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Governadores voltam a pedir socorro à União para pagar dívidas, apesar de continuarem gastando mais do que podem. Dá para acreditar que será a última vez?

Por Bianca Alvarenga Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 9 nov 2018, 07h00 - Publicado em 9 nov 2018, 07h00

O Brasil ainda era uma colônia de Portugal, e governadores das províncias já buscavam empréstimos com a Coroa para financiar a máquina pública. A prática, perpe­tua­da ao longo da história, tornou-­se uma triste tradição. O país ficou independente, virou monarquia, depois república, passou por dezenas de administrações, mas governadores nunca deixaram de usar o mecanismo do crédito para financiar suas más administrações. Um levantamento do Tesouro Nacional mostra que, só nos últimos trinta anos, a União perdoou, refinanciou ou assumiu mais de 680 bilhões de reais em dívidas contraídas pelos estados. Trata-se de dinheiro do contribuinte, que poderia ter sido utilizado em serviços públicos, ou mesmo para corte de impostos. O levantamento expõe um histórico vergonhoso de arranjos entre o governo central e administrações locais que acabaram avalizando o descontrole das finanças públicas. Diz o texto do Tesouro Nacional: “O alto endividamento (dos estados) pode ser atribuído, entre outros motivos, à existência de regras flexíveis e à ocorrência de risco moral, derivado da expectativa de algum tipo de salvamento pelo governo federal”. Ou seja, governadores lidaram com as finanças dos estados sem zelo, na certeza de que seriam socorridos quando a conta chegasse.

O último episódio de crise nas finanças estaduais deu-se em 2016, quando Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul, os casos mais agudos, chegaram a ficar sem dinheiro para pagar a servidores e aposentados. Houve greves e falta de recursos para os serviços de saúde, educação e segurança. Na época, governadores foram ao Supremo Tribunal Federal pedir a interrupção do pagamento dos empréstimos com a União. Conseguiram o que queriam, e o governo federal foi obrigado a sentar-se para negociar — o que não ocorria desde os anos 2000. Foram refinanciadas as dívidas em um prazo de vinte anos, e as parcelas mensais ganharam desconto. Como contrapartida, os estados deveriam cumprir uma série de exigências, como o congelamento das contratações e o atendimento à chamada regra do teto dos gastos, que impõe um limite ao crescimento das despesas.

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Agora, secretários da Fazenda e outros representantes estaduais estão batendo à porta do Tesouro para tentar mudar os termos da negociação de 2016. Não a parte que os beneficia, que fique claro. Sem sequer corarem, eles alegam que treze dos dezenove estados não cumprirão a regra do teto dos gastos. Procurado, o Tesouro diz que, de acordo com as previsões, serão sete os estados desenquadrados, e não treze. A preocupação de governadores em fim de mandato pode parecer estranha, mas não é sem razão: quem descumpre as contrapartidas tem os benefícios cancelados. Os atuais gestores não querem devolver recursos ao Tesouro, pois precisariam honrar retroativamente todo o desconto que tiveram no pagamento da dívida. Para resolverem o imbróglio, pleiteiam mudar as regras que eles mesmos assinaram. Querem aumentar os gastos de acordo com o crescimento das receitas, e não segundo a inflação, como determina a lei. Ótimo negócio para os gastões: com o início da recuperação econômica, a tendência é que a arrecadação suba, o que daria espaço para voltar a esbanjar. “É um sinal muito ruim para os futuros governantes, e adia a solução do problema real”, diz Raul Velloso, consultor em contas públicas.

Diante do tamanho e da urgência do problema, é difícil escapar de uma renegociação. Mas é imperativo que governadores cortem despesas e façam planos emergenciais. “O pagamento de servidores e aposentados é o principal ralo de dinheiro. Os estados precisam criar fundos de previdência para aliviar o orçamento”, afirma Velloso. Hoje, há dezessete estados gastando mais do que a lei permite com salários e aposentadorias. Em alguns casos, como o do Rio de Janeiro e o do Rio Grande do Norte, a rubrica consome mais de 80% da arrecadação. Sobra muito pouco para o restante. Nos últimos anos, estados usaram e abusaram da contabilidade criativa para burlar o limite do pagamento de pessoal. “Despesas de custeio como o auxílio-moradia não são contabilizadas na folha. O problema é ainda maior do que parece”, diz Ana Carla Abrão, ex-secretária da Fazenda de Goiás. A União fez vista grossa, e as administrações de Lula e Dilma avalizaram empréstimos a estados que já estavam trapaceando. É uma bomba armada ao longo de anos.

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A pressão não vem somente das gestões em exercício. Os governadores recém-eleitos também pressionam a União. Querem mais uma rodada de prolongamento de dívidas e perdão temporário. Wilson Witzel, o futuro mandatário fluminense, chegou a dizer durante a campanha que vai propor uma extensão do pagamento da dívida em 100 anos. Romeu Zema, de Minas Gerais, também falou em pedir socorro. Mas sem contrapartida: governadores mostraram-se resistentes, durante a campanha, a privatizar estatais, por exemplo. Witzel nem cogita abrir mão da Cedae, companhia de saneamento do Rio, embora a empresa já tenha sido dada como garantia de um empréstimo e possa, em teoria, ser tomada pela União.

O documento divulgado pelo Tesouro mostra que a equipe de Temer não está disposta a ceder às pressões, mas a turma perdulária não se preocupa com isso: sabe que o assunto vai acabar caindo no colo da próxima gestão, a quem caberá desarmar a bomba. Cientes de que há precedentes para a obtenção de liminares no STF para interromper o pagamento, os governadores devem judicializar a questão. A exemplo do que aconteceu com Temer, Jair Bolsonaro provavelmente terá de se sentar com os estados para negociar. Infelizmente, tudo leva a crer que essa nefasta tradição brasileira não vai morrer tão cedo.

Publicado em VEJA de 14 de novembro de 2018, edição nº 2608

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