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ESTUDO #36

Inteligência Artificial: O futuro é agora – Como as novas tecnologias estão transformando a saúde, a educação e os negócios

por Da Redação Atualizado em 1 mar 2024, 18h48 - Publicado em
29 fev 2024
16h00

Apresentação

No jargão da indústria de tecnologia, unicórnio é aquela startup rara que alcança o valor de 1 bilhão de dólares. Facebook, Google, Uber e Netflix, estão entre as mais famosas, demoraram anos para atingir uma avaliação tão vultosa e têm, todas elas, milhares de empregados espalhados pelo mundo para gerar receita e lucro que justifiquem tamanha cotação na bolsa de valores. Pois Sam Altman, o CEO da OpenAI, criadora da primeira ferramenta de inteligência artificial generativa disponibilizada ao grande público (e avaliada em 80 bilhões de dólares), fez uma aposta interessante com seus amigos. Ele apostou que o primeiro unicórnio com apenas um funcionário surgirá até 2025. E que isso será possível graças justamente ao enorme ganho de produtividade que a inteligência artificial tem o potencial de proporcionar.

A inteligência artificial é um ramo da ciência da computação que visa criar máquinas capazes de analisar uma quantidade de dados gigantesca, humanamente impossível de processar, e partir disso achar padrões, aprender, resolver problemas e tomar decisões de forma autônoma.

O conceito e algumas ferramentas já estão entre nós há alguns anos, como nos aplicativos de mapas em nossos smartphones que apontam os caminhos com menos trânsito, ou nos tradutores de idiomas, entre muitos outros. Mas em novembro de 2022 foi lançado o ChatGPT, criação da empresa de Sam Altman, que mudou esse jogo de patamar. Este chatbot de IA é capaz de ter conversas realistas e informativas com humanos, escrever códigos de programação, ler, entender e resumir documentos, e outras habilidades que o público ainda está entendendo. Virou uma sensação global – e forçou as gigantes de tecnologia como Google e Facebook a correr para lançar as suas versões do aplicativo que ainda estavam em fase de desenvolvimento.

A pressa para não ficar para trás teve péssimas consequências, e o Google se viu obrigado a suspender o recurso de geração de imagens a partir de texto de seu programa, o Gemini, depois que usuários reclamaram de erros grotescos do aplicativo. Viralizaram nas redes sociais casos de pessoas que solicitaram ilustrações de soldados da Alemanha nazista e encontraram asiáticos nos uniformes da SS, e um prompt que pediu uma foto de senador dos EUA de 1800 produziu a imagem de mulheres negras. O problema não é só a inacurácia histórica patente, mas as questões éticas que a situação desnudou: os algoritmos são criados por humanos que colocam ali, bem intencionados ou não, ou mesmo inconscientemente, vieses e orientações para produzir um determinado resultado. E, pela natureza da tecnologia, autônoma, as consequências são imprevisíveis.

Por outro lado, o ChatGPT demonstrou o enorme poder da IA para automatizar tarefas e criar novas experiências para os clientes, e aumentar a produtividade das pessoas. Empresas, ONGs e governos do mundo inteiro notaram. O interesse foi tão grande que a Nvidia, que desenvolve chips de processamento de dados que são especialmente eficientes para treinar e executar os modelos de IA – ela domina 80% desse mercado – aumentou seus lucros em 769% nos 12 meses seguintes ao lançamento do ChatGPT. O valor de mercado da empresa, na casa do trilhão de dólares, já ultrapassou gigantes como Google e Amazon – que já anunciaram que vão produzir seus próprios chips, pois está claro que a demanda não vai parar de subir.

E os brasileiros, como sempre tem acontecido com as novidades do mundo tecnológico, das redes sociais às criptomoedas, já estão abraçando a inteligência artificial. Uma pesquisa realizada em 17 países pelo instituto Ipsos, em parceria com o Google, entre outubro e novembro de 2023 mostrou que o Brasil está entre os mercados que vêem como mais positivo o impacto da IA na sociedade. Impressionantes 75% dos entrevistados já usaram ou planejam usar ferramentas de inteligência artificial no trabalho, e 60% se dizem empolgadas com as possibilidades abertas pela inovação. A título de comparação, apenas 33% dos americanos já usou IA, e 33% estão animados.

Nas páginas a seguir, VEJA Insights mostra os principais usos das ferramentas de inteligência artificial já em implementação para melhorar a produtividade nas empresas do Brasil e do mundo, e o potencial que ainda está por ser desvelado. Há casos para todos os gostos, de Saúde e Educação ao comércio, indústria pesada e até o serviço público. Estamos diante de uma verdadeira revolução tecnológica.

Boa leitura!

Entrevista: Fabio Coelho

REVOLUÇÃO - “A IA generativa abriu um novo universo de trabalho”
REVOLUÇÃO – “A IA generativa abriu um novo universo de trabalho” (./Divulgação)

Fabio Coelho é um veterano do mundo da tecnologia. Só no Google Brasil ele já atua como presidente há 13 anos, e antes já tinha passado 10 anos como braço digital da gigante de telecom americana AT&T e liderado o provedor de internet e megaportal brasileiro IG. Mas nem toda essa experiência impediu que ele se assombre com o potencial que a inteligência artificial apresenta para transformar a sociedade nos próximos anos. “A velocidade com que as ferramentas estão evoluindo é espantosa, e todas as áreas da nossa vida vão ser impactadas”, afirma. Em entrevista por videoconferência a VEJA Insights de seu escritório em São Paulo, Coelho explicou o porquê da explosão no interesse em torno das ferramentas de IA no último ano e mostrou o quanto elas já estão no nosso dia-a-dia sem que boa parte das pessoas o percebam.

Do que estamos falando quando falamos de inteligência artificial? De maneira bastante simples, a gente vivia em um mundo de algoritmos que seguiam regras de comportamento previamente estabelecidas. A inteligência artificial é um conjunto de tecnologias que permite que computadores executem funções bastante avançadas reagindo ao estímulo externo, incluindo a capacidade de ver, de entender, de traduzir idiomas, de analisar dados, e a partir daí fazer recomendações e muito mais.

Por que essa explosão da IA nesses últimos 15 meses? A inteligência artificial já existe há muito tempo. O Google se posiciona desde 2016 como uma empresa AI First (inteligência artificial em primeiro lugar), mas ela realmente ganhou maior popularidade no momento em que foi colocada na mão do usuário final, através da inteligência artificial generativa, que aconteceu no fim de 2022.

Onde encontrávamos ferramentas de IA até então? Lá atrás, em 2016, começamos a usar modelos e soluções que a gente chamava de machine learning, aprendizagem de máquina. Você começa no mais básico, que é o processo de automação para gerar escalabilidade. O passo seguinte onde as máquinas passaram a aprender, e você leva aquilo para soluções de produto. Já usamos isso em soluções de publicidade, no tradutor de idiomas, nos mapas, na busca que entende quando você escreve uma palavra errada. Aquele “Você quis dizer”, sabe? Viemos evoluindo e amadurecendo a tecnologia desde 2016.

Até chegar ao ponto de dar as rédeas da ferramenta para o público? Com o advento do ChatGPT, no fim de 2022, se levou ao mercado a possibilidade de que essas soluções fossem usadas diretamente por usuários finais. E isso tem muito valor. A inteligência artificial generativa, que o Google disponibiliza hoje com o Gemini, está colocando à disposição soluções que fazem com que o cidadão possa começar a processar e entender uma massa de dados enorme. Abriu-se um novo universo de trabalho e um novo universo de descobertas.

Qual o principal impacto disso? Gerar maior eficiência para os negócios, para o cidadão, para o governo, para todo mundo. A identificação de padrões e sinais em uma massa gigantesca de dados nos ajuda a resolver problemas mais rápido e de uma forma mais inteligente. Nos negócios, isso vai aumentar a receita, ou servir para inventar ferramentas e processos novos. Isso abre todo um outro capítulo que é a questão de startups de inteligência artificial.

O que permitiu essa virada de chave? Muito esforço foi empreendido para que as máquinas tivessem o entendimento da sutileza semântica de linguagem. E quando você estabelece a questão da sutileza semântica, conseguimos desenvolver os assistentes de voz, agora a IA generativa, e muito ainda há para ser desenvolvido no futuro. Como eu disse, é um universo se abrindo.

Mas vai muito além de linguagem, certo? Muito além da linguagem. Ela foi um facilitador, na verdade, para que o cidadão pudesse usar de uma forma mais fácil. Mas você tem soluções de voz, de vídeo, de imagem, de matemática, de programação… são recursos que estão disponíveis de várias formas, praticamente, para as plataformas disponíveis. Por exemplo, você recebe um documento de imposto de renda enorme. É só pedir “resume isso aí em poucos slides”, e o aplicativo cria um documento gráfico resumindo seu imposto de renda. É um exemplo que você saiu, você precisou ter uma interpretação daquele documento com o entendimento de tudo que aqueles textos, números, tabelas, significam naquele contexto.

Em menos de um ano, o Google lançou o Bard, depois o substituiu pelo Gemini, que por sua vez já está na sua segunda versão, a 1.5. Essa evolução não está especialmente rápida, comparando com outras tecnologias? Realmente mudou tudo em um espaço curto de tempo. A capacidade de ingerir dados e processar a informação nesses modelos aumentou exponencialmente. O nosso entendimento das alucinações, que são as respostas sem sentido da ferramenta, também cresceu bastante. Isso permite uma segmentação. Há pouco tempo atrás, falávamos em modelo de linguagem como se fosse uma coisa só. O Google entendeu que o conceito do Gemini tem que ser segmentado porque você tem diferentes capacidades de processamento e diferentes necessidades. O Gemini, 1.5 Pro processa uma quantidade de informações absurda. De uma vez só ele pode processar uma hora de vídeo, 11 horas de áudio, mais de 30 mil linhas de código, ou 700 mil palavras. A capacidade aumentou 10 vezes em questão de meses. E nosso entendimento também está aumentando: os modelos vão se sofisticando ao mesmo tempo em que o usuário vai segmentando o seu nível de utilização.

Em que pé o Brasil está no universo da IA em relação ao resto do mundo? O brasileiro é sempre um early adopter de tecnologia, ele abraça a novidade. E isso está acontecendo de novo com a inteligência artificial. As nossas soluções de IA tanto para a publicidade quanto para o usuário final tem no Brasil no top 5 mercados do mundo do Google, o nível de adoção das ferramentas pela nossa base de cliente é bastante alto. Uma pesquisa recente da Ipsos feita ao redor do mundo com mais de 17 mil pessoas em 17 países mostra que o brasileiro é um dos povos mais entusiastas da inovação e da inteligência artificial no planeta. Eu acho que a gente tem alguns bons casos aqui de coisas que já são feitas no na saúde e na educação, por exemplo.

Em que áreas o uso dessas ferramentas está mais avançado? Temos iniciativas importantes ligadas às mudanças climáticas, também na educação. Na nossa plataforma para educação, o workspace for education, temos uma ferramenta chamada Série de Exercícios, onde o aluno apresenta sua dúvida numa questão, e acessa uma área que que explica como o problema pode ser resolvido. Com dados de bilhões de estudantes, alguns erros e dificuldades que são mais padrão você consegue identificar ali e orientar uma explicação personalizada. Então, a gente está vendo aqui no Brasil de uma forma bastante promissora.

A área da saúde tem iniciativas de impacto? São muitos os exemplos onde uma quantidade grande de imagens ou uma quantidade grande de dados pode gerar diagnósticos de melhor qualidade. Nada substitui o médico. A ideia é que você empodere o médico para que ele possa tomar decisões com base em informações mais precisas e mais rápidas. Nossas ferramentas já detectam um câncer de mama nos exames de imagem com mais precocidade. Tem um outro projeto fora do Brasil que consegue identificar o tipo e a gravidade de uma doença pulmonar só pela respiração. Quando você empodera as pessoas, as empresas, o ambiente de startups, aparece solução para tudo.

E nas empresas? As empresas estão usando para a criação de documentos, apresentações, relatórios, pesquisa, atas de reuniões, uma infinidade de tarefas. E simplificando processos com clientes, como as seguradoras que usam IA para avaliar um sinistro de carro só com fotos, e já orientam os próximos passos sem necessidade de ligações e visitas presenciais de auditores. São muitos exemplos.

Serviço público e terceiro setor também podem tirar proveito da IA? Fizemos um evento em Belém no ano passado só para falar de IA e sustentabilidade, para apresentar soluções como alertas de inundações e incêndios florestais, redução de gás carbônico e trânsito nas cidades. Essa de trânsito já está sendo implementada no Rio de Janeiro e Campinas, uma ferramenta de IA que controla os semáforos para aumentar a eficiência no fluxo dos carros e, assim, diminuir a emissão de gases de efeito estufa.

Como é que as empresas se preparam para utilizar as ferramentas de inteligência artificial? O que elas precisam? O uso consistente de IA é talvez a última etapa de uma estratégia de maturidade digital. A gente está falando de transformação digital há mais de 15 anos. Os fundamentos agora não são diferentes. Você tem que ter uma estratégia digital, pessoas capazes de executar essa visão e uma infraestrutura muito boa. Ajuda muito se a empresa tiver uma parceria de negócios com quem entende do assunto, como o Google, mas não necessariamente nós. É cada vez mais comum que as empresas façam processamento de Interfaces de Programação de Aplicativos e dados nas nuvens de várias empresas disponíveis do mercado, inclusive a nossa do Google Cloud, mas há outras no mercado. Ter uma boa cultura de dados é importante, entender quais dados são relevantes para o seu negócio e como captá-los. A gente tem uma ideia de que as empresas brasileiras estão atrasadas, mas nossos anunciantes estão entre os mais sofisticados do mundo em relação à utilização de inteligência artificial no Brasil.

Onde que vai parar essa evolução? Se o entendendo que as empresas vão ter uma abordagem que ela é ao mesmo tempo responsável, mas ousada, eu acredito que nós vamos conseguir fazer uma acompanhar uma evolução rápida na eficiência das empresas, na capacidade que o cidadão tem de fazer coisas mais fácil e melhor e no desenvolvimento de todo um ecossistema de AI como a gente não viu até agora. E isso, de novo, no momento em que praticamente a capacidade de empreender, ela está aí, o Brasil tem a capacidade de empreender enorme. Se bem usadas, essas novas ferramentas vão resolver problemas nossos que nos afligem há décadas. Isso vale para as empresas e também para o serviço público. Já há projetos, por exemplo, para aumentar exponencialmente a produtividade do Judiciário brasileiro, uma demanda muito antiga da sociedade. Está muito próximo de finalmente acontecer.

A IA vai salvar sua vida

RAPIDEZ - Algoritmo diminui tempo de diagnóstico de 24 horas para cinco minutos
RAPIDEZ – Algoritmo diminui tempo de diagnóstico de 24 horas para cinco minutos (Luis Alvarez/DigitalVision/Getty Images)

Em março de 2023, Elon Musk, dono da Tesla e do X (ex-Twitter), Steve Wozniak, cofundador da Apple, o escritor Yuval Noah Harari e mais de 2 600 líderes e pesquisadores do setor de tecnologia assinaram uma carta aberta pedindo uma pausa temporária no desenvolvimento da inteligência artificial, temendo o que eles acreditam ser “riscos profundos para a sociedade e a humanidade”. Na mesma semana, um jovem de 15 anos em Brasília teve a vida salva por uma ferramenta de IA. Keiton Victor Silva saiu de um treino de basquete se sentindo mal, e foi parar no pronto-socorro com palpitações. Não parecia haver nada errado com o paciente, mas um software chamado Kardia – criado no Brasil pela startup Neomed – conseguiu identificar sinais de uma condição raríssima chamada síndrome de Wolff-Parkinson-White no eletrocardiograma do adolescente. “A inteligência artificial é capaz de comparar o exame do paciente com milhões de similares em sua base de dados, e assim encontrar padrões compatíveis com de outras pessoas com até 100 doenças diferentes”, explica Victor Gadelha, head de inovação médica da Dasa, dona do hospital onde Silva foi atendido. “É dificílimo para um médico identificar uma síndrome rara como essa no eletrocardiograma em um pronto-socorro, mas o algoritmo salvou a vida do paciente ao fazer o diagnóstico em menos de 5 minutos”.

Casos como o de Silva iluminam a revolução que a inteligência artificial está causando na medicina. Não se trata de uma hipérbole, e quem garante é Lloyd Minor, reitor da Escola de Medicina da Universidade de Stanford. “Os jovens estudantes de medicina hoje estarão na linha de frente da transformação mais radical e, espero, mais positiva da Saúde desde a descoberta dos antibióticos”, afirma. A IA tem o potencial de transformar o atendimento ao paciente em muitas frentes. A mais imediata é a possibilidade de uma democratização da medicina diagnóstica para as populações em todo o mundo. Um médico no meio da floresta Amazônica pode, por exemplo, enviar a foto de uma protuberância na pele de um paciente com seu smartphone e, instantaneamente, receber uma análise das possíveis causas e da probabilidade de ser um tumor maligno. Parece distante, mas já existe algo parecido sendo feito no Brasil. No auge da pandemia de Covid, a Dasa disponibilizou de forma gratuita em sua plataforma digital um algoritmo capaz de analisar uma tomografia de pulmão e precisar o tamanho de uma lesão no órgão – informação humanamente impossível de extrair em escala, pois exigiria várias horas de trabalho para medir a área afetada nas imagens em 3D.

PRECISÃO - Ferramenta consegue medir lesões pulmonares na casa do milímetro
PRECISÃO – Ferramenta consegue medir lesões pulmonares na casa do milímetro (Athima Tongloom/Moment/Getty Images)

A Dasa não teve grandes dilemas para disponibilizar o algoritmo de forma gratuita porque o custo de cada consulta feita nele é baixo – ainda que seu desenvolvimento exija muito investimento, que precisa dar retorno. Isso mostra como a IA tem o potencial de atacar um dos grandes problemas da medicina moderna: seu alto custo. ​​No Brasil, a inflação médica em 2023 foi três vezes maior que o IPCA, índice oficial que mede o aumento nos preços de uma cesta variada de produtos e serviços. Enquanto a inflação geral subiu 4,8%, os custos na Saúde cresceram 14,1%, segundo a consultoria AON. Diferentes ferramentas de IA ajudam a diminuir os gastos. “A maior acurácia dos diagnósticos reduz a quantidade de exames e permite uma intervenção mais precoce, o que aumenta a chance de cura e ainda diminui muito o custo da medicina para o público, para os planos de saúde e para os provedores”, explica Maykon Fernandes, Head de Indústria e responsável pelo setor de Saúde do Google Cloud.

Outra forma de diluir os custos é o uso de IA na operação dos provedores de saúde. O Hospital São Lucas, no Rio de Janeiro, adotou um algoritmo no fim de 2020 que acompanha todos os passos do paciente, desde o agendamento de uma consulta ou um exame até a alta pós-operatória, por exemplo, gerando indicadores e munindo os gestores com informações para a tomada de decisão. Um ano e meio depois, a instituição passou de uma taxa de 4,5 para uma taxa de 6,2 pacientes por leito por mês, um aumento de produtividade de 37%. Graças a um outro software de inteligência artificial, que passa a madrugada lendo todos os exames feitos no laboratório durante o dia e consegue identificar a gravidade dos resultados e orientar a comunicação direta com o médico da paciente, o tempo entre a investigação dos sintomas e a intervenção clínica ou cirúrgica caiu drasticamente. No caso de câncer de mama, para ficar no exemplo mais significativo, a média nacional é de 45 dias entre a mamografia e a retirada do tumor, mas o hospital derrubou esse intervalo para uma semana.

NITIDEZ - IA consegue melhorar a qualidade dos exames de imagem sem aumento de radiação
NITIDEZ – IA consegue melhorar a qualidade dos exames de imagem sem aumento de radiação (VM/E+/Getty Images)

Uma ferramenta vista com entusiasmo por especialistas é o uso de visores de realidade mista, ou realidade aumentada, para municiar os médicos de informações em tempo real sobre os pacientes. Eles já são usados para treinamento de cirurgiões em universidades americanas e europeias, mas já há outros usos no Brasil. A PBSF (Protegendo Cérebros, Salvando Futuros, na sigla em inglês) desenvolveu um algoritmo de IA para o HoloLens 2 – um visor e computador vestível fabricado pela Microsoft – para a avaliação de recém-nascidos com alto risco de lesão cerebral permanente (crianças que apresentam asfixia perinatal, prematuras, com má formação do coração ou ainda outras lesões neurológicas). Além de ser capaz de identificar sinais de e se conectar a especialistas baseados em uma central de vigilância e inteligência, situada em São Paulo.O dispositivo começou a ser usado na Santa Casa de São Paulo, e o plano é que o projeto se estenda a 40 hospitais públicos e privados em todo território brasileiro. “O tempo de diagnóstico é crucial para que o tratamento dos bebês seja eficaz e, com a assistência remota do dispositivo de realidade mista, conseguiremos ganhar minutos ou horas valiosas. É uma curta janela de oportunidade para evitar sequelas que podem durar a vida inteir”, explica o médico Gabriel Variane, CEO e fundador da PBSF.

A IA já está potencializando até mesmo a mais humana das qualidades de um bom profissional: a empatia. Pesquisadores do Instituto Qualcomm, da Universidade da Califórnia, em San Diego, analisaram as respostas de médicos a mais de 200 perguntas enviadas em fóruns especializados na rede social Reddit, e replicaram as questões no ChatGPT para fazer uma comparação qualitativa. As mensagens do chatbot foram consideradas pelos especialistas mais completas e precisas em 80% dos casos, e 45% delas foram avaliadas positivamente nos quesitos empatia e suporte emocional, contra apenas 5% das escritas por clínicos. “Ninguém dedica a vida à medicina sem ter um interesse e preocupação legítimos pelos pacientes”, pondera John Ayers, responsável pelo estudo no Instituto Qualcomm, da Universidade da Califórnia, em San Diego. “Eles sentem muito por seu sofrimento, e querem passar a melhor informação possível, mas nem todos são bons comunicadores, e a verdade é que a maioria está tem mais afazeres do que tempo, além de estar exausta”. Para Ayers, os robôs jamais deverão substituir os médicos, mas podem ser uma poderosa ferramenta para que eles driblem a falta de tempo e o cansaço na lida com os pacientes.

Medicina Multimodal

Essa é uma unanimidade no campo da saúde: os robôs não vão substituir os médicos. A segunda concordância generalizada é que estamos apenas engatinhando no universo das descobertas possibilitadas pela inteligência artificial. A comunidade científica ainda está explorando maneiras de melhorar diagnósticos e tratamentos de uma doença de cada vez, baseados em um tipo de exame. “O futuro é multimodal, ou seja, vamos conseguir relacionar diversos marcadores, entre genética, meio-ambiente, comportamento, alimentação, e muitos outros, entender seu efeito na saúde com uma precisão nunca antes vista”, prevê Gadelha. O apelo de Musk, Wozniak e Harari para frear o desenvolvimento da IA, por mais bem intencionado que tenha sido, foi largamente ignorado. Ainda bem. A Saúde agradece.

Monitoria personalizada para todos

HÍBRIDO - Modelo ideal de ensino tem orientação do professor com suporte da IA
HÍBRIDO – Modelo ideal de ensino tem orientação do professor com suporte da IA (./Divulgação)

Os lockdowns durante a pandemia de Covid foram um horror para toda a sociedade, ninguém discute. Para os estudantes, porém, a obrigação de ficar em casa foi particularmente desastrosa. As escolas brasileiras permaneceram fechadas por mais tempo do que a média dos outros países, o que resultou em um impacto no desempenho de aprendizagem dos mais significativos do mundo. A edição de 2021 do SAEB (Sistema Nacional de Avaliação da Educação Básica), por exemplo, revelou quedas em todas as avaliações realizadas em relação ao ano de 2019: língua portuguesa e matemática no 2º ano, 5º ano, 9º ano e ensino médio. Uma consequência terrível foi o aumento substancial da taxa de insucesso (medida que combina os dados de reprovação e de abandono) no ensino médio no mesmo ano. Estivessem disponíveis as ferramentas de inteligência artificial, apenas 4 anos atrás, que começam a ser adotadas hoje e a história teria sido muito diferente. “O ensino à distância que as escolas adotaram foi feito de improviso, ninguém estava preparado para aquilo e o resultado foi uma defasagem generalizada, especialmente perverso porque crianças pobres tinham muito menos estrutura para estudar em casa”, afirma Richard Culatta, presidente da Sociedade Internacional de Tecnologia na Educação (ISTE). “Hoje o professor trabalha com um exército de mentores digitais personalizados para cada estudante, é uma nova era”.

O potencial dessas ferramentas é tão grande que especialistas acreditam que seja possível recuperar o tempo perdido. Como o Brasil é tradicionalmente um early adopter de tecnologia, a expectativa entre é que a educação nacional seja de fato uma desbravadora desse novo universo que se deslumbra. Uma pesquisa do instituto Ipsos em parceria com o Google, realizada em 17 países entre outubro e novembro de 2023, apontou que 84% dos brasileiros acreditam que a IA terá um impacto positivo na educação escolar e profissional, enquanto apenas 58% dos americanos pensam dessa forma. Em algumas escolas, já são adotados softwares que dão orientação personalizada aos alunos para aprender ou entender melhor um problema ou conceito, ajudam os professores a desenvolver planos de aula, avaliam e dão dicas aos educadores sobre seu ensino, corrigem provas e redações, e ajudam os pais a entender e se engajar melhor no processo. “Até recentemente as inovações aconteciam nos países desenvolvidos, e só muitos anos anos depois chegavam aqui, mas a disponibilização da IA está sendo mundial e a gente tem casos acontecendo no Brasil assim que são referência internacional”, conta Vera Cabral, Diretora de Indústria em Educação para a América Latina da Microsoft.

A adoção de ferramentas de IA tem um aspecto mais macro, ou seja, na formulação e acompanhamento de políticas públicas. A tecnologia é tão nova que secretarias municipais, estaduais e o Ministério da Educação ainda estão fazendo projetos-piloto com diferentes parceiros e ainda não fecharam contrato com ninguém. Mas a ideia é que duas estruturas fundamentais precisam ser montadas. A primeira é a base de informação de ensino propriamente dito, ou seja, de onde os algoritmos de IA vão se alimentar de conteúdo para os alunos. Isso precisa de uma curadoria criteriosa tal e qual é feita a escolha de livros didáticos. A segunda é um sistema de coleta de dados em tempo real para o monitoramento do que acontece nas nas salas de aula, para que ajustes ou intervenções mais drásticas possam ser tomadas tão logo os problemas apareçam. Isso vale para desempenho de alunos, ou escolas inteiras, evasão escolar, etc. É um trabalho que demorava meses para ficar pronto. Agora pode ser feito por algoritmo continuamente, com apenas 24 horas de atraso, e uma quantidade de dados exponencialmente maior. “Conseguimos modelos muito mais refinados, que entendem tanto quando o aluno apresenta sinais de problemas sociais, quanto uma dificuldade específica de, por exemplo, entender semelhança de triângulos hoje vai impedir que ele entenda trigonometria no ano seguinte, e daí já propor uma ação para corrigir”, explica Vera.

MENTOR - Aplicativo consegue ouvir as aulas e dar dicas de como aprimorá-las
MENTOR – Aplicativo consegue ouvir as aulas e dar dicas de como aprimorá-las (./Divulgação)

É claro que uma mudança tão profunda na sala de aula encontra resistência. Tão foi lançado o o primeiro chatbot de IA generativa , o ChatGPT, em novembro de 2022, houve uma grita geral. A secretaria de educação de Nova York, por exemplo, proibiu o uso de qualquer inteligência artificial nas escolas já em janeiro. Há uma longuíssima tradição de receio de educadores na adoção de ferramentas – o filósofo Sócrates, que viveu na Grécia do século V a.C., notoriamente não gostava da escrita por acreditar que é um processo unilateral que não permite a interação e o debate, além de enfraquecer a memória e promover a passividade intelectual. Sabemos disso graças a seu discípulo Platão, que deixou registrado em livros os diálogos do mestre. David Banks, chanceler das escolas públicas de Nova York, foi mais maleável que o seu colega educador da Antiguidade e revogou o banimento em maio. “O medo e o risco instintivos ignoraram o potencial da IA ​​generativa para apoiar alunos e professores, bem como a realidade de que nossos alunos estão participando e trabalharão em um mundo onde entender a IA ​​generativa é crucial”.

A informação mais importante para vencer a resistência de educadores com a inteligência artificial é a de que ninguém está sugerindo substituir os professores por robôs. Uma enorme parcela da vantagem dessas ferramentas, na verdade, é aliviar o profissional de tarefas repetitivas e demoradas, como a correção de exercícios, provas e redações. É um ganha-ganha: o mestre ganha tempo para se dedicar mais à pensar nas aulas, que também podem ser estruturadas com a ajuda da ferramenta, e em maneiras de se aprimorar (e, por que não?, descansar). O MEC ainda não confirmou nenhuma compra de software, mas já tem uma parceria com o Google para usar sua plataforma de educação sem custo nas escolas federais. Nela, os alunos recebem orientação em tempo real, no momento em que aparecem as dúvidas, para conseguirem resolver as questões que forem mais difíceis para cada um e por consequência um incentivo para mantê-los engajados nas atividades . Outro suporte fundamental aos professores é dado através da geração de insights e uma visão detalhada dos trabalhos realizados e sobre a performance apresentada por seus alunos durante a atividade. “Isso permite entender o grau de proficiência, número de tentativas e as principais pedras no meio do caminho na atividade”, explica Alessandro Leal, Head do Google for Education para América do Sul.

Um receio mais importante por parte das escolas é o uso da tecnologia para fraudar testes. De fato, não há uma resposta simples para esse problema. A versão 4 do ChatGPT, lançada em março de 2023, já foi capaz de praticamente gabaritar a prova GRE nos Estados Unidos, usada para admissão em programas de mestrado ou doutorado. O que os entusiastas do uso da tecnologia na sala de aula defendem, na verdade, é que o tipo de teste conteudista está obsoleto, e é preciso achar outras maneiras de se avaliar o aprendizado do aluno. “Se a IA pode fazer o trabalho, então estamos realmente avaliando a coisa certa ao focar nas respostas?”, questiona Stacy Hawthorne, diretora acadêmica da Learn21, uma ONG que trabalha em tecnologia educacional. Como em qualquer mudança profunda, a sociedade precisa de tempo para amarrar todas as pontas soltas. Mas uma coisa é certa: já passou da hora de dar um salto de qualidade na educação das crianças brasileiras e a pandemia só exacerbou o problema. Se a inteligência artificial pode ajudar a vencer esse desafio, ela é mais que bem vinda.

O boom da produtividade

INVESTIMENTO - B3 tem uma fila de softwares de IA já em desenvolvimento
INVESTIMENTO – B3 tem uma fila de softwares de IA já em desenvolvimento (Prime Images/Getty Images)

O Santo Graal do estudo da economia, desde sua fundação pelo escocês Adam Smith, é entender como e por que as nações enriquecem. Já no século XVIII ele entendeu que a especialização do trabalho aumenta a produtividade de um país, ou seja, cria mais riqueza a partir da mesma quantidade de insumos e esforço. Mas foi o economista Robert Solow, ganhador do Nobel da categoria em 1987, que provou com modelos matemáticos que o grande segredo para a prosperidade está no desenvolvimento tecnológico. Demonstrou, por meio de modelos matemáticos, que cerca de 80% do crescimento dos Estados Unidos no século XX se deveu às novas tecnologias. São elas que permitem se produzir mais e mais, no mesmo espaço de tempo. Não é por nenhum outro motivo que empresas e governos do mundo inteiro estão obcecadas com a inteligência artificial: ela é a nova fronteira para aumentar a produtividade, e daí gerar riqueza. “Acredito que o crescimento da produtividade na próxima década vai duplicar como resultado da inteligência artificial”, afirma Erik Brynjolfsson, diretor do Laboratório de Economia Digital, da Universidade Stanford, e autor do estudo “IA Generativa no Trabalho”.

As empresas brasileiras já estão se mexendo para implementar estratégias de uso dessas ferramentas para tornarem seus processos mais eficientes. A porta de entrada neste universo é, sem dúvida, o uso de chatbots que usam IA generativa, seja para uso interno dos funcionários, seja para relacionamento com clientes.

A Petrobrás, maior empresa da bolsa brasileira, é um exemplo. Em parceria com a Microsoft, dona do ChatGPT, ela criou o ChatPetrobras. Guardadas todas as normas de segurança da informação e proteção de dados exigidas para uma companhia deste porte, o aplicativo usa recursos de compreensão e geração de linguagem natural, tradução e geração de código e está disponível aos 110 mil empregados e prestadores de serviço para a realização de diversas atividades como a elaboração de relatórios, resumos, apresentações, além de responder perguntas e dúvidas a partir de uma base de dados proprietária. Ela inclui informações financeiras e operacionais de, por exemplo, Exploração & Produção (E&P) e Reservatórios e Poços de uma das maiores petroleiras do planeta. Já a Sem Parar, líder em meios de pagamentos automáticos, usa a mesma tecnologia no trato com seus consumidores, através da assistente virtual Carol. Treinado com mais de 15 mil hipóteses de interação em sua fase de testes, e incorporando novos aprendizados desde que começou a rodar com o público, em agosto, o programa diminui em até 1 hora o tempo de atendimento a cada cliente. “A Carol também tem um atendimento mais personalizado e assertivo, o que aumenta a percepção positiva da marca”, comemora Carlos Gazaffi, presidente da empresa.

INFRAESTRUTURA - Petrobras gastou 36 milhões de reais em supercomputador exclusivo para IA
INFRAESTRUTURA – Petrobras gastou 36 milhões de reais em supercomputador exclusivo para IA (./Divulgação)

É natural que empresas mais mergulhadas em tecnologia tenham implementado usos mais sofisticados de IA. A bolsa de valores B3, por exemplo, já tem uma espécie de conselho de inteligência artificial chamado Centro de Excelência para criar a estratégia para o uso das ferramentas, garantir que todas as normas de segurança e de regulamentação da CVM são cumpridas, e ajudar na adoção por parte dos funcionários. Fazem parte representantes da área de tecnologia, claro, mas também do operacional, do jurídico, da comunicação e RH. Eles também começaram fazendo seu próprio chatbot, o B3GPT, que já tem 26 mil interações mensais para tarefas como criação de códigos de programação, resumo de documentos e onboarding. Mas a experiência trouxe a percepção de que usos muito díspares dos diversos setores da empresa ao mesmo aplicativo por vezes confundia o robô, que produzia as chamadas alucinações, que são informações inventadas ou combinadas de forma aleatória e incorreta. Por isso passaram a segmentar os programas, como por exemplo um específico para ler PDFs. Os funcionários sobem um documento para o robô, que pode ter centenas de páginas, e conversam com ele para extrair os dados que precisam instantaneamente. Para questões de RH e políticas da empresa, há um chat exclusivo chamado CloudIA (Cloud é nuvem, em inglês, e IA de inteligência artificial – pronuncia-se Cláudia). Alguns dos aplicativos surgiram de hackatons internos que a companhia promove, e já há uma fila de produtos sendo desenvolvidos para adoção em breve. “A gente abraçou mesmo a IA, já fizemos três academias de data science tanto para a área de negócios, para o time entender as possibilidades à nossa frente, quanto para os programadores, para colocarmos essas possibilidades em prática”, conta Marcos Albino, superintendente de Tecnologia da B3.

O e-commerce tem na IA seu maior aliado para produzir eficiências. A Pernambucanas utiliza soluções de predição do Google em sua busca para tornar mais assertivos os resultados para o cliente, e também para oferecer recomendações de produtos. Desde a adoção da tecnologia, as vendas cresceram 20%. Já a Magalu aposta nas soluções de logística para organizar seus centros de distribuição, inclusive o abastecimento de estoque das lojas físicas, e o envio de cerca de 2 milhões de pacotes por mês. Compartilhar tempos de visita precisos e inviabilidades o mais cedo possível ajuda economizar combustível, reduzir a pegada CO2, encurtar o tempo de entrega para o consumidor e ainda reduzir a carga de trabalho de seus prestadores. “A quantidade de dados ligados ao varejo, que incluem as proprietárias de cada empresa, mas também informações públicas como trânsito, clima, calendário, é astronômica, e isso faz os modelos de predição serem muito precisos, o que gera uma produtividade impossível de alcançar sem eles.

O chefe da Advocacia-Geral da União, Jorge Messias
MODERNIZAÇÃO – Advocacia Geral da União lidera os esforços para melhorar o serviço público (Renato Menezes/Ascom/AGU/.)

O setor público também tem muito a ganhar com a IA, prestando um serviço melhor à população sem precisar aumentar o gasto do dinheiro dos impostos. A Advocacia-Geral da União (AGU), instituição responsável pela representação judicial da União, está em fase de testes com uma ferramenta que usa a tecnologia do ChatGPT-4 integrada ao Sapiens, gerenciador eletrônico de documentos da AGU com o objetivo de analisar 20 milhões de processos judiciais, em uma média de 10 mil citações por dia , além de 80 mil intimações diárias. A ideia é que o algoritmo consiga dar um alto grau de acerto na previsão de resultados de casos, inclusive buscando jurisprudência e apontando as melhores estratégias para os advogados do órgão usarem nos tribunais. O programa também pode gerar resumos, e auxiliar na elaboração de apelações e decisões. Não para substituir o trabalho dos funcionários, mas permitir que seu tempo seja usado de forma mais eficiente. “Nós esperamos que, a médio e longo prazo, possamos nos dedicar mais ao trabalho estratégico, como o acompanhamento mais próximo das demandas das políticas públicas que estão sendo gestadas e implementadas”, explica Alexandre Colares, secretário de Governança e Gestão Estratégica da AGU.

A maioria das companhias ainda está em seu primeiro ano de implementação dos aplicativos de IA, e os resultados são ótimos. A se continuar assim, a previsão de Brynjolfsson de que o crescimento de produtividade irá dobrar em dez anos pode chegar antes do previsto.

A ética das máquinas

'2001 - UMA ODISSEIA NO ESPAÇO' - O medo do futuro retratado nas ficções de antigamente
‘2001 – UMA ODISSEIA NO ESPAÇO’ – O medo do futuro retratado nas ficções de antigamente (./Divulgação)

Na mesma medida que empresários, acadêmicos e governantes se empolgam com o potencial de resolução de problemas e de produtividade da inteligência artificial, surgem preocupações com as possíveis consequências nefastas da disseminação dessas ferramentas na sociedade. Especialmente porque, além do mau uso que pessoas mal intencionadas podem fazer da tecnologia – qualquer tecnologia – a IA tem a peculiaridade inédita de ser uma ferramenta que toma decisões de forma autônoma. Pela primeira vez na história, a discussão ética vai além das ações humanas. Está nas mãos da sociedade, hoje, lidar na prática com problemas que eram até recentemente trabalhados só em exercícios hipotéticos de artigos acadêmicos e obras de ficção. “A inteligência artificial é a tecnologia mais poderosa que a humanidade já criou, e é crucial que pensemos cuidadosamente sobre suas implicações éticas antes que seja tarde demais”, alerta Nick Bostrom, fundador do Instituto para o Futuro da Humanidade da Universidade de Oxford.

Em resumo, os principais pontos de discussão entre especialistas hoje são:

  • Vieses e Discriminação:
    Algoritmos de IA são treinados em conjuntos de dados que podem conter vieses e estereótipos presentes na sociedade. Isso pode levar à discriminação de grupos minoritários em áreas como recrutamento, concessão de crédito e até mesmo na justiça criminal. Em 2016, um chatbot da Microsoft precisou ser desativado em menos de 24 horas depois que, em suas interações com usuários do Twitter, ele fez posts celebrando Hitler, entre outras barbaridades racistas e sexistas. Na tentativa de evitar um problema similar, o Google incorporou em seu chatbot esse ano instruções para promover diversidade e tolerância que resultaram em imagens de mulheres negras como senadoras dos Estados Unidos em 1800 – sem exceção, todos os políticos americanos eleitos no século XVII eram homens brancos.
  • Transparência e Explicabilidade:
    As decisões tomadas por sistemas de IA muitas vezes são opacas e difíceis de entender até para os engenheiros que os programaram. Isso pode gerar desconfiança e dificultar a responsabilização por erros ou decisões injustas.
  • Privacidade e Segurança:
    A IA exige a coleta e o armazenamento de grandes volumes de dados pessoais, o que levanta preocupações sobre privacidade e segurança. O uso indevido desses dados pode levar a violações de privacidade e até mesmo à manipulação de indivíduos e grupos.
  • Propriedade Intelectual:
    Da mesma forma, a IA usa toda a produção intelectual e criativa disponível para gerar o que quer que seja pedido dela. Isso levanta questões graves sobre propriedade intelectual e direitos autorais.
  • Impacto no Mercado de Trabalho:
    Se por um lado o aumento da produtividade dos trabalhadores os torna melhores, por outro pode levar à falta de necessidade de pessoas para a realização de tarefas, e um consequente desemprego em massa, especialmente em setores que exigem pouca qualificação. É necessário pensar em soluções para garantir a reinserção profissional dos trabalhadores afetados.
  • Autonomia e Controle Humano:
    A IA levanta questões sobre o controle humano sobre sistemas autônomos. É crucial estabelecer limites para a autonomia da IA e garantir que os seres humanos mantenham o controle sobre decisões importantes.
  • Armas Autônomas Letais:
    A IA pode ser utilizada para desenvolver armas autônomas letais, que podem levar a uma escalada de conflitos e à perda de vidas. É necessário um debate global sobre a ética do uso da IA em armas autônomas.
  • Dignidade Humana e Bem-Estar Social:
    A IA deve ser desenvolvida e utilizada de forma a promover a dignidade humana e o bem-estar social. É preciso pensar em como a IA pode ser utilizada para resolver problemas sociais e melhorar a vida das pessoas.

O primeiro passo é discutir o problema. E isso está sendo feito. Todas as empresas citadas nas reportagens deste VEJA Insights, das gigantes multinacionais Google e Microsoft, às companhias brasileiras como Pernambucanas e B3, contam com códigos de ética e comitês para discutir essas questões. O Poder Público também está atento, e no fim de fevereiro o TSE. No fim de fevereiro, por exemplo, o Tribunal Superior Eleitoral determinou que conteúdos de campanhas eleitorais que tenham sido desenvolvidos com a ajuda de IA devem ser sinalizados. Já manipulações de conteúdo falso para criar ou substituir imagem ou voz (conhecidas como deepfakes) de pessoas com objetivo de prejudicar ou favorecer candidaturas estão proibidas, assim como o uso de chatbots e avatares para intermediar a comunicação das campanhas com o público.

Não há resposta fácil para nenhuma dessas questões, e certamente há de surgir outras que ainda mais difíceis que ainda nem se imagina. As redes sociais surgiram no início do século, e ainda hoje se discute se deve ou não regulá-las, e de que maneira. Mas como não se tem notícia de lei ou força bruta que tenha impedido o desenvolvimento de uma tecnologia, é fundamental trabalhar para se extrair sempre o melhor que elas podem oferecer.

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