Privatização da Sabesp mostra oportunidades e desafios do setor de saneamento
Desestatização da companhia paulista e chegada da Equatorial abrem novas perspectivas, mas os percalços para a universalização do saneamento básico persistem
A entrada do Grupo Equatorial como investidor de referência da Sabesp, a companhia de saneamento básico do estado de São Paulo, mexeu de vez com o tabuleiro do setor. Um investidor de referência é aquele que detém uma participação significativa no capital da empresa, com poder de influenciar as decisões estratégicas e operacionais. O aporte planejado de 69 bilhões de reais em cinco anos, visando à universalização dos serviços de água e esgoto até 2029, representa dois terços dos 104 bilhões de reais anunciados para contratos similares em todo o país nos últimos quatro anos. Com isso, 22% dos municípios brasileiros, abrangendo cerca de 70 milhões de habitantes, agora contam com operadores privados.
O marco regulatório do saneamento básico, de 2020, estabelece que 99% da população brasileira tenha acesso a água e 90% a coleta e tratamento de esgoto até 2033. O estado de São Paulo tem, em média, números próximos disso: 95,2% de acesso a água, 90,5% de coleta de esgoto e 88,2% de tratamento. Mas alguns municípios populosos atendidos pela Sabesp mantêm índices baixíssimos de tratamento de esgoto, inferiores a 40%, caso de Guarulhos, Cotia, Itaquaquecetuba, Carapicuíba, Osasco e Barueri.
Historicamente, a Sabesp responde por 30% dos investimentos em saneamento básico no Brasil. O consultor Gesner Oliveira, sócio da GO Associados e presidente da estatal de 2007 a 2011, acredita que a entrada do capital privado é capaz de aumentar ainda mais a capacidade de investimento da companhia paulista. “A Sabesp já tinha um plano de investimento ambicioso, porém insuficiente para acelerar a universalização, antecipada para 2029”, diz Oliveira.
O governo paulista arrecadou 14,8 bilhões de reais com a venda de 32% das ações da Sabesp — 15% compradas pela Equatorial e 17% por investidores na bolsa. Se o plano der certo, a tarifa que será cobrada dos usuários será financiada por um fundo de apoio à universalização do saneamento, provisionado por 4,4 bilhões de reais obtidos na venda e pelos dividendos que o governo continuará recebendo por manter 18% das ações da Sabesp. Dessa conta, espera-se que as tarifas caiam 1% para clientes residenciais e 10% para os consumidores de baixa renda.
Para Luiz Firmino Pereira, pesquisador do Centro de Estudos em Regulação e Infraestrutura (Ceri) da Fundação Getulio Vargas, a nova formatação da Sabesp facilita o cumprimento das metas de universalização definidas pela Lei 14.026/2020, o mais recente marco regulatório do saneamento. “Quando o país editou a Lei do Saneamento, em 2007, vinha-se de um momento de muita incerteza nos contratos do setor no Brasil, pois muitos deles não tinham metas nem prazos determinados de cobertura dos serviços, redução das perdas na distribuição ou ampliação do tratamento de esgoto”, afirma Pereira.
A meta de universalização dos serviços de água e esgoto vai exigir que as obras iniciadas sejam efetivamente entregues nos próximos nove anos no Brasil. Mas um estudo do Ceri constatou que apenas 65% das obras de saneamento contratadas pelo setor público após a lei de 2007 foram concluídas nesse intervalo de tempo, ante 100% na iniciativa privada. Os analistas esperam que a Sabesp tire proveito dessa agilidade do investidor privado e acelere o cumprimento da meta nos próximos cinco anos para, então, atacar outros desafios do setor.
Redução de desperdício
Um dos gargalos são os prejuízos causados pelas perdas de água na distribuição, indica o Instituto Trata Brasil. Tomando por base os dados de 2022 do Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento (SNIS), as empresas perdem anualmente 3,6 trilhões de litros de água devido a vazamentos na rede ocorridos antes dos hidrômetros dos consumidores. É um volume tão impressionante que daria para abastecer quase um quarto da população brasileira, além de permitir dimensionar o impacto ambiental sobre um recurso cada vez mais valioso frente aos eventos climáticos extremos frequentes.
No estado de São Paulo, 34% da água tratada é desperdiçada na distribuição, um pouco abaixo da média nacional, de quase 38%. Apesar de todos os investimentos em melhoria da rede e da capacidade técnica, o estado ainda perde 23% do faturamento no confronto entre o volume que produz nas estações de tratamento e aquele que deixa de cobrar posteriormente por vazamentos. A consultoria GO Associados estima um potencial de ganhos de 20,4 bilhões de reais até 2034, já descontados os investimentos, se todas as empresas de saneamento reduzirem as perdas para 25%, limite estipulado por portaria da União e baseado no aceitável pela literatura especializada.
Supõe-se que a Sabesp dedique os próximos cinco anos à universalização dos serviços e, de 2029 em diante, passe a atacar as perdas de água. A Equatorial não concedeu entrevista para falar sobre planos, alegando período de silêncio até a convocação da assembleia geral de acionistas e a definição da nova gestão. Essa será uma decisão relevante. A redução do desperdício depende de investimentos constantes tanto na operação do sistema de distribuição de água quanto na substituição de tubulação, no uso de tecnologia para a identificação dos vazamentos e na celeridade no conserto das fugas.
No ritmo dos últimos cinco anos, apenas nove das 100 cidades mais populosas do Brasil atenderam ao limite de desperdício determinado para 2034. Uma equação tão complexa que Cariacica, na região metropolitana de Vitória, no Espírito Santo, é o município que mais evoluiu na solução das perdas e atingiu a meta de 25% em 2022, mas permanece na parte de baixo do ranking do saneamento, com água tratada para 84,7% e coleta de esgoto para 35,5% da população. Com ou sem investimento privado, a melhoria da rede de distribuição vai exigir um esforço maior do que o feito até agora. “Não podemos olhar para o passado e querer fazer a mesma coisa para projetar o futuro”, diz Luana Pretto, presidente-executiva do Instituto Trata Brasil.
Da energia elétrica à água
A pouca experiência da Equatorial em saneamento básico é uma das incertezas desse novo arranjo, especialmente considerando a complexidade dos desafios do setor. Até o momento, a única operação do grupo no setor é a CSA, empresa criada depois do arremate da concessão dos serviços de água e esgoto no Amapá, em 2021. Até agora, apenas 46,9% da população do estado têm acesso a água tratada e 5,4% a coleta de esgoto. A Equatorial atua principalmente no setor de distribuição de energia elétrica, além de explorar negócios em linhas de transmissão, produção de energias renováveis e telecomunicações.
Embora o setor elétrico e o de saneamento apresentem particularidades, ambos são regulados pelo Estado e exigem investimentos de longo prazo. Segundo Gesner Oliveira, essa experiência no setor elétrico pode ser um diferencial importante. “Mesmo não sendo ineficiente, a Sabesp tende a ganhar em operação e produtividade com um acionista de referência como a Equatorial. A empresa ficará mais ágil porque serão retiradas amarras muito fortes que qualquer estatal tem.”
As mudanças na legislação do saneamento básico desde 2007 já permitem que a Sabesp atue fora do estado de São Paulo. Dentro de um setor pressionado por resultados e prazos, o maior poder de atração de investidores e presteza na contratação de obras e materiais podem reforçar essa tendência depois de 2029, caso a universalização seja alcançada. “O saneamento precisa de escala, e a Sabesp tem muito a oferecer para outros estados do Brasil, para países da América Latina e, me atreveria a dizer, para diversos países emergentes da África e da Ásia”, diz Oliveira.
Uma questão em aberto é se o modelo da Sabesp pode ser replicado em outras regiões do Brasil. A empresa, com forte desempenho operacional e potencial de mercado, foi uma das joias da privatização. No entanto, o leilão de privatização da Agespisa, do Piauí, marcado para 14 de agosto, foi adiado por falta de propostas. Para 4 de setembro, está previsto o da Deso, de Sergipe. Segundo Christianne Dias Ferreira, diretora-executiva da Abcon, associação que reúne as concessionárias privadas de serviços públicos de água e esgoto, o sucesso dos investimentos dependerá de segurança jurídica, do equilíbrio dos contratos e do cumprimento rigoroso das metas, monitorado por cerca de 100 agências reguladoras estaduais, municipais e intermunicipais. Iniciado o jogo, não dá para mudar as regras. Muita água haverá de rolar.
Publicado em VEJA, agosto de 2024, edição VEJA Negócios nº 5