Proposta de redução da jornada traz benefícios, mas custos econômicos são altos
Enquanto a discussão acerca das consequências para a economia é delicada, há pouca discórdia sobre o ganho em qualidade de vida para o trabalhador
A aspiração de reduzir oficialmente o teto de 44 horas de trabalho permitido por semana no Brasil não é nova. O Congresso Nacional acumula uma dezena de propostas, apresentadas e engavetadas desde pelo menos 1991, que nunca chegaram sequer a ser discutidas. Foi só em novembro de 2024, já no mundo superconectado das redes sociais, que o tema ganhou impulso e em poucos dias provocou um debate nacional. Uma coleção de reclamações e memes viralizados após as eleições municipais de outubro acabou por trazer para os holofotes o mais jovem desses projetos: uma proposta de emenda à Constituição (PEC) apresentada ainda em maio pela deputada Erika Hilton (PSOL-SP) e que estava tão esquecida quanto todas as anteriores. Em dez dias, as 71 assinaturas da Câmara em que a proposição tinha estacionado subiram para 235, na contagem atualizada pela equipe da parlamentar, na quarta-feira 20. Já é uma respeitável folga sobre o apoio mínimo de 171 deputados de que uma tentativa de mudança na Constituição precisa para começar a tramitar.
Mais arrojado que os anteriores, o projeto de redução de jornada de Hilton desce direto das atuais 44 horas semanais para 36, limitadas, pelo texto, a oito horas diárias e quatro dias por semana. E sem redução de salário, direito que já é previsto pela própria Constituição. É o protótipo brasileiro do movimento pela semana de quatro dias que ganha fôlego no mundo. Na prática, porém, a PEC do PSOL se popularizou por colocar em debate o 6×1, a disseminada escala brasileira de seis dias de trabalho e um de descanso que move serviços tão diversos quanto supermercados, hospitais, farmácias, restaurantes, hotéis, centrais de atendimento, transporte público e tantos outros.
A proposta tem, de um lado, trabalhadores ávidos pela aprovação e, de outro, empresários agoniados sobre como se adaptariam a ela. No meio, estão pesquisadores, os fatos históricos e décadas de estudos que tentam mensurar tanto os benefícios quanto os prejuízos que vêm com qualquer mudança de paradigma. “Só reduzir a jornada, com o mesmo salário e sem nenhuma compensação, teria diversos impactos negativos sobre o emprego”, diz o economista Gustavo Gonzaga, professor da PUC-Rio, que pesquisa os efeitos econômicos das legislações trabalhistas. “É uma discussão legítima e uma escolha a ser feita pela sociedade, mas essa escolha tem implicações e é fundamental conhecê-las.”
O inevitável aumento de custos para as empresas — que terão de reduzir o tempo de funcionamento dos negócios ou contratar mais funcionários — é o efeito mais direto. Isso pode se desdobrar em menos vendas, aumento de preços e até demissões. “Com 36 horas de jornada, precisaríamos colocar um terço a mais de gente”, calcula Jesse de Andrade, que tem atualmente 65 funcionários em seu restaurante, o badalado Josephine, na Zona Sul de São Paulo, aberto de segunda a segunda. A folha de pagamento responde por 45% de seus custos. “Talvez eu acabe fechando às terças-feiras, que têm pouco movimento”, diz Danilo Loffredo, dono de uma pequena pizzaria. “O principal problema é perder espaço para os concorrentes maiores, que conseguem fazer escala e continuar abrindo.”
Um dia a menos de trabalho resultará em queda de vendas para Loffredo. Multiplique-se essa nova realidade para todo o território nacional e o que se vê é um impacto significativo no produto interno bruto. No cenário mais apocalíptico, a queda poderia chegar a 8%, de acordo com uma conta feita pelo economista Daniel Duque, pesquisador do mercado de trabalho no Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getulio Vargas. É quanto a economia perderia em um ano com a redução brusca para a jornada 4×3 (quatro dias de trabalho e três de folga), considerando também um efeito recessivo adicional pelo possível aumento do desemprego. “Muitas empresas não conseguem absorver o aumento de custos e reduzem a operação ou mesmo fecham, o que gera demissões”, diz Duque. E haveria queda até mesmo no cenário mais otimista. Com uma redução de jornada menor, para quarenta horas e cinco dias por semana, que não leve a nenhuma piora do emprego e já considerando algum ganho na produtividade desses trabalhadores, a retração seria da ordem de 2% do PIB, de acordo com ele.
As premissas usadas pelo pesquisador replicam o que ocorreu em outros países. Em Portugal, que reduziu em 1996 a jornada semanal de 44 para quarenta horas, o saldo dos primeiros anos foi negativo: os trabalhadores passaram a produzir 4,4% mais por hora, mas o ganho não compensou a queda de 6% nas vendas das empresas atingidas, conforme um estudo feito em 2022 na Paris School of Economics e na Universidad Carlos III de Madrid. Na França, um dos primeiros países a adotar a semana de 35 horas, em 2000, pesquisadores do Fundo Monetário Internacional detectaram que, nos setores afetados, houve redução do emprego, mesmo que a intenção do governo francês com a medida fosse aumentar a oferta de trabalho.
O Brasil já passou por reduções de jornada. O limite de oito horas diárias veio com o presidente Getulio Vargas, nos anos de 1930. Depois, a Constituição de 1988 encurtou o máximo semanal, que era de 48 horas, para as 44 que valem até hoje em dia. Os números indicam que os prejuízos foram pequenos ou se diluíram ao longo do tempo. “As horas trabalhadas caíram, o salário por hora aumentou e não detectamos aumento no desemprego”, diz Naercio Menezes Filho, pesquisador do Insper especializado em políticas públicas e que participou, em 2002, de um estudo que investigou o comportamento do mercado de trabalho após o corte de horas feito pela Constituição. Em sua opinião, a redução para 36 horas, ponto de que parte a PEC de Erika Hilton, é drástica e custosa, mas um ajuste para quarenta horas pode trazer benefícios. “É uma coisa que deve ser feita com cautela, sem ser imposta, e com muito debate”, afirma Menezes Filho.
Enquanto a discussão acerca das consequências econômicas é delicada, há pouca discórdia sobre o ganho em qualidade de vida que alguma revisão daria aos milhares de empregados que hoje trabalham na escala 6×1. “Não tenho tempo com a minha família e, nos dias que teria para lazer, fico tão esgotado que não quero sair de casa”, diz Maycon Lima, de 22 anos, auxiliar de peixaria em um supermercado. Seu plano é estudar para prestar concurso público ou poder mudar para algo diferente, mas, com apenas um dia livre na semana, falta tempo. “Estudo no trem e nos poucos momentos que tenho na minha folga”, afirma. Embora possa ser considerada positiva em alguns aspectos, a mudança da jornada traria impactos relevantes, como mais custos para os negócios e perdas no PIB. Para um país em estágio de desenvolvimento ainda intermediário e com necessidade de crescer, é algo que precisa, antes de tudo, ser debatido de forma ampla e sensata.
Publicado em VEJA de 22 de novembro de 2024, edição nº 2920