O voo de cruzeiro da Embraer, na contramão da indústria brasileira
Companhia apresenta bom desempenho na bolsa de valores, se destaca no mercado internacional e prepara produtos inovadores como o seu 'carro voador'
Em 2020, o céu parecia muito nebuloso para a fabricante brasileira de aeronaves Embraer. Enquanto se preparava para ter a sua operação de aviação comercial absorvida pela americana Boeing, fruto de um acordo de 5,2 bilhões de dólares, dois eventos de magnitude catastrófica colocaram nuvens bastante carregadas pela frente. O primeiro foi a chegada da pandemia de Covid-19, que afetou dramaticamente o setor de aviação. O segundo foi a crise interna da Boeing envolvendo seu modelo 737 Max, depois da queda de dois aparelhos, na Indonésia e na Etiópia. O resultado é que a fusão foi cancelada e a companhia brasileira teve de refazer seus planos para atuar por conta própria no cada vez mais competitivo setor de aviação, um segmento de alta tecnologia, dominado por Boeing e Airbus, e que tem a presença crescente de fabricantes chinesas.
A decisão foi se reestruturar e partir para metas ousadas, com produtos inovadores. Uma reformulação rápida e inesperada, num ambiente inóspito, é a receita para um fracasso retumbante. Mas as coisas têm dado surpreendentemente certo. Basta notar que a Embraer foi a empresa que mais se valorizou no Ibovespa em 2021: a alta de 180%, enquanto o índice da bolsa de valores brasileira caiu 12%. O bom humor dos investidores no ano passado foi justificado por números divulgados pela companhia na segunda-feira 21, os melhores desde 2018.
Com a pandemia ainda fazendo estragos mundo afora, a Embraer entregou 141 aeronaves, sendo 48 jatos comerciais e 93 executivos. A carteira de pedidos firmes no ano totalizou 17 bilhões de dólares, o maior volume desde o segundo trimestre de 2018. “Nós focamos três frentes e conseguimos obter os resultados. A primeira foi fortalecer a venda do portfólio anual de produto, que é uma carteira muito moderna e competitiva. A segunda foi ganhar eficiência operacional na companhia, com foco na redução dos inventários. Por último, reduzimos o tempo de produção dos aviões”, diz o presidente da Embraer, Francisco Gomes Neto.
Nada simboliza melhor o novo momento da empresa do que seu projeto de “carro voador”. Idealizado como algo que a princípio poderia soar como uma extravagância, o eVTOL é um veículo elétrico com pouso e decolagem vertical, capaz de se deslocar por distâncias curtas rapidamente. A ser produzido pela Eve Air Mobility, parte de uma subsidiária da Embraer, ele tem sido muito bem recebido pelo mercado.
Em 2021, a Eve recebeu ordens de 1 735 aeronaves, com valores de cerca de 5 bilhões de dólares (ou mais de 25 bilhões de reais). E os pedidos continuam a chegar. Em fevereiro, uma encomenda de até noventa eVTOLs chegou de empresas australianas. Cerca de cinquenta deles devem ser usados em complexos turísticos, e o modelo teria sido escolhido devido ao baixo ruído emitido e por suas características ambientais. O produto da Embraer tem sido visto como uma alternativa mais barata, silenciosa e menos poluente que os helicópteros. “A distância que nós estamos trabalhando é de voos de 60 milhas, ou 100 quilômetros. O propósito do eVTOL é transportar pessoas nos grandes centros, como do Itaim Bibi, em São Paulo, até Guarulhos, ou de Guarulhos até o Aeroporto de Congonhas, por exemplo. Para essa distância, ele será muito eficiente. Seu nível de ruído é 80% menor se comparado a um helicóptero. Além disso, é 100% elétrico, com zero emissão de carbono”, diz Gomes Neto. Recentemente, a Eve formalizou o processo para a obtenção de uma certificação da eVTOL junto à Agência Nacional de Aviação Civil, a Anac. “Como é uma certificação diferente, é difícil estipular o prazo que esse processo pode levar. Já a integração com o espaço aéreo deve ser definida com o Departamento de Controle do Espaço Aéreo”, explica o advogado Ricardo Fenelon Junior, ex-diretor da Anac. Antes mesmo disso, o próximo passo será levar a Eve à Bolsa de Valores de Nova York, a NYSE, o que pode acontecer no segundo trimestre.
A história recente da Embraer é um ponto fora da curva na indústria brasileira, que vem colhendo derrotas nos últimos anos, perdendo competitividade internacional e participação dentro da economia local. Projeções de bancos e do Instituto Brasileiro de Economia, da Fundação Getulio Vargas, dão conta de uma nova queda do PIB industrial neste ano, que seria a sétima em uma década. No sentido contrário, a empresa prepara, além dos eVTOLs, o lançamento do avião elétrico Ipanema. “É uma linha com aviões movidos a energias alternativas, como células de combustível a hidrogênio. É um passo importante no setor”, diz Gomes Neto. Depois do baque de 2020, a Embraer se prepara para atingir novas alturas.
Publicado em VEJA de 2 de março de 2022, edição nº 2778