Parecer interno da CVM discute denúncias relacionadas à operação bilionária do Magalu
Avaliação feita pelo órgão coloca em dúvida contabilidade da varejista na compra da empresa de comércio eletrônico KaBuM!

Um parecer técnico da Comissão de Valores Mobiliários (CVM) identificou falhas na documentação contábil do Magazine Luiza (Magalu) relacionadas à compra da empresa de comércio eletrônico KaBuM!, realizada em 2021. Segundo o parecer, há “incertezas” e “informações desencontradas” nos critérios utilizados para calcular a parte do pagamento feita em ações. Os principais pontos questionados envolvem os bônus de subscrição incluídos na transação e a forma como foi realizado o aumento de capital do Magalu após a aprovação do negócio pelos acionistas.
A análise foi feita pela Superintendência de Normas Contábeis e de Auditoria (SNC), da CVM, e se restringe a avaliar o cumprimento ou não das normas contábeis referentes à aquisição da KaBuM!. O parecer, datado de 30 de janeiro deste ano, foi encaminhado para outro setor da autarquia, a Superintendência de Relações com Empresas (SEP), que tem a prerrogativa de avaliar questões legais, societárias e de regulação informacional, para dar continuidade à investigação.
Os antigos donos da KaBuM!, Leandro e Thiago Ramos, questionam na Justiça diversos aspectos da sua venda para o Magalu, mas principalmente a contrapartida que receberam em ações. Segundo o que foi combinado entre a KaBuM! e o Magalu, o pagamento pelo negócio ocorreria de três formas. Na primeira, os vendedores receberiam 1 bilhão de reais em dinheiro (o que foi feito em duas parcelas de 500 milhões de reais). Na segunda, seriam contemplados com 75 milhões de ações ordinárias. Por fim, teriam direito a 50 milhões de ações por meio da emissão de bônus de subscrição condicionados ao cumprimento de metas da KaBuM! (um mecanismo conhecido como earn-out, cláusula contratual que permite que parte do valor de uma transação seja pago ao vendedor com base no desempenho da empresa adquirida).
Quando a compra foi negociada entre as empresas, a parte do pagamento em ações foi avaliada em 1,5 bilhão de reais e a terceira parte, em até 1 bilhão de reais — o que, na soma com o que foi pago em dinheiro, totalizaria 3,5 bilhões de reais. Ocorre que, entre aprovação do negócio pelos acionistas do Magalu, em 26 agosto de 2021, e a conclusão da compra, em 10 de dezembro do mesmo ano, as ações do Magalu desabaram para quase um terço do seu valor inicial — e continuaram a cair nos meses seguintes, quando elas foram transferidas para os irmãos Ramos.
Esse é o motivo pelo qual os antigos donos do KaBuM! consideram que não receberam tudo o que lhes era devido. Eles defendem que tinham direito a um montante de ações equivalente ao valor total de 1,5 bilhão de reais, e não, como obtiveram do Magalu, 75 milhões de ações ordinárias que passaram a valer bem menos.
Além disso, em janeiro de 2024, quando se completou o prazo para a terceira parte do pagamento, o Magalu informou que os irmãos Ramos tinham direito a subscrever 50 milhões de ações pelo cumprimento das metas acordadas, mas eles alegaram o direito a receber 505 milhões de ações, para manter o valor de 1 bilhão de reais. O Magalu então entendeu que o pedido de ações havia sido feito de forma errada e extinguiu o direito dos antigos donos do KaBuM! a desfrutar do earn-out.
Os autores do parecer interno da área de contabilidade da CVM afirmam ter identificado “a avaliação ao valor justo da contraprestação dada em troca do controle da Kabum, qual seja, R$1 bilhão em caixa e R$ 796.250.000 em ações”, mas que não sabiam, com base nas informações disponíveis, se esse valor em ações incluía os bônus de subscrição que estariam sujeitos ao cumprimento de metas, e que encontraram “evidências de que os bônus não foram reconhecidos no PL [Patrimônio Líquido] do Magalu e mais, que houve uma remensuração contábil no valor das 75 milhões de ações emitidas em favor dos ex-controladores da Kabum, expediente sem previsão nas IFRS/CPC e tampouco na nossa lei societária”.
As IFRS (International Financial Reporting Standards) são normas contábeis internacionais e o CPC (Comitê de Pronunciamentos Contábeis) é o órgão que as adapta para a realidade brasileira. A “remensuração contábil” é a expressão usada pelos autores do parecer da CVM para descrever um procedimento que, no entender deles, “a princípio e pelas informações obtidas”, não estaria de acordo com “as normas contábeis aplicáveis”.
O procedimento teria sido o seguinte: após aprovar a compra do KaBuM! em Assembleia Geral Extraordinária realizada em agosto de 2021, o Magalu aumentou seu capital social em 2,5 bilhões de reais. Mas, na data de fechamento da aquisição, ao registrar a contraprestação a ser transferida para os vendedores da KaBuM!, o montante do aumento de capital foi reduzido em cerca de 2 bilhões de reais, por meio de uma “rubrica de reserva de capital, como deságio na emissão de ações”. Humberto Silva Aillon, especialista em fusões e aquisições da Fipecafi, em São Paulo, considera a movimentação inusual. “É incomum, senão em casos muito raros, registrar como reserva de capital uma variação negativa no patrimônio líquido de uma empresa.”
Ao tomar conhecimento do parecer técnico da CVM, e apesar de o processo ainda estar em andamento na autarquia, sem previsão de conclusão, os irmãos Ramos interpretaram o documento como uma comprovação dos seus argumentos no litígio contra o Magalu. “Fica insustentável — especialmente após a confirmação expressa no parecer da CVM — a narrativa do Magazine Luiza de que a transação não teria sido de R$ 3,5 bilhões. Esse valor está escancarado repetidas vezes em toda a documentação, inclusive no próprio balanço da companhia, com destaque para o inquestionável aumento do capital social realizado quando o KaBuM! foi incorporado à estrutura do Magalu”, alega Leandro Ramos. “Estão inadimplentes conosco — e isso já não é mais uma questão de interpretação contratual, mas um fato objetivo.”
Procurado por VEJA, o Magalu enviou a seguinte nota à reportagem:
“Mais uma vez, os irmãos Thiago e Leandro Ramos fazem uma tentativa desesperada de questionar a licitude da operação de venda e compra do KaBum!, diante do absoluto insucesso de suas investidas até aqui. Trata-se de uma tarefa inglória, uma vez que a transação contou com a assessoria de dois dos maiores bancos de investimento do país (Itaú, por parte dos irmão Ramos, e BTG, por parte do Magalu) e dos dois mais respeitados escritórios de advocacia do mercado (Lefosse, por parte dos Ramos, e Machado Meyer, por parte do Magalu) e todas as obrigações foram devidamente cumpridas pelos compradores.
Em relação ao parecer técnico da Superintendência das Normas Contábeis e Auditoria (SNC), da CVM, o Magalu esclarece que: o parecer é um documento interno da CVM, preliminar e não conclusivo. Tanto é assim que a SNC, responsável pela análise, reconhece, no texto, que não possui competência para analisar em profundidade o assunto e envia a questão para outra área da autarquia, a Superintendência de Relações com Empresas (SEP).
O documento não analisa em profundidade todos os aspectos societários e contábeis envolvidos em uma transação complexa como essa. O Magalu defende que qualquer avaliação considere os normativos relacionados a esses aspectos. Não foram analisadas variáveis fundamentais como as previsões da Lei 6.404, o instrumento de Compra e Venda da operação, a data de assinatura, a aprovação em AGE, as deliberações e o laudo de avaliação emitido pela EY.
A estrutura societária da operação e a contabilização refletem fielmente o que prevê a Lei das SAs, e o CPC 15. Todos os atos praticados, laudos, protocolos e justificação, foram devidamente aprovados e validados em Assembleia de Acionistas e por auditores independentes, e seguiram o que determina a legislação.
Importante ressaltar que em nenhum momento, a companhia foi notificada a respeito do parecer técnico da SNC ou sobre eventual processo decorrente dele. Acreditamos que uma análise aprofundada de todos os aspectos da transação deixará clara a conformidade total com as normas vigentes.”
Procurada, a CVM informou que o tema está sendo analisado no âmbito do processo 19957.003142/2025-14 e que não comenta casos específicos.