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Onde o lixo vira dinheiro: programa impulsiona coleta seletiva e transforma comunidades

Com apoio da Tetra Pak, o Recicla Cidade mostra que a reciclagem pode gerar renda, mobilizar comunidades e virar política pública

Por Camila Pati, de Salesópolis e Monte Mor (SP)
1 jun 2025, 08h00

A Política Nacional de Resíduos Sólidos (PNRS), que completa quinze anos em agosto, ainda enfrenta desafios para se consolidar. Embora estabeleça metas como a redução da geração de lixo, o aumento da reciclagem e o descarte ambientalmente adequado, 41% dos resíduos urbanos no Brasil têm destino irregular. Apenas 8% dos resíduos secos são reciclados — e, em grande parte, graças ao trabalho de catadores informais. Nesse contexto, o programa Recicla Cidade, desenvolvido pela multinacional sueca de embalagens Tetra Pak, é uma iniciativa mais do que bem-vinda ao articular governos, empresas e sociedade civil para fortalecer a coleta seletiva.

A missão do programa é ampliar a reciclagem por meio da mobilização social e da educação ambiental, mas com o engajamento efetivo da gestão pública. “A proposta é que os municípios estejam preparados para manter a iniciativa como uma política pública estruturada”, diz Valeria Michel, diretora de sustentabilidade da Tetra Pak. “Pela nossa experiência, todas as cidades por onde passamos deram continuidade ao projeto.” Em 2024, a empresa investiu 26,2 milhões de reais em iniciativas de sustentabilidade voltadas para a cadeia de reciclagem, que incluem o apoio a cooperativas e o desenvolvimento de projetos sociais, entre outras medidas. O Recicla Cidade, que prioriza municípios com até 50 000 habitantes — aqueles que não estão obrigados, pela PNRS, a implementar sistemas oficiais de coleta e reaproveitamento de resíduo —, recebeu 900 000 reais. O objetivo consiste em suprir essa lacuna, oferecendo estrutura aonde o poder público não conseguiu chegar.

arte Tetrapak

Desenvolvido em parceria com a ONG Espaço Urbano, o programa foi implantado em 39 cidades brasileiras e direcionou cerca de 26 000 toneladas de resíduos sólidos para reciclagem. “Como atuamos desde 2018, temos indicadores, prêmios e resultados concretos a apresentar”, afirma Valeria. “Outras cidades têm demonstrado interesse em replicar o modelo.” Uma das edições mais recentes, realizada em 2024, abrangeu oito municípios do sudoeste da Grande São Paulo — Cotia, Embu das Artes, Embu-Guaçu, Itapecerica da Serra, Juquitiba, São Lourenço da Serra, Taboão da Serra e Vargem Grande Paulista. Em apenas um ano, o volume de materiais reciclados nessas cidades aumentou 80%, ultrapassando 2 000 toneladas. O programa também chegou a Benevides, no Pará, em uma iniciativa conjunta entre a Tetra Pak e a empresa de cosméticos Natura.

Primeira cidade a adotar o programa, em 2019, Salesópolis (SP) transformou a coleta seletiva em política pública permanente e em exemplo para outros municípios. Rebatizado de Recicla Salesópolis, o projeto segue ativo e já destinou 220 toneladas de resíduos à reciclagem, gerando uma economia de aproximadamente 127 000 reais aos cofres municipais. De acordo com a Fundação Agência da Bacia Hidrográfica do Alto Tietê, Salesópolis alcançou a maior taxa de reaproveitamento de resíduos da região, incluindo a capital paulista: 25% dos materiais coletados são reciclados, ante a uma média regional de 12%. São Paulo, maior geradora de lixo do país, recicla menos de 2%.

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Cooperadas em Monte Mor (SP): protagonistas da coleta seletiva, elas tiveram suas vidas transformadas
Cooperadas em Monte Mor (SP): protagonistas da coleta seletiva, elas tiveram suas vidas transformadas (Claudio Gatti/.)

O prefeito Rodolfo Marcondes (Podemos) ressalta os efeitos do programa em três frentes: social, econômica e ambiental. “O dinheiro que ia literalmente para o lixo começa a se transformar em economia”, afirma. Segundo ele, a iniciativa fortalece cooperativas, gera renda para famílias em situação de vulnerabilidade e reduz os impactos ambientais. Em Salesópolis, a cooperativa local vende atualmente 40 toneladas de recicláveis por mês, e os cooperados tiveram um aumento de 145% na renda desde o início do programa. “Se a cooperativa chegou aonde está hoje, é porque houve todo esse esforço coletivo”, afirma Janayna de Souza Silva, presidente da Cooperares, associação que reúne os catadores da cidade.

Ao enfrentar o desafio da conscientização sobre a reciclagem, o programa Recicla Cidade investe na capacitação de gestores públicos e, ao mesmo tempo, valoriza o papel dos catadores. Os cooperados recebem formação como agentes ambientais e assumem o protagonismo em ações educativas em escolas, comércios e espaços públicos. Também desenvolvem uma visão mais estratégica da gestão da cooperativa, com foco em eficiência e sustentabilidade. Em Salesópolis, por exemplo, passaram a integrar a programação das festas da cidade. “Todo mês tem festa, e a cooperativa agora participa de todos esses eventos”, diz Aline Kiss, gestora de projetos da ONG Espaço Urbano. Para envolver a população, o programa implementou iniciativas criativas, como o ingresso solidário — que troca a doação de recicláveis pelo acesso aos eventos — e os sorteios de prêmios, como iPhones, com cupons acumulados por quem separa corretamente os resíduos.

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Uma das iniciativas mais emblemáticas do programa foi a criação de uma moeda social local. Instituída por lei municipal em 2019, a chamada “moeda do bem” permite que os moradores troquem materiais recicláveis por produtos como alimentos, itens de higiene, brinquedos e material escolar, na Loja do Bem, espaço mantido pela cooperativa de catadores. No dia da visita da reportagem de VEJA NEGÓCIOS a Salesópolis, a aposentada Elisabete Reyes Guerreiro fazia suas trocas no local. “Venho sempre”, afirma. “Pego arroz, óleo e desinfetante.” Com as moedas, ela consegue suprir suas necessidades e ainda alimentar os vinte cães resgatados das ruas que mantém sob seus cuidados.

A adoção da moeda social também está nos planos da prefeitura de Monte Mor, como política pública inspirada pelo Recicla Cidade. No entanto, para que o programa pudesse ser implementado no município, foi necessário dar um passo atrás e criar, primeiro, a infraestrutura básica de coleta seletiva. “É um sonho antigo”, disse a executiva Valeria Michel, da Tetra Pak, durante visita à cooperativa Juntos Somos Fortes, no município de Monte Mor. Para tornar viável a iniciativa na cidade onde mantém uma fábrica desde 1978, a Tetra Pak buscou apoio da Ambipar, empresa especializada no desenvolvimento de soluções para a coleta seletiva em municípios. “Perguntamos o que seria necessário para levar o programa à cidade”, afirma Valeria.

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Cooperativa Juntos Somos Fortes: o projeto começa a mudar a realidade da gestão de resíduos na região de Monte Mor (SP)
Cooperativa Juntos Somos Fortes: o projeto começa a mudar a realidade da gestão de resíduos na região de Monte Mor (SP) (Claudio Gatti/.)

A proposta era expandir a iniciativa para outros municípios da região. No ano passado, foi lançado o Recicla Junto, abrangendo seis cidades da região de Campinas: Capivari, Elias Fausto, Hortolândia, Monte Mor, Nova Odessa e Santa Bárbara d’Oeste. Com uma população combinada de aproximadamente 1 milhão de habitantes e geração estimada de 700 toneladas de resíduos por dia, o programa é executado pela Ambipar, com apoio do Consórcio Intermunicipal de Manejo de Resíduos Sólidos da Região Metropolitana de Campinas em parceria com a ONG Espaço Urbano.

A secretária de Meio Ambiente de Monte Mor, Maria Tereza Carneiro, afirma que a colaboração com a Tetra Pak foi fundamental para tirar o projeto do papel. “Nós não tínhamos essa expertise”, diz ela. “Isso só foi possível com a articulação e o apoio da empresa.” Desde a inauguração da cooperativa local, em novembro de 2024, a cidade já começa a detectar mudanças. A meta da prefeitura é alcançar 40 toneladas mensais de materiais recicláveis, o que pode gerar uma economia de até 170 000 reais por mês para os cofres públicos.

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arte Tetrapak

Histórias como a de Regina Furian, de 44 anos, revelam o impacto social concreto da iniciativa. Ex-catadora autônoma, ela passou anos trabalhando nas ruas sob sol e chuva para garantir o sustento. Hoje em dia, divide a rotina com a mãe, Maria de Lourdes Rodrigues, de 70 anos, em uma cooperativa estruturada com apoio do programa. “É a primeira vez que trabalho em uma cooperativa”, afirma Regina. “Sou muito grata por estar aqui.”

Ao reunir governos, empresas e comunidades, programas como o Recicla Cidade mostram que é possível avançar na gestão de resíduos sólidos no Brasil. “A parceria público-privada é uma ferramenta essencial, que tem nos ajudado a impulsionar o projeto”, afirma o prefeito de Monte Mor, Murilo Rinaldo (PP). Segundo ele, o engajamento da população tem crescido, especialmente entre as crianças, que participam ativamente das ações educativas. Quinze anos após a criação da Política Nacional de Resíduos Sólidos, iniciativas como essa demonstram que, apesar dos inúmeros desafios, é possível transformar boas intenções em resultados concretos.

Publicado em VEJA, maio de 2025, edição VEJA Negócios nº 14

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