Por que especialistas acham difícil cancelar o contrato da Enel em SP
Clamores por revisão da concessão voltaram à tona após apagão na capital na semana passada, mas procedimento pode ser custoso e pouco efetivo
O apagão que deixou milhares de moradores sem luz por dias na semana passada após um vendaval em São Paulo reacendeu o debate e os clamores populares pelo cancelamento do contrato da Enel, concessionária responsável pela distribuição de energia na cidade. De acordo com especialistas, entretanto, a cassação da concessão, um recurso até hoje não usado pelo governo nos seus contratos com as distribuidoras de todos os estados, é um processo demorado e que pode acabar sendo custoso para os próprios consumidores.
A chamada caducidade, ou seja, o cancelamento do contrato e a devolução da concessão, é o recurso mais extremo a que o contratante – a União, nesse caso – pode recorrer em caso de descontentamento com o que está sendo entregue. O dono formal do contrato, e quem decide cancelá-lo ou não, é o Ministério de Minas e Energia, o representante oficial da União nas concessões de energia do país. Ele só pode fazer isso, entretanto, após comprovação detalhada de descumprimento apresentada pela Aneel, a sua parceira responsável pela fiscalização.
“A caducidade é a penalidade extrema e não necessariamente a mais fácil”, diz a advogada Daniela Gomes Afonso, chefe de energia do escritório Souza Okawa Advogados. “Tem que tirar a operação da companhia e transferi-la para o próprio governo até que seja feita uma relicitação, porque a população não pode ficar desassistida.. Imagina fazer isso em uma área com o tamanho da Enel? É um custo enorme e que não resolve o problema imediatamente.”
O cancelamento do contrato público está previsto na lei que criou as concessões no Brasil (Lei 8.987), de 1995, e só pode ser acionado em situações específicas, o que inclui a empresa estar operando aquém das metas estabelecidas, estar inadimplente com suas multas ou entrar em uma situação financeira insustentável. Todas essas situações devem ser detalhadamente protocoladas pela Aneel e a companhia deve ter garantido um amplo direito de defesa, além de um período de correção antes que a extinção do contrato possa ser oficialmente declarada pelo MME. Além disso, parte dos investimentos feitos por ela, e que continurão sendo usados pelos clientes e os novos donos, deverão ser indenizados pelos cofres públicos.
É um caminho tão espinhoso que foi ensaiado poucas vezes e, em nenhuma delas, levado às vias de fato – a Aneel chegou a recomendar a cassação da Companhia de Eletricidade do Amapá (CEA), em 2007, e da Amazonas Energia, em 2023, ambas chafurdadas em dívidas bilionárias não pagas acumuladas ao longo de anos.
Outros caminhos um pouco menos dolorosos e também testados com cautela foram as intervenções, em que o governo federal passa a participar temporariamente da administração da companhia para saneá-la, e a reestruturação, em que, também com ajuda do corpo federal, a concessionária em crise é vendida ou transferida para outro controlador.
Mal no ranking
A Enel não figura exatamente no panteão das empresas mais eficientes, mas está, de toda maneira, ainda distante do colapso financeiro de suas colegas que passaram por intervenção. No ranking de qualidade feito anualmente pela Aneel, a Enel paulista apareceu na 21a primeira posição entre as 29 maiores distribuidoras avaliadas em 2023, com uma pontuação de 0,82 no índice de Desempenho Global de Continuidade (DGC). É uma nota que mede a frequência das quedas de energia na área de concessão das companhias e em quanto elas estão chegando perto ou não dos limites permitidos pela Aneel. Quanto menor o índice, melhor e mais estável o serviço. Notas abaixo de 1 indicam que a companhia está operando dentro dessas metas e, acima, significa que as estourou – o que ainda não é o caso da subsidiária italiana em São Paulo.
A piora dela em relação ao ano anterior foi notória: a nota que mede o grau de instabilidade da Enel SP subiu de 0,79 em 2022 para 0,82 em 2023 e a empresa regrediu da 19a para 21a posição. É, entretanto, um resultado muito melhor que o da sua antecessora AES Eletropaulo, que, em 2017, último ano antes de ser vendida, pontuava 1,3 no Desempenho Global de Continuidade, ou seja, as quedas de energia eram mais intensas e já haviam extrapolado as metas da Aneel.
Metas frouxas
“As metas de qualidade exigidas, como estão nas regulações atuais, têm as chamadas estruturas de expurgo, que excluem da conta algumas situações, caso dos eventos extremos”, explica Ricardo Brandão, diretor de regulação da Abradee, associação que representa as distribuidoras públicas e privadas do país.
São duas as principais medidas monitoradas pela Aneel: a FEC (Frequência Equivalente de Interrupção), que conta quantas vezes as unidades ligadas ficaram sem energia no mês, e a DEC (Duração Equivalente de Interrupção), que diz o tempo médio que cada interrupção durou. O DGC é calculado a partir de uma média das duas, de maneira a colocar em uma escala padrão o quão instável está o fornecimento de energia da companhia.
“As distribuidoras são avaliadas pelo resultado dessas métricas em dias normais, porque pressupõe-se que elas não têm a mesma capacidade de atuação para as situações excepcionais”, diz Brandão, que já foi assessor especial do MME e procurador-geral da Aneel. “Se a queda de energia acontece em um dia de evento extremo, ela não conta para as metas.”
É uma regra branda e polêmica, mas o fato é que foi assim que foi celebrada a grande parte dos contratos atuais, feitos quase 30 anos atrás. Passar a incluir também os desabastecimentos causados em dias de eventos climáticos extremos é um dos principais pontos que devem mudar nas novas contratações – incluindo a leva de renovações que está para acontecer a partir do ano que vem. Entre 2025 e 2031, vencem 19 concessões de distribuidoras de energia feitas nos anos de 1990, incluindo a da Enel, que vigora até 2028. “Naquela época, a prioridade absoluta era ampliar a cobertura e levar energia a quem ainda não tinha”, diz Claudio Frischtak, presidente da Inter.B, consultoria especializada em infraestrutura. “E hoje há demandas que não existiam, como a necessidade de se colocar as mudanças climáticas na conta e exigir uma infraestrutura muito mais resistente, já que os eventos extremos ficaram muito mais frequentes.”
Culpa compartilhada
O pedaço responsável pelo abastecimento da capital da Eletropaulo, a antiga estatal de distribuição de energia do estado de São Paulo, foi privatizado em 1998 pelo governo do estado, comandado à época pelo governador tucano Mário Covas. Era uma das joias do Programa Estadual de Desestatização (PED) criado por Covas e comandado pelo seu vice-governador, o atual vice-presidente da República Geraldo Alckmin
Apesar de ser uma antiga companhia estadual, é o governo federal quem, desde o início, é o dono e responsável pela concessão – uma definição da Constituição de 1988, que garantiu à União a exclusividade na gestão de infraestruturas como a da energia elétrica, das ferrovias, portos e os aeroportos.
É por isso que, à despeito da confusão, cabe ao Ministério de Minas e Energia e, mais especificamente, à Aneel, a agência criada em 1997 para regular o setor que começava a ser privatizado, o controle do que acontece com as distribuidoras e todos os seus clientes país afora.
Isto não significa, porém, que este é um trabalho de uma pessoa só. No âmbito dos estados, há também as agências regionais, caso da Arsesp, a reguladora de serviços públicos de São Paulo. “A Aneel tem convênios com as agências regionais, por meio dos quais delega a elas algumas atribuições, especialmente a fiscalização das concessões”, explica Daniela, da Souza Okawa Advogados. Às prefeituras, por sua vez, cabe a responsabilidade por toda a manutenção da infraestrutura urbana, que inclui os postes de iluminação, a fiação, os semáforos e a poda das árvores.
No fim dessa cadeia há, é claro, a própria empresa, a quem cabe o básico de prestar o serviço essencial e regulado em que escolheu entrar com a qualidade e prontidão que os contratos que assinaram exigem. “Todos ali têm culpa no cartório, não tem nenhum inocente”, diz Claudio Frischtak, presidente da Inter.B, consultoria especializada em contratos públicos e projetos de infraestrutura.