O superciclo de concessões em infraestrutura
A melhoria de regras permitiu que o setor privado avançasse e o resultado é um pico de R$ 259 bi neste ano em investimentos
O Brasil está vivendo um superciclo de infraestrutura graças ao alinhamento de fatores favoráveis que têm permitido suplantar gargalos históricos no setor e incertezas da conjuntura fiscal e econômica. Segundo a Associação Brasileira da Infraestrutura e Indústrias de Base (Abdib), 2024 deve fechar com 259 bilhões de reais investidos em infraestrutura, um recorde dos últimos dez anos em valores atualizados. Isso equivale a 2,2% do PIB projetado para o ano, um aumento de 0,3 ponto percentual sobre 2023. É pouco diante do que se considera necessário para um país que busca se desenvolver, que seria investir mais de 4% do PIB ao ano, mas também é uma medida das oportunidades de negócios que se apresentam para suprir a demanda em transportes, energia elétrica, saneamento e outros serviços públicos que exigem obras e manutenção. O estoque de capital em infraestrutura no país, hoje em 35,5% do PIB, ainda está longe do ideal, que seria de ao menos 60% do PIB (veja o gráfico). Se o setor está ganhando tração para preencher esse hiato, isso se deve principalmente à crescente participação de empresas por meio de concessões e parcerias público-privadas (PPPs). Atualmente, a iniciativa particular investe 3 reais para cada 1 real destinado pelo Estado à infraestrutura.
Os planos para os próximos anos são promissores. A Abdib estima que os leilões previstos até 2027 devem garantir mais 300 bilhões de reais em investimentos. Para 2025, estão previstas licitações de 22 terminais portuários e de mais de 100 aeroportos regionais. As duas dezenas de projetos de saneamento básico previstas para o ano que vem devem atrair 72 bilhões de reais em investimentos. O setor elétrico, que já é o campeão em aportes, deve continuar energizado, com uma novidade para 2025: o governo federal tem a previsão de fazer em junho o primeiro leilão de armazenamento de energia por meio de baterias. O setor de rodovias, que já tem 29 000 quilômetros sob concessão, espera dobrar a cobertura nos próximos cinco anos. “Vivemos o nosso melhor momento, com grande número de projetos, problemas em concessões em andamento sendo resolvidos e novos contratos de melhor qualidade”, diz Marco Aurélio Barcelos, presidente da Associação Brasileira de Concessionárias de Rodovias, que estima em duas dezenas o total de novas concessões previstas para 2025, entre estradas federais e estaduais.
Novos modelos de concessões e PPPs estão sendo lançados. “A prioridade tem sido aumentar o nível de investimento feito e melhorar a qualidade dos serviços”, diz Marcus Cavalcanti, secretário especial do Programa de Parcerias de Investimentos (PPI) do governo federal. Uma das novidades em curso são as concessões rodoviárias light: em vez de grandes investimentos, como os necessários para duplicações, o foco é em obras de manutenção, de forma a garantir a segurança com pedágios de tarifas menores ou sem cobrança em estradas de regiões mais pobres ou com menor fluxo de veículos.
Outro modelo que tem crescido em municípios, com apoio do PPI, é o de concessões de iluminação pública por meio de PPPs, em que a empresa expande, opera e faz a manutenção do serviço, recebendo uma mensalidade paga com a Cosip, uma taxa embutida na conta de luz. Existem cerca de 130 contratos do tipo no Brasil e estima-se que mais de 1 000 municípios sejam elegíveis para adotar o modelo. Mais inovações em parcerias com o setor privado estão surgindo nos estados. O governo de São Paulo está apostando em projetos não convencionais como um que coloque em mãos privadas a missão de construir e gerir a infraestrutura para lidar com a água em seus momentos de escassez (reservatórios) e de excesso (drenagem). “Esse é apenas um exemplo do que estamos idealizando para ir além dos planos já robustos em áreas como mobilidade urbana, com a expansão de transportes sobre trilhos, e rodovias”, diz Rafael Benini, secretário paulista de Parcerias em Investimentos. Ele diz que a gestão Tarcísio de Freitas (Republicanos) começou com um plano de alcançar 200 bilhões de reais em investimentos privados contratados no longo prazo em concessões. Ainda na metade do mandato, o valor já passou de 300 bilhões e Benini estima que, até o final de 2026, chegará a 400 bilhões de reais contratados. Entre as apostas estão os investimentos em infraestrutura social, o que inclui os leilões recentes para PPPs dedicadas à construção e à manutenção de escolas estaduais. “Trata-se de uma solução muito positiva, pois aumenta a qualidade das instalações e reduz o desperdício de dinheiro público, enquanto a gestão pedagógica permanece com o Estado”, diz Claudio Frischtak, sócio-fundador da Inter.B Consultoria.
A ideia de que concessões e PPPs são mecanismos para preencher as lacunas em infraestrutura estava longe de ser uma unanimidade entre gestores públicos até recentemente. Agora é quase um consenso, construído ao longo dos últimos anos conforme as primeiras parcerias com a iniciativa privada demonstravam seus benefícios e novos projetos foram sendo aprimorados com os erros e acertos. Um marco nessa trajetória foi a Lei de Concessões, que completa trinta anos em fevereiro de 2025. A primeira grande concessão foi a que cedeu a gestão da Ponte Rio-Niterói para um consórcio que hoje compõe o Grupo CCR. Em 2015, após o fim do contrato, houve nova licitação, desta vez vencida pelo grupo EcoRodovias, em uma demonstração de maturidade de um modelo que garante gestão e melhorias em um ativo de infraestrutura. Quando surgiram os primeiros projetos de concessão no Brasil, especialmente em saneamento e rodovias, a estrutura institucional e regulatória era incipiente. Não existia um histórico que servisse como referência para saber o que funcionava ou não. “Nos anos 2000, começaram a surgir alguns problemas, como intervenções unilaterais nas concessões e ameaças à segurança jurídica, incluindo percepções negativas do modelo em casos específicos, como em rodovias no Paraná. Isso gerou preocupações no mercado investidor e acabou contaminando o setor de concessões como um todo”, afirma Gustavo Gusmão, sócio de infraestrutura da consultoria EY.
A situação começou a mudar com a Lei 11.079/ 2004, a chamada Lei das PPPs, que introduziu novas formas de concessões, com a participação financeira do governo nos projetos. Isso foi importante para viabilizar iniciativas que dependiam mais de recursos públicos e para proporcionar maior segurança jurídica ao setor privado — muitas vezes preocupado, por exemplo, com a ideia de que o poder público fosse mau pagador. A lei ajudou a criar um ambiente mais favorável às concessões. Desde então, três tendências se consolidaram no setor. A primeira foi o crescente protagonismo dos estados, que avançaram com suas próprias leis de PPP e projetos de concessão. A segunda foi a resiliência comprovada do investidor de infraestrutura a crises ou incertezas macroeconômicas. A terceira foi a evolução positiva do ambiente regulatório. “Houve um reforço, por parte do poder concedente e das agências reguladoras, que se modernizaram e olharam para o mercado internacional em busca de inovações”, diz Marcello Guidotti, presidente da EcoRodovias. Alguns setores, como os de energia elétrica e transportes, são considerados mais maduros em termos de regulação, enquanto outros, como o de saneamento, estão em estágio intermediário, ainda lidando com marcos legais recentes.
A questão regulatória tem evoluído também em nível estadual. “Vejo de forma otimista neste ano o projeto de lei para reestruturar a Artesp (Agência de Transporte do Estado de São Paulo) e os planos para criar uma agência do setor em Minas Gerais. Essas iniciativas coroam um esforço por maior segurança e independência regulatória”, diz Eduardo Camargo, presidente da CCR Rodovias. Há, porém, um risco de retrocesso nesse campo por causa do interesse político que as agências reguladoras vêm despertando, o que inclui tentativas recentes de ministros de interferir em sua atuação. O mercado está especialmente preocupado com uma Proposta de Emenda à Constituição, apresentada pelo deputado federal Danilo Forte (União Brasil-CE), que dá à Câmara o poder de fiscalizar as agências, efetivamente reduzindo sua autonomia.
Além dos ataques às agências reguladoras, há outras pendências. A primeira é a falta de planejamento, para basear decisões em projeções futuras, como o crescimento das cidades e a necessidade de expansão de rodovias. “Os ativos de infraestrutura têm vida útil longa, de décadas, mas ainda prevalecem os programas de governo sobre os programas de Estado, que valorizam o que foi legado pelos gestores públicos anteriores”, diz o economista Gesner de Oliveira, sócio da GO Associados e coordenador do Centro de Estudos de Infraestrutura e Soluções Ambientais da FGV-SP. O segundo desafio é o custo elevado do dinheiro no Brasil, especialmente com juros em alta, o que acaba drenando recursos que poderiam ir para a infraestrutura. Para contornar esse problema, o BNDES vem aumentando a aprovação de créditos para projetos na área. As empresas também estão explorando alternativas no mercado de capitais, com um aumento de emissão de debêntures, graças a um decreto federal deste ano que criou uma nova classe desses títulos, com benefícios tributários, voltada para a infraestrutura.
O terceiro desafio é a insegurança jurídica, que passa por incluir nos contratos dispositivos que tornem mais ágeis os reequilíbrios (por exemplo, em ajustes tarifários), que incentivem as partes a cumprir com responsabilidades e que contemplem melhor os riscos extraordinários das concessões. Os últimos dois pontos são úteis para evitar situações como a dos recentes apagões na cidade de São Paulo, em que a prefeitura e a concessionária de energia elétrica se acusaram mutuamente de não cumprir obrigações. O quarto desafio são os custos de construção crescentes, agravados por escassez de mão de obra e por um setor de engenharia ainda se reerguendo do impacto dos escândalos de corrupção revelados pela Operação Lava-Jato, com empreiteiras menores ocupando aos poucos o vácuo deixado pelas grandes. O quinto e último desafio é a necessidade de ampliar a capacidade dos órgãos ambientais de analisar e aprovar projetos, uma demanda que tende a crescer com os investimentos que se avolumam a cada minuto. O superciclo de infraestrutura exige uma superpreparação não só das empresas, mas também do poder público.
Publicado em VEJA, novembro de 2024, edição VEJA Negócios nº 8