade acompanhe os trabalhos e possa se organizar para influenciar os debates, reduz questionamentos perante o Poder Judiciário, que não deveria ser um participante corriqueiro da ação política.
Outra forma de se prevenir a judicialização do processo legislativo é a inclusão de uma etapa formal dedicada à análise do impacto econômico que os projetos podem ter, caso aprovados. Com as alterações promovidas na Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro pela Lei 13.665/2018, as esferas judicial, administrativa e controladora passaram a ter a obrigação explícita de considerar as consequências práticas das decisões que pretendem tomar, e não há explicação razoável para a exclusão do Congresso desta regra.
Por fim, o Brasil sofre de um mal comum em países de porte continental: os conflitos entre normas federais e regras estaduais e/ou municipais. O Congresso Nacional tem um papel da maior relevância aqui, pois tem o poder de editar normas gerais em temas de competência legislativa concorrente, da aprovar leis complementares relativas à cooperação entre os entes federativos. O Legislativo pode, portanto, ser o agente de harmonização que os agentes econômicos esperam.
PODER JUDICIÁRIO
A morosidade da Justiça e a falta de consistência nas decisões para casos similares são uma chaga brasileira. Não há como se falar em estabilidade e confiança no poder público se a interpretação judicial flutuar ao sabor das preferências pessoais dos magistrados. Mesmo que a legislação permaneça vigente por décadas.
As mudanças no Código de Processo Civil de 2015, que deu prestígio aos precedentes judiciais, foi um passo na direção correta. No entanto, não se pode parar na fixação de teses jurídicas. Para que o sistema funcione, é preciso que elas sejam claras e estáveis. Nessa linha, o Código exige que se dê aos precedentes ampla publicidade e autoriza que sua revisão envolva a participação de pessoas ou entidades e a realização de audiências públicas, para que diferentes opiniões sejam ouvidas, a exemplo do que ocorre nas comissões legislativas e nas agências reguladoras.
Trata-se de uma questão cultural: os tribunais, em especial o Supremo Tribunal Federal e os Tribunais Superiores, têm o dever de cuidar de seus precedentes e evitar, tanto quanto possível, criar exceções ou alterar orientações já firmadas.
É preciso que os magistrados entendam que sua função institucional não é só realizar a justiça do caso concreto. Como peças fundamentais para a operação da segurança jurídica, eles devem servir mais como órgãos de aplicação do direito – e este, por definição, nem sempre é justo aos olhos de quem deve aplicá-lo. Os tribunais precisam ser referências de segurança, ao vincular a solução dos litígios a critérios objetivos, de conhecimento público, em lugar das opiniões pessoais de quem se encarregará de resolver a pendência.
A ideia elementar é que cidadãos e agentes econômicos não devem ser surpreendidos por uma nova norma, decorra ela de uma lei, de uma nova interpretação ou da intervenção de outro Poder, como o Judiciário.
É preciso que o Judiciário esteja atento à repercussão econômica das suas manifestações. Isso implica não apenas o cuidado com os efeitos sistêmicos das decisões, mas também uma maior deferência às competências dos outros agentes e órgãos envolvidos. Essa preocupação também preserva a autoridade do Poder Judiciário na interpretação do direito vigente, sem incongruências técnicas, suposições infundadas ou efeitos sistêmicos indesejados e inesperados. Tais cautelas mostram-se especialmente relevantes, quando da avaliação de matérias técnicas complexas.
Ministério Público e Tribunais de Contas
As duas instituições com maior poder fiscalizador têm um papel decisivo na promoção da segurança jurídica. Enquanto o Tribunal de Contas, em resumo, controla a gestão do patrimônio público, ao Ministério Público compete ajuizar ações judiciais e presidir e acompanhar inquéritos em casos criminais ou situações que envolvam relevante interesse social. São, portanto, órgãos de fundamental importância para a estabilidade.
Mas é preciso cuidado para que a fiscalização não seja, ela própria, uma fonte de instabilidade. Isso acontece, por exemplo, quando a sobreposição de órgãos de controle – além de deixar os particulares expostos à responsabilização por todos os lados –,traduz-se em orientações diversas sobre o que deve ser feito. Assim, uma pessoa ou uma empresa pode ser punida ou obrigada a pagar elevadas indenizações, mesmo tendo feito o que um órgão entendia como devido, apenas porque outro, por acaso, resolveu discordar dessa avaliação.
Um exemplo que tem aparecido muito no noticiário envolve os chamados “acordos de leniência”. A possibilidade de redução de penas por meio de confissão de culpa e colaboração com as autoridades é um importante incentivo para que o setor privado investigue a conduta dos seus próprios agentes e tome medidas para levar ao conhecimento do Poder Público os eventuais ilícitos praticados. No entanto, a multiplicidade de órgãos de controle torna esse cenário inseguro: embora a lei dê à Controladoria-Geral da União a competência de celebrar esses acordos, também o Ministério Público se considera habilitado para tanto. Além disso, o Tribunal de Contas da União editou ato próprio, no qual exige que lhe sejam previamente submetidos os acordos firmados pela CGU. Ou seja: não se sabe bem em que medida cada um pode ou deve intervir neste tema.
Outro fator de instabilidade é a constante ingerência desses órgãos em políticas públicas, questionando e impedindo a continuidade das ações determinadas pelo Executivo e pelo Legislativo. Na mesma linha, é uma percepção corrente a de que o TCU não possui entendimento constante, ao permitir aos gestores públicos anteciparem os limites para o exercício da sua discricionariedade e os riscos de responsabilização perante o órgão.
Todos perdem quando os meios de controle são ineficientes, mas ninguém ganha quando eles se sobrepõem, a ponto de gerar incertezas e confusões. É preciso, portanto, harmonizar e, em alguma medida, unificar a atuação dessas instituições. Um caminho é a centralização do combate à corrupção em uma agência especializada, como fazem Hong Kong e Cingapura. Mas são países muito pequenos, e a monopolização carrega seus próprios riscos. O mais sensato seria adotar uma cultura em que os diferentes órgãos de controle respeitem as orientações uns dos outros.
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