O que explica a fase ruim do agro após quebra de recordes em 2023
A agricultura brasileira sofre agora com crédito caro e condições climáticas desfavoráveis. O cenário é difícil, mas setor deve superar a maré de decepções
Em dezembro último, a Justiça do Paraná homologou o plano de recuperação judicial pedido pela Sperafico Agroindustrial, um dos mais tradicionais grupos empresariais do agronegócio brasileiro. Fundada em 1957, a empresa já atuou, com sucesso, em diversas frentes do setor, incluindo venda de insumos, plantio de soja, milho e trigo, produção de alimentos para animais e administração de condomínios agrícolas, para citar apenas alguns exemplos. Nos últimos meses, contudo, diversos fatores associados fizeram com que a companhia enfrentasse um ciclo inédito de dificuldades. Perdas parciais da safra de soja, motivadas sobretudo pelos extremos do clima, e os juros altos, que encareceram o crédito, foram decisivos para que as dívidas da Sperafico alcançassem a marca de 1,3 bilhão de reais. Nesse contexto, a única saída encontrada pelos administradores foi recorrer à recuperação judicial. “O momento é crítico, tudo joga contra”, afirma Dilceu Sperafico, que foi um dos herdeiros do grupo e deputado federal pelo PP do Paraná.
A história relatada é exemplo de uma situação que se tornou comum recentemente. Segundo um levantamento feito pela empresa de análise de crédito Serasa Experian, os pedidos de recuperação judicial no agro avançaram no ano passado 535% ante 2022. “A velocidade com que essas solicitações vêm aumentando é muito preocupante”, diz Marcelo Pimenta, chefe de agronegócio da Serasa Experian. Os alertas, de fato, estão por toda a parte. “A onda de recuperação judicial traz insegurança para o financiador”, disse Paulo Sousa, presidente da americana Cargill, uma das maiores processadoras de soja, em evento realizado há alguns dias em São Paulo. “Teve muito dinheiro novo entrando no agro brasileiro nos últimos anos, mas isso também é um risco. É preciso ter cuidado com o crédito.” O problema afeta a cadeia produtiva. A John Deere, fabricante americana de tratores agrícolas, suspendeu a produção por sessenta dias em sua fábrica de Horizontina, no Rio Grande do Sul. De fato, a atividade está mais fraca: o mercado estima que as vendas de máquinas agrícolas cairão 11% neste ano em relação a 2023.
Sob diversos aspectos, o agronegócio brasileiro tem sido vítima de seu próprio sucesso. O ano de 2023 ficou marcado por diversos recordes quebrados pelo setor. A safra de 320 milhões de toneladas de grãos foi a maior da história, enquanto as exportações atingiram 166 bilhões de dólares, o nível mais alto de todos os tempos. Não à toa, o PIB do agro representou 24% da economia brasileira, consolidando-se mais uma vez como um motor vital do país. Sem a força do campo, aponte-se, o PIB do Brasil não teria crescido quase 3% em 2023.
Nesse contexto, muitos produtores apostaram alto demais, acreditando que o desempenho extraordinário seria mantido indefinidamente. Na expectativa de crescer sem limites, houve quem contraísse crédito em excesso — estes ficaram “alavancados”, para usar um jargão do mercado financeiro. Com a disparada da Selic, a taxa básica de juros da economia, entre 2022 e 2023, os financiamentos se tornaram mais caros, e os níveis de endividamento subiram. O resultado desse processo é a disparada do número de solicitações de recuperação judicial, um movimento que tem se intensificado nos últimos meses.
O estudo da Serasa indica que o cenário é mais alarmante para os pequenos agricultores. Isso porque o levantamento abrange os proprietários rurais que atuam como pessoas físicas, sendo que muitos deles se enquadram na categoria de microempreendedores individuais (MEI). Eles, naturalmente, têm menos fôlego para suportar as pressões trazidas pelo contexto de custo mais alto e produção menor. Portanto, acabam sofrendo mais. “Quando os produtores têm uma renda menor, sua capacidade de investimento na próxima safra fica comprometida”, diz Felippe Serigati, pesquisador de agronegócio da Fundação Getulio Vargas. Na lógica econômica, se o setor produz menos, os preços sobem. Tanto é assim que a inflação de alimentos e bebidas foi de 2,95% em janeiro e fevereiro, mais que o dobro do 1,25% medido pelo IPCA, o índice oficial de inflação do país. Detalhe: os preços de alimentos indispensáveis como feijão, arroz, batata e cenoura subiram acima de 10% em 2024.
Para lidar com o problema, o governo promete lançar, nos próximos dias, uma linha de crédito do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) de 2 bilhões de dólares, voltada para produtores rurais que tiveram problemas na safra e perda de rentabilidade. “A quebra de produção acende uma luz no mínimo amarela, se não vermelha, e exige a adoção de providências rápidas”, disse o ministro da Agricultura, Carlos Fávaro. Uma alternativa em estudo é a implementação de um pacote de ajuda que permita a renegociação de dívidas e a extensão de prazos ao agricultor. De seu lado, o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, estuda reformular o Proagro, programa de seguro rural bancado com subsídios públicos. “O governo procura alternativas, mas demora a agir e o setor se desespera”, disse a VEJA Roberto Rodrigues, ex- ministro da Agricultura. O Banco do Brasil, líder na concessão de crédito ao agronegócio, destinou 150 bilhões de reais em linhas de financiamento na atual safra, 8% a mais que no mesmo período anterior. “Encaramos com naturalidade os ciclos da atividade rural, é um risco muito bem administrado”, disse o banco em nota.
Por sua natureza, a atividade rural é cíclica e está sujeita aos humores do clima e a eventos imprevisíveis, inclusive de ordem geopolítica — como a guerra entre Rússia e Ucrânia, que afetou a oferta de fertilizantes. Contudo, não é exagero dizer que o agro brasileiro vive um freio de arrumação momentâneo. A safra 2024 indica que o cenário permanece difícil, mas não se trata de uma terra arrasada. Longe disso. De acordo com projeção da Companhia Nacional de Abastecimento, a produção brasileira de grãos deverá chegar a 296 milhões de toneladas, uma queda de 7% versus o volume colhido no ciclo anterior. Mas isso não poderá ser considerado um resultado tão ruim: afinal, 2023 foi o ano dos recordes. A despeito da fotografia atual, o vigor do agronegócio é incontestável e os estudos olhando à frente indicam que o potencial de expansão segue enorme. É só uma questão de tempo, novos recordes virão. Para alívio do Brasil — e do mundo que precisa de alimentos.
Publicado em VEJA de 22 de março de 2024, edição nº 2885