O futuro do trabalho – Desafios da formação profissional na era da tecnologia
por Da RedaçãoAtualizado em 30 Maio 2022, 14h42 - Publicado em
27 Maio 2022
15h26
Apresentação
Em uma das previsões mais marcantes que faz em seu livro Sapiens, o escritor israelense Yuval Noah Harari imagina um mundo em que a inteligência artificial avança de tal forma que torna obsoleto o trabalho de boa parte da humanidade. O mais alarmante nesse futuro possível é quanto ele está próximo da realidade atual.
Até 2025, o Brasil precisará qualificar 9,6 milhões de pessoas em ocupações industriais, sendo 2 milhões em formação inicial – para repor inativos e preencher novas vagas – e 7,6 milhões em formação continuada, para trabalhadores que precisam se atualizar.
Isso significa que 79% da necessidade de formação nos próximos quatro anos será em aperfeiçoamento. No mundo, a Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OECD) estima que 1.1 bilhão de postos de trabalho estão sujeitos a serem radicalmente transformados pela evolução tecnológica na próxima década.
Tal cenário coloca em xeque o conceito de “conclusão dos estudos” e inaugura o modelo de aprendizado ao longo da vida (lifelong learning, em inglês). Assim como tem acontecido em diversos outros países, é urgente e fundamental o Brasil invista mais em capital humano por meio da educação, especialmente de forma continuada.
Sem isso, o país fica para trás no contexto internacional e, pior, corre o risco de lançar no desemprego milhões de brasileiros que não tem qualificação suficiente para encarar as mudanças que afetam o mundo do trabalho.
Aprendizado por toda a vida
Por Robson Braga de Andrade*
O profissional que parar de estudar vai ficar para trás. Entramos em uma era em que mais ninguém poderá dizer: “Concluí os estudos”. Agora, o aprendizado é ao longo da vida (lifelong learning, no termo em inglês). Estudo do Fórum Econômico Mundial indica que, na próxima década, mais de um bilhão de empregos, em todo o mundo, serão impactados pelas novas tecnologias. No Brasil, não é diferente. Por isso, é urgente e fundamental que nosso país invista mais em capital humano, especialmente de forma continuada, no contexto da Quarta Revolução Industrial (também conhecida como Indústria 4.0), que tem como base a digitalização e a automação de processos.
O Mapa do Trabalho Industrial 2022-2025 – estudo realizado pelo Observatório Nacional da Indústria para identificar a demanda futura por mão de obra e orientar a formação profissional de base industrial no Brasil – mostra que, até 2025, o país precisará qualificar 9,6 milhões de pessoas em ocupações industriais. Desse total, dois milhões são referentes a formação inicial, para repor inativos e preencher novas vagas; e 7,6 milhões, a formação continuada de trabalhadores que já estão na ativa e precisam se atualizar. Ou seja: 79% da necessidade, nos próximos quatro anos, será em requalificação e aperfeiçoamento.
“Capacitar profissionais é um desafio de todos: governos, iniciativa privada, terceiro setor e sociedade civil.”
A boa notícia é que essa formação, alinhada às mudanças tecnológicas e às necessidades do mercado de trabalho, está cada vez mais acessível. As empresas já reconhecem a importância de um quadro de pessoal atualizado para lidar com novas ferramentas, sistemas, funções, processos e competências. Nosso país já conta com instituições de educação e de apoio à inovação e tecnologia reconhecidas pela excelência e abrangência territorial, com destaque para o Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial (SENAI) e o Instituto Euvaldo Lodi (IEL). Ambas têm acompanhado as mudanças e proporcionado cursos, estudos e consultorias aos profissionais e às empresas brasileiras para que se mantenham inovadores e competitivos.
Capacitar esse contingente é um desafio de todos: governos, iniciativa privada, terceiro setor e sociedade civil. Para estimular a mudança nos sistemas de educação profissional e preparar os países para o futuro do trabalho, o Fórum Econômico Mundial lançou a Aceleradora de Competências (Closing the Skills Gap Accelerator, no original em inglês). O objetivo do programa é qualificar um bilhão de pessoas em todo o mundo em oito anos, especialmente para setores de alta tecnologia, como o automotivo, o de energia e o de biotecnologia. Os países poderão se preparar para as demandas do mercado de trabalho e possibilitar melhores empregos, educação e habilidades para seus trabalhadores por meio de uma plataforma de colaboração público-privada.
No Brasil, o SENAI coordena a força-tarefa, em parceria com o governo federal e a filial brasileira da Microsoft. A meta é qualificar 4,2 milhões de trabalhadores em novas tecnologias até 2025. Para isso, o SENAI vai potencializar o trabalho que já realiza com a formação profissional, que alcança mais de 2 milhões de alunos por ano. A instituição trará para a iniciativa o maior número de empresas brasileiras interessadas em apoiar a qualificação, por meio de compartilhamento de informações e experiências e apoio no desenvolvimento de novos cursos.
O Mapa do Trabalho Industrial aponta que, entre os 7,6 milhões de brasileiros que precisarão passar por requalificação, as áreas com maior demanda são as seguintes: ocupações transversais (que permitem ao profissional atuar em diferentes áreas), metalmecânica, logística e transporte, construção, alimentos e bebidas, têxtil e vestuário, tecnologia da informação, eletroeletrônica, gestão e automotiva. Precisamos preparar os trabalhadores para novas profissões e para ocupar as vagas que surgirem. Isto, com certeza, contribuirá enormemente para aumentar a empregabilidade, sobretudo dos jovens, e para reduzir o desemprego, flagelo social que aflige quase 12 milhões de pessoas no Brasil.
*Robson Braga de Andrade, empresário e presidente da Confederação Nacional da Indústria (CNI)
Um desafio gigantesco
O mercado de trabalho passa por uma transformação, ocasionada principalmente pelo uso de novas tecnologias e mudanças na cadeia produtiva. Por isso, cada vez mais, o Brasil precisará investir em aperfeiçoamento e requalificação para que os profissionais estejam atualizados.
Até 2025, o Brasil precisará qualificar 9,6 milhões de pessoas em ocupações industriais, sendo 2 milhões em formação inicial – para repor inativos e preencher novas vagas – e 7,6 milhões em formação continuada, para trabalhadores que precisam se atualizar. Isso significa que 79% da necessidade de formação nos próximos quatro anos será em aperfeiçoamento.
Essa é a principal conclusão do Mapa do Trabalho Industrial 2022-2025, estudo realizado pelo Observatório Nacional da Indústria para identificar demandas futuras por mão de obra e orientar a formação profissional de base industrial no país.
Em quatro anos, devem ser criadas 497 000 novas vagas formais em ocupações industriais, saltando de 12,3 milhões para 12,8 milhões de empregos formais. Essas ocupações requerem conhecimentos tipicamente relacionados à produção industrial, mas estão presentes em outros setores da economia. O crescimento da demanda por trabalhadores por nível de qualificação será de:
Em volume de vagas, ainda prevalecem as ocupações de nível de qualificação, que respondem por 74% do emprego industrial. São posições dedicadas principalmente a jovens e profissionais que buscam desenvolver novas competências e capacidades profissionais por meio de cursos que não demandam um nível de escolaridade específico e ao final, o aluno recebe um certificado de conclusão.
Contudo, chama atenção o crescimento das ocupações de nível técnico e superior, que deve seguir como uma tendência. Isso ocorre por conta das mudanças organizacionais e tecnológicas, que fazem com que as empresas busquem profissionais de maior nível de formação, que saibam executar tarefas e resolver problemas mais complexos.
As áreas com maior demanda por formação são: Transversais, Metalmecânica, Construção, Logística e Transporte, e Alimentos e bebidas. As ocupações transversais são aquelas que permitem ao profissional atuar em diferentes áreas, como técnico em Segurança do Trabalho, técnico de Apoio em Pesquisa e Desenvolvimento e profissionais da Metrologia, por exemplo.
O SENAI é a principal instituição formadora em ocupações industriais no país. Para subsidiar a oferta de cursos, em sintonia com as demandas por mão de obra do setor produtivo, o Sistema Indústria desenvolveu a metodologia do Mapa do Trabalho Industrial, referência no Brasil. O gerente-executivo do Observatório Nacional da Indústria, Márcio Guerra, explica que o estudo é uma projeção do emprego setorial que considera o contexto econômico, político e tecnológico. Um dos diferenciais é a projeção da demanda por formação a partir do emprego estimado para os próximos anos.
“Para esse cálculo, são levadas em conta as estimativas das taxas de difusão das novas tecnologias nas empresas e das mudanças organizacionais nas cadeias produtivas, que orientam o cálculo da demanda por aperfeiçoamento, e uma análise da trajetória ocupacional dos trabalhadores no mercado de trabalho formal, que subsidiam o cálculo da formação inicial. Um trabalho de inteligência de dados e prospectiva que deve subsidiar ações e políticas de emprego e educação profissional”, explica Guerra.
Vale observar que, devido à lenta recuperação na abertura de novas vagas formais, a formação inicial servirá, principalmente, para repor mão de obra inativa. Por isso, as áreas com maior demanda são aquelas que já respondem pelo maior volume de vagas.
O diretor-geral do Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial (SENAI), Rafael Lucchesi, reconhece que a recuperação do mercado formal de trabalho será lenta em razão da retomada gradual das atividades econômicas no pós-pandemia. Para melhorar o nível e a qualidade do emprego e contribuir para o progresso tecnológico e aumento da produtividade nas empresas, será indispensável priorizar o aperfeiçoamento de quem está empregado e de quem busca novas oportunidades.
“Estamos diante de um cenário de baixo crescimento do PIB (Produto Interno Bruto), reformas estruturais paradas, como a tributária, eleições e altos índices de desemprego e informalidade. Nesse contexto, o Mapa surge para que possamos entender as transformações do mercado de trabalho e incentivar as pessoas a buscarem qualificação onde haverá emprego. E essa qualificação será recorrente ao longo da trajetória profissional. Quem parar de estudar, vai ficar para trás”, avalia.
Sobre a estimativa de criação de 497 mil novos postos em ocupações industriais, considerando um cenário de baixa capacidade de geração de empregos, algumas ocupações merecem destaque pela abertura de novas vagas.
“É preciso educar os jovens e requalificar os adultos”
Entrevista com Gustavo Leal, diretor de operações do SENAI Nacional
Existe uma lógica básica no mercado em relação às novas tecnologias. A inovação técnica, ao mesmo tempo que rompe cenários pré-estabelecidos, contribui para o aumento da produtividade. Portanto, há potencialmente maiores investimentos na economia e o resultado é a geração de novos empregos, em novos campos de trabalho. Porém, nesse ínterim, um fator fundamental não pode ser esquecido. A velocidade do impacto tecnológico exige, mais do que nunca, pessoas em constante qualificação profissional. Gestão de dados em larga escala (Big Data), ramificações da Inteligência Artificial (como a técnica de Machine Learning), computação em nuvem (Cloud), são alguns exemplos do que foi entendido como inovação em meados da década de 2010 e hoje é presente no dia a dia e pressiona diferentes profissionais e indústrias.
Nesse cenário, o conceito de contínuo aperfeiçoamento profissional ganha força. Para o diretor de operações do SENAI Nacional, Gustavo Leal, a ideia de “concluir os estudos” tornou-se ultrapassada a educação continuada com resultados eficazes é um desafio mundial. Atrasado nos indicadores educacionais, a solução de curto e médio prazo para o Brasil é criar atalhos. Para Leal, a utilização das tecnologias digitais no campo educacional ajuda na acessibilidade da formação contínua, portanto, é urgente construir um planejamento educacional estruturado com base tecnológica, em larga escala. Confira a entrevista de Leal ao jornalista de VEJA, Renan Monteiro.
O Brasil, como diversos outros países, tem um grande contingente de profissionais que eventualmente precisam de requalificação. Como se dá esse esforço atualmente no setor industrial? O mundo hoje passa por mudanças tecnológicas profundas, em diversas áreas, de forma quase simultânea. Nos processos industriais, há mudanças com a descarbonização da economia (redução da emissão de gases de efeito estufa), com os processos de base biológica ou com a matriz energética, pois estamos ampliando muito a questão das energias renováveis. Indústrias como eletromobilidade serão muito fortes, pois daqui há dez anos praticamente todos os carros serão elétricos. Isso tudo, de forma conjunta, traz profundos impactos para o mundo do trabalho. As pessoas precisam desenvolver novas competências para conviver com essas mudanças. As mudanças sempre fizeram parte da vida humana. O que difere hoje é a rapidez. Antigamente, as mudanças ocorriam de geração em geração, as escolas tinham tempo de formar a nova geração. As pessoas que estavam no mercado de trabalho tinham tempo de aposentadoria, até a nova tecnologia. Hoje, com as tecnologias atuais, existe um profundo desafio em preparar a população do país para essa nova realidade. Não se trata apenas de qualificar ou educar melhor os jovens, mas principalmente de requalificar os adultos. É preciso um esforço gigantesco com cursos e capacitações para que as pessoas se mantenham ativas no mercado de trabalho. No setor industrial, a tendência de eletromóveis, por exemplo, traz outro perfil de demanda, em termos de manutenção. Isso muda profundamente o setor de oficinas mecânicas, com milhares de empresas e trabalhadores. Então, nós temos que dar às pessoas conhecimentos básicos do mundo digital. Como é trabalhar no chão de fábrica e indústrias, com máquinas em nível de conectividade umas com as outras e com o sistema gestão das empresas? Os usuários dessas unidades precisarão interpretar dados, com informações em tempo real, e problemas muito mais complexos. Tudo isso leva a uma necessidade de educação intensiva. Ter a população educada e qualificada vai ser um fator determinante, inclusive para o investimentos de novas plantas industriais. As empresas vão buscar investir onde efetivamente haja pessoal qualificado.
Pensando nesse contexto da digitalização no mercado de trabalho, há a questão de profissões que estão na linha substituição, mas há surgimento de novas áreas e mesmo profissões, certo? No setor industrial, à medida que você vai digitalizando as linhas de produção, você também coloca pessoas para enviar informações da linha de produção para a nuvem, tratar os dados na nuvem, e devolver informações para quem está operando a fábrica. Esse é um ambiente 4.0. Esse mercado vai demandar pelo menos quatro perfis bastante diferentes. Nós os qualificamos como desenvolvedor, integrador, mantenedor, operador. O primeiro perfil é do desenvolvedor de novas aplicações para as fábricas; é o projetista, que vai pegar o algoritmo de inteligência artificial e vai testar novas aplicações no ambiente fabril; é o profissional com profundo conhecimento de programação, que vai trabalhar desenhando novas plantas industriais. O segundo perfil é do profissional que vai tratar com a integração dos vários tipos de máquinas que precisam estar conectadas; esse profissional vai ter conhecimento de mecatrônica, automação, software, hardware. O terceiro perfil é de quem vai trabalhar com a manutenção, que não é mais aquele mecânico, mas sim o profissional que vai entender de mecânica, elétrica, programação; um perfil que vai envolver um pouco de cada competência. E o último perfil é do profissional que opera a planta de processos, seja em uma fábrica de calçados, automóveis ou petroquímica; este profissional vai ser o usuário de toda essa nova manufatura montada, vai ter um perfil muito mais transversal e longe de ter uma atuação só setorial. Daí a importância da educação continuada, pois tudo é muito rápido e de forma imediata. Isso é um enorme desafio para as escolas e governos com políticas públicas que venham a atuar na qualificação das pessoas.
E como o senhor avalia que estão em contexto nacional, considerando os quatro tipos de profissionais qualificados que você mencionou? Todo mundo está se movendo no sentido de ampliar a oferta. No SENAI estamos ampliando a oferta de cursos das áreas das tecnologias digitais e temos parcerias com várias empresas. Atualmente, são mais de 2 milhões de alunos por ano. Agora, você vai ampliando e vão aparecendo novas necessidades. E isso vai ser muito mais dinâmico com a chegada dos sistemas 5G de transmissão de dados. E, um outro ponto, é a necessidade de levar esses conhecimentos para as pessoas e desmistificar ideias como “o computador vai tirar o emprego de todo mundo”. As novas tecnologias chegam e o mundo do trabalho, os empregos se modificam, mas nunca deixa de existir a necessidade da presença humana no mercado de trabalho.
As aulas remotas na pandemia foram desafiadoras, pois poucas universidades ou escolas aplicavam esse modelo antes da Covid-19. Na sua avaliação, a tendência é que esse modelo persista, especialmente na educação continuada? Os futuros dos processos educacionais são programas híbridos, em que grande parte do tempo os alunos estarão apresentando no contexto digital e outra parte presencialmente, quando necessário. E, para isso, é fundamental que os alunos tenham acesso à conectividade, dentro e fora da escola. É todo um esforço que precisa ser feito no sentido de incluir as pessoas. E o papel do professor vai ser muito diferente, este profissional acompanhar, levar desafios e trabalhar com os alunos na construção do conhecimento. Todos nós vamos precisar aprender como aprender permanentemente. As tecnologias digitais também devem ser utilizadas ns processo educacional. A qualificação vai ser facilitada quando as escolas também utilizarem as tecnologias digitais para educar de uma forma mais eficiente e produtiva. É o caso de, por exemplo, utilizar a inteligência artificial para identificar as necessidades do aluno, fornecer um conteúdo com atenção ao que ele precisa, fazer percursos customizados para cada aluno. Os alunos vão acessar conteúdo mais no ambiente digital do que na escola. Eles irão à escola para atividades de laboratório, máquinas, ou trabalhos em equipe para desenvolver as competências atitudinais. A educação vai ser muito mais híbrida. No caso do Brasil, que está atrasado na questão educacional, há benefício com isso.
Sites de compartilhamento de vídeos como Youtube e redes sociais são exemplos de acessibilidade no dia a dia. Porém, tem outro ponto, que é a qualidade e veracidade dos conteúdos. E, as instituições educacionais ainda não dominaram esse espaço, ainda não há uma presença forte com o conteúdo de qualidade que naturalmente elas dispõem, não? O desafio de fato é administrar bons conteúdos, bons cursos e programas, facilitando a vida das pessoas na absorção desses conhecimentos e desempenhar um papel que o mercado espera delas. As escolas precisam migrar para o mundo digital, com programas que tenham tutoria e monitoria. Não é deixar os alunos sozinhos. É toda uma nova abordagem do processo educacional que precisa ser feita para que se obtenha bons resultados. É a questão de montar todo um programa estruturado nesses aspectos, com mecanismos de adaptação dos alunos. E um planejamento estruturado como esse proporciona um resultado superior aos resultados de um curso 100% presencial, nos moldes tradicionais. A educação vai ser impactada de forma positiva pelo uso dessas novas tecnologias.
Empregos em extinção
Por Larissa Quintino*
Escritor israelense, Yuval Noah Harari tornou-se conhecido mundo afora pelo best-seller Sapiens, obra em que, entre outras previsões, visualiza um mundo em que máquinas e computadores avançam de tal forma que tornam obsoleto o trabalho de boa parte da humanidade. O mais alarmante é quanto o vaticínio de Harari está próximo da realidade. Um estudo realizado pela consultoria americana Gartner mostra que, em 2020, o uso de máquinas que reproduzem o raciocínio humano extinguiu 1,8 milhão de empregos e algumas profissões se começam a se tornar completamente ultrapassadas devido ao avanço da tecnologia, incluindo carreiras técnicas e com remuneração mais elevada em áreas de produção e administrativas. No Brasil, por exemplo, entre 2009 e 2019, não foi registrado um único ano sequer de crescimento do emprego formal com mais de dois salários mínimos, segmento típico das ocupações médias nos escritórios e fábricas.
Parece incontestável que, no Brasil, boa parte do atual contingente de aproximadamente 12 milhões de desempregados jamais retornará às suas antigas funções. A indústria e o comércio, em um ambiente de pouco crescimento, estão realizando rapidamente a transição para o ambiente digital como forma de substituir a mão de obra demitida, ganhar eficiência e deixar de pagar pesados encargos trabalhistas com novas contratações com a melhoria do cenário econômico. A situação é igualmente séria para os jovens que buscam o primeiro emprego, e que têm pouquíssimas chances de obtê-lo nas mesmas condições que as gerações anteriores. “Em breve, será muito difícil ver um jovem conquistar um padrão de vida melhor que o de seu pai”, prevê o economista José Pastore, professor da USP e presidente do Conselho de Emprego e Relações do Trabalho da Fecomercio de São Paulo. “Nós assistiremos a uma inversão de boa parte da lógica social. Em vez de o filho cuidar do pai na velhice, o pai continuará contribuindo para a subsistência do filho por muito mais tempo.”
Com o avanço tecnológico e a automação de linhas de produção, a curva de crescimento de riqueza pessoal, que era ascendente, passou a ser descendente e reflete na qualidade dos empregos. Pode-se pensar que isso está acontecendo de forma mais acentuada no Brasil devido à crise econômica vivida pelo país nos últimos anos. Pastore, no entanto, ressalta que o fenômeno faz parte de uma transição global. Até mesmo nos Estados Unidos, um país que registra índices de desemprego ínfimos e onde se criam mais de 150 000 postos de trabalho mensalmente, a qualidade do emprego é baixa e piora ano a ano. Estudo realizado recentemente por pesquisadores da Universidade Cornell demonstrou como essa degradação se deu. Para isso, os economistas cruzaram o valor pago por hora aos trabalhadores com o volume de horas trabalhadas para definir a qualidade dos empregos. Em novembro de 2019, quando foram gerados 266 000 postos de trabalho nos Estados Unidos, a proporção era de oitenta funções bem remuneradas para cada 100 mal remuneradas. Em 1990, a diferença era muito menor — 94 funções bem remuneradas para 100 mal remuneradas. O estudo é claro ao apontar o avanço da tecnologia como o responsável pela piora da remuneração.
Outra grande mudança no mundo do trabalho é a migração da fabricação de produtos de consumo duráveis para países com grande contingente de mão de obra não qualificada e com regulamentação trabalhista baixa ou inexistente. Foi tal fenômeno que transformou nações como China, Índia, Paquistão, Bangladesh e Vietnã em “fábricas do mundo”. Estudiosos acreditam que a associação da evolução tecnológica com essa transferência da produção teve impacto severo sobre as camadas da população de países mais industrializados que se beneficiavam de salários mais elevados nas indústrias globais de produtos de consumo. Com menos mão de obra empregada nas fábricas, a grande maioria da massa trabalhadora tende a migrar para o setor de serviços, o que acaba por concentrar os recursos no topo da pirâmide social. “Como resultado, a maior parte do crescimento do mercado de trabalho se dá na forma de vagas que não apenas pagam menos por hora trabalhada, como também têm carga horária menor”, afirma Daniel Alpert, um dos autores do estudo da Universidade Cornell.
Definida por especialistas como um novo ciclo da Revolução Industrial, o momento que vivemos está muito distante dos tempos em que os chamados ludistas pregavam a destruição dos teares a vapor por substituírem a mão de obra humana e consequentemente deixarem uma massa de desempregados nas cidades industriais da Europa. Isso não significa, entretanto, que não sejam necessárias medidas que permitam uma transição menos traumática entre os modelos de produção. Os pesquisadores de Cornell, por exemplo, defendem ações públicas para mitigar esse impacto que vão de alterações no sistema educacional à modernização das relações trabalhistas. No Brasil, essa também é a linha defendida por quem está atento ao assunto. Em 2019, o governo federal montou o Grupo de Altos Estudos do Trabalho (Gaet), que visa ao desenvolvimento de políticas específicas para o setor. O objetivo dos economistas e sociólogos que participam do grupo é mudar a mentalidade corrente de que os trabalhadores são “executores de tarefas”, de modo que eles passem a ser “resolvedores de problemas”.
Trata-se de uma mudança brutal, que exigirá o aperfeiçoamento contínuo e grande capacidade de adaptação. “As pessoas vão precisar estudar ao longo de toda a sua vida, mas elas não poderão se dedicar a apenas uma área. Os especialistas vão perder mercado”, diz Ricardo Paes de Barros, economista do Insper e chefe do Gaet. “No passado, nossos pais diziam para nos dedicarmos a uma área para nos tornarmos uma sumidade num determinado assunto. Isso já não vale mais de nada.” Para Paes de Barros, o primeiro passo no sentido de adaptar os brasileiros a esse novo cenário já foi dado pelo governo do presidente Michel Temer com a reforma trabalhista e a reorganização do ensino médio, mas ele classifica essas medidas como tímidas. A previsão é que os resultados do Gaet o governo tenha subsídios para formular consultas públicas para decidir como vai abordar o desafio.
O uso da automação na produção e em processos burocráticos foi uma maneira de padronizar e aumentar a escala do trabalho em tarefas mecânicas, repetitivas e maçantes. Essa foi a porta de entrada para os robôs nas linhas de montagem de carros e até produtos mais prosaicos, como escovas de dentes. O impacto foi o fim das vagas nessas áreas. A evolução de tecnologias como sistemas de voz automatizados e a chegada de novos dispositivos de pagamentos eletrônicos já apontam para o fim de empregos como operador de telemarketing, caixas de bancos e supermercados, que começam a trilhar um processo de extinção irreversível. Por outro lado, carreiras como as de programador e especialista em computação tornam-se cada vez mais requisitadas, e muitas vezes em aspectos até então inimagináveis. O paulistano Stefan Martin, de 36 anos, tem uma profissão de nome complicado: designer de experiência do usuário. Seu trabalho, em uma empresa do setor financeiro, é avaliar — e melhorar — a interface que os clientes têm com o site e os dispositivos eletrônicos por meio dos quais contratam serviços e realizam operações. “É um ramo novo e que só agora começa a ser explorado em escala maior, mas que é extremamente promissor e será decisivo no futuro”, diz Martin.
Assim como as disciplinas ligadas à experiência de usuário, outras profissões despontam e implicam um desafio adicional aos gestores de recursos humanos. De acordo com uma pesquisa da consultoria americana Capgemini Research Institute, 64% das empresas enfrentam dificuldades de encontrar no mercado profissionais especializados na área de inteligência artificial. As competências requeridas têm mudado drasticamente, e hoje a familiaridade com modernas tecnologias é apenas parte da equação. Habilidades bem mais humanas, como originalidade, pensamento crítico, persuasão, inteligência emocional e liderança, são igualmente valorizadas. A mudança radical no mercado de trabalho é um caminho sem volta e exige um esforço triplo: governos, empresas e os próprios indivíduos precisam se aprimorar para garantir seu espaço no futuro.
*Larissa Quintino é jornalista de VEJA
Um problema global
Um investimento urgente em capital humano é necessário para criar um mundo mais justo em um cenário em que 1,1 bilhão de empregos serão radicalmente transformados pela tecnologia na próxima década. Para solucionar esse complexo desafio, o Fórum Econômico Mundial tem trabalhado com mais de 350 organizações para oferecer a essas pessoas programas educacionais com foco em novas habilidades e oportunidades econômicas até 2030. Batizado como Reskilling Revolution (em português, Revolução da requalificação) o projeto é baseado em uma plataforma digital lançada em janeiro de 2020 que já beneficiou mais de 100 milhões de pessoas em todo mundo.
Ambicioso, o programa Reskilling Revolution tem como objetivo preparar a força de trabalho global com as habilidades necessárias para proteger suas carreiras em função dos avanços tecnológicos, como a massificação da Inteligência Artificial em diversos setores da economia e a consequente automatização de um grande número de atividades produtivas.
No centro dessa iniciativa está o comprometimento de mais de 55 CEOs de grandes corporações que entendem o quanto uma força de trabalho motivada e dotada de competências atualizadas é capaz de proporcionar benefícios para empresas, comunidades e consumidores, em um contexto que chega a atingir até mesmo escala global.
Ao trabalhar em conjunto com uma rede em contante ampliação que atualmente inclui 21 ministros de estado em 11 países, o projeto Reskilling Revolution tem mobilizado uma impressionante comunidade de mais de 350 organizações, que tem como membros fundadores instituições e empresas como Adecco, Coursera, Dubai Cares, The Education Commission, o governo da França, iamthecode, Infosys, LinkedIn, ManpowerGroup, PwC, Salesforce e UNICEF.
De maneira mais ampla, essa comunidade inclui parceiros de negócios, acionistas, executivos de treinamento corporativo, provedores de educação online, sindicatos, ONGs, especialistas em educação e organizações filantrópicas. Parcerias público-privadas com foco em educação e desenvolvimento de habilidades específicas têm sido criadas em países como África do Sul, Bahrain, Paquistão e Camboja, com outras nações como Finlândia e Cingapura servindo como parceiros de difusão de conhecimentos ao partilharem em escala global suas boas práticas e experiências no setor.
Essa crescente rede global de nações dedicadas a reduzir os desníveis educacionais e de habilidades se conecta através da plataforma Reskilling Revolution para ampliar os esforços específicos de cada uma delas e compartilhar abordagens únicas e capazes de serem adaptadas a necessidades específicas.
Desafios
As mudanças tecnológicas , a pandemia de Covid-19 e a transição para as economias limpas e livres de carbono implicam em um grande risco para o meio de vida de muitas pessoas. Nesse sentido, o mais recente Relatório sobre o Futuro do Trabalho (Future of Jobs Report), compilado em 2020, indica que, em 2025, o tempo gasto em realização atividades por seres humanos e por máquinas se equivalerá. Com isso, é urgente o investimento em capital humano para criar um mundo mais justo ao garantir que as pessoas tenham a chance de alcançar seu potencial e evoluir profissionalmente.
A Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OECD) estima que 1.1 bilhão de postos de trabalho estão sujeitos a serem radicalmente transformados pela evolução tecnológica na próxima década. O Fórum Econômico Mundial prevê em princípio um equilíbrio entre o crescimento de oportunidades e a redução de atividades então superadas. Entretanto, se a tendência atual prosseguir, programas de treinamento e aperfeiçoamento ultrapassados tenderão a manter processos de formação incompatíveis com as novas necessidades do mercado no futuro.
Apenas 0.5% do PIB global é investido em educação continuada para adultos (conceito conhecido como lifelong learning). E isso em um momento em que pesquisas realizadas pelo Fórum Econômico Mundial em colaboração com a consultoria PwC aponta que o investimento em larga escala em requalificação e aperfeiçoamento profissional tem o potencial de elevar o PIB global em 6.5 trilhões de dólares em 2030.
“As organizações precisam mudar sua maneira de agir. A criação de valor aos acionistas só pode ser alcançada em conjunção com a atenção aos empregados, consumidores e as comunidades onde atua. E isso inclui a responsabilidade de ajudar as pessoas aprenderem novos conhecimentos e habilidades para o trabalho e se tornarem criadoras de talentos”, afirma Jonas Prising, CEO do ManpowerGroup, gigante global do setor de recursos humanos.
Requalificação
O Fórum Econômico Mundial construiu a plataforma Reskilling Revolution a partir de um tripé de abordagens para criar um impacto tangível: comprometimento de parceiros, criação de soluções conjuntas e conexão de fornecedores, clientes e comunidade.
O projeto tem o objetivo de direcionar seu impacto por meio do estimulo a múltiplas áreas:
1) Nova agenda de financiamentos
2) Revitalização de políticas de ação
3) Padrões inovadores de liderança em negócios
4) Modelos de métricas abrangestes
5) Mecanismos mais ágeis de entregas
6) Novo conteúdo de habilidades
O programa de implantação da plataforma para o período de 2022 a 2024 inclui a aceleração da requalificação e aperfeiçoamento profissional em escala mundial, assim como promover o mercado de trabalho com base nas habilidades. Ao combater os desníveis de formação profissional, a iniciativa tem o objetivo de atingir pelo menos 300 milhões de trabalhadores e estudantes em idade adulta.
Além disso, a plataforma Reskilling Revolution pretende posicionar a educação no centro da recuperação econômica ao contribuir para atualização de professores e de sistemas educacionais para que ambos, de forma efetiva, preparem os estudantes para a desafios econômicos e sociais do futuro. Esse trabalho tem a ambição de beneficiar pelo menos 150 milhões de estudantes e jovens aprendizes até 2024.
Desde que o Fórum Econômico Mundial colocou a plataforma Reskilling Revolution em operação no Bahrain in 2020, por exemplo, forma realizados mais de 50 eventos ligados ao projeto incluindo reuniões com especialistas, grupos de debates e encontros de comitês de organização para construir em conjunto um plano de ação de abrangência nacional com a missão de eliminar os desníveis de formação profissional. Entre 2020 e 2021, esse esforço colaborativo beneficiou 1 879 trabalhadores já empregados e outras 13 400 que buscam emprego. Da mesma forma, mais de 43 000 estudantes foram beneficiados por projetos de preparação para o trabalho.
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