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Projeto para reformular o IR está pronto para tramitar, mas acumula desafios

A questão é se vai corrigir as profundas distorções que marcam o modelo fiscal brasileiro

Por Juliana Elias Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO 4 Maio 2025, 08h00

A aprovação definitiva, no início deste ano, da reforma tributária que redesenhou o caótico sistema brasileiro de impostos sobre o consumo representou um marco histórico para o país. A nova legislação, em tese, simplifica e moderniza a cobrança de tributos sobre bens e serviços e, ao longo dos próximos anos, deverá aproximar o Brasil dos modelos adotados por economias mais desenvolvidas, ao mesmo tempo que afasta o país das distorções que comprometem a eficiência produtiva. No entanto, a tributação sobre o consumo é apenas uma parte do intrincado sistema de impostos. A próxima grande anomalia a ser enfrentada já está na fila: o imposto sobre a renda — cobrado diretamente do que as pessoas ganham e as empresas lucram e que ainda carrega injustiças, complexidades e brechas que pedem, há décadas, por correção.

O imposto de renda no Brasil está longe de seguir as melhores práticas internacionais. Trata-se de uma pirâmide mal estruturada, na qual os mais ricos contribuem proporcionalmente menos, enquanto a classe média, os trabalhadores de baixa renda, as empresas e os consumidores arcam com uma carga maior do que deveriam. Essa distorção compromete a justiça tributária, reduz o poder de compra dos que vivem com orçamento apertado, pressiona os preços, enfraquece a competitividade da indústria e, sobretudo, perpetua a desigualdade social.

PROBLEMA - Favela em São Paulo: Brasil é um dos países mais desiguais do mundo
PROBLEMA - Favela em São Paulo: Brasil é um dos países mais desiguais do mundo (Paulo Fridman/Getty Images)

Nos últimos trinta anos, a carga tributária subiu de 25% para 32% do produto interno bruto (PIB), refletindo o crescimento dos gastos públicos — que, no fim das contas, determinam o volume de arrecadação. O corte de tributos, portanto, exige necessariamente enxugar as despesas do Estado. Ainda assim, essa seria apenas uma parte da solução. É necessário também atacar as distorções internas do sistema. “Não só quem ganha mais paga menos, como também pessoas que ganham a mesma coisa têm cargas tributárias muito distintas, por causa de uma multiplicidade de tratamentos diferenciados que criamos”, diz Sérgio Gobetti, pesquisador do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada e um dos principais estudiosos do tema no país. “Isso não só é injusto, como ineficiente.”

O governo Lula já deu o primeiro passo na segunda etapa da reforma tributária, desta vez voltada ao imposto de renda. Em março, o presidente e o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, apresentaram um projeto de lei que altera pontualmente a tributação sobre pessoas físicas, mas a proposta é tão restrita que dificilmente pode ser chamada de reforma. Trata-se, na prática, de uma iniciativa para cumprir uma das principais promessas de campanha do presidente: isentar do IR os brasileiros que ganham até 5 000 reais por mês. Para compensar a perda de arrecadação, estimada em 25 bilhões de reais, o projeto propõe aumentar a carga tributária dos mais ricos, com a criação de uma alíquota mínima de 10% para quem ganha acima de 1,2 milhão de reais por ano (ou 100 000 reais por mês) e de até 10% para rendimentos mensais entre 50 000 e 100 000 reais. “Não é a reforma ideal, mas melhora a alocação dos tributos e pode contribuir para um crescimento econômico um pouco mais equilibrado”, afirma Manoel Pires, coordenador do Centro de Política Fiscal da Fundação Getulio Vargas e ex-secretário do Ministério da Fazenda. Na Câmara, o presidente Hugo Motta (Republicanos-­PB) nomeou o deputado Arthur Lira (PP-AL), seu antecessor, como relator da proposta e marcou para a terça-feira 6 a instalação da comissão especial que vai trabalhar no texto final. A expectativa é de que a votação ocorra no segundo semestre.

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artes eco renda

Dentre as várias distorções da tributação da renda no Brasil, a mais exorbitante é a isenção dos dividendos, que são uma fatia do lucro paga aos donos das empresas. Só em nações como Estônia, Letônia, Malásia e Emirados Árabes os dividendos também são isentos, de acordo com o pesquisador do Ipea Pedro Humberto de Carvalho Junior. “Nos outros países, a alíquota costuma variar de 15% a 25%”, diz ele. O resultado é chocante: entre os 5% mais ricos da população, a participação de salários e rendas tributadas no total dos ganhos praticamente desaparece, sendo substituída quase inteiramente por dividendos. No topo do topo — o 0,1% mais rico —, as chamadas rendas do capital representam cerca de 70% da renda total. Como consequência, a alíquota efetiva do IR desaba. Estudos de Carvalho e do também pesquisador Gobetti mostram que esse grupo, com ganhos superiores a 1 milhão de reais por mês, paga em média apenas 6% de imposto, o mesmo percentual desembolsado por alguém que ganha 7 300 reais. Para efeito de comparação, nos Estados Unidos, o 1% mais rico contribui com uma alíquota média de 26%, de acordo com a organização Tax Foundation.

O alívio concedido justamente a quem mais poderia contribuir é o que sustenta grande parte das distorções do sistema tributário brasileiro. Como a arrecadação sobre a renda é relativamente baixa, o peso recai sobre outras fontes. Atualmente, cerca de 40% da receita tributária do país vem de impostos sobre o consumo, enquanto apenas 30% são originados da tributação sobre a renda. É o oposto do que ocorre nos países da Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE), onde, em média, 37% da arrecadação vem da renda e apenas 30% do consumo. “Tributar o consumo é regressivo por natureza”, afirma Miguel Nôvo, presidente da Anfip, associação nacional dos auditores fiscais da Receita Federal. “O pobre paga o mesmo imposto que o rico sobre produtos como açúcar ou arroz, mas, proporcionalmente, esse valor pesa muito mais no orçamento de quem tem menor renda.”

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MISSÃO - Arthur Lira: deputado será o relator do projeto do IR e tem como meta aprovar o texto no segundo semestre
MISSÃO - Arthur Lira: deputado será o relator do projeto do IR e tem como meta aprovar o texto no segundo semestre (Bruno Spada/Câmara dos Deputados)

Outro problema está na forma como os lucros são tributados no Brasil. Com os dividendos isentos para pessoas físicas, o imposto sobre os lucros retidos pelas empresas acaba sendo excessivamente elevado: a alíquota chega a 34%, uma das mais altas do mundo. Nos países da OCDE, a taxa varia entre 12% e 30%. Esse descompasso tem sido um dos principais obstáculos à tributação dos dividendos no Brasil. Cobrar imposto sobre eles, sem reduzir de forma expressiva o   das empresas, elevaria a carga tributária total para os empresários, algo que gera forte resistência, por motivos óbvios.

Para contornar a questão, o projeto do governo prevê um limite: a soma do imposto pago pela empresa e pelo acionista não poderá ultrapassar os 34% atuais. Mesmo assim, a proposta enfrenta oposição. “Isso vai prejudicar milhares de profissionais liberais e pequenas empresas que já pagaram o imposto em sua empresa e terão mais tributação depois”, argumenta o senador Ciro Nogueira, presidente do mesmo PP do relator Arthur Lira. O partido apresentou uma proposta alternativa na Câmara que suaviza a cobrança para uma parcela ainda menor dos super-ricos e, em contrapartida, propõe a redução de subsídios concedidos às empresas.

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Os especialistas argumentam, por outro lado, que mesmo a tributação sobre as empresas já é significativamente menor do que sugere a alíquota formal de 34%, devido à ampla gama de regimes especiais como o Simples Nacional e o lucro presumido. Esses modelos permitem que empresas paguem   alíquotas que podem chegar a apenas 5% sobre o lucro. “Há muito milionário que paga pouco de imposto na empresa e ainda é totalmente isento como pessoa física”, diz Sérgio Gobetti, do Ipea. “Isso, no mínimo, precisa ser corrigido.” Fechar essa conta está longe de ser simples, sobretudo no contexto de um país no qual boa parte do dinheiro recolhido nos impostos não retorna de forma adequada a áreas essenciais como saúde, educação e segurança — o recente escândalo do INSS é mais um exemplo disso. Uma política tributária mais justa e racional precisa vir acompanhada de uma estrutura estatal mais enxuta e eficiente. Como se vê, não são poucos os desafios que o Brasil precisa enfrentar com urgência nesse campo.

Publicado em VEJA de 2 de maio de 2025, edição nº 2942

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